Nas últimas semanas, uma polêmica envolvendo o apresentador Luciano Huck e o prefeito de Curitiba, Rafael Greca (PMN), virou manchete. O apresentador veio a Curitiba para gravar um episódio do quadro “Lar Doce Lar”, do Caldeirão do Huck, em que reformaria a casa de uma moradora do bairro Caximba. A encrenca começou quando, em uma postagem nas redes sociais, Huck comparou as condições precárias do local ao Haiti. Greca, então, entrou em contato com o apresentador pedindo que a reforma não fosse executada, já que a casa está em uma área de ocupação informal, a Vila 29 de Outubro.
“Como lhe disse ao telefone esta ocupação irregular será desmanchada e requalificada em parque ambiental e Bairro Novo humanitário. Inclusive lhe pedi que não doasse material para construção na área de invasão. Estamos trabalhando intensamente para virar este jogo”, escreveu o prefeito em sua página no Facebook. O programa acatou o pedido, doando à moradora verbas para melhorias e eletrodomésticos, panelas, brinquedos e recursos para manter o projeto social que desenvolve na região. Do lado de cá, a prefeitura está se mobilizando para regularizar a situação dos habitantes da região.
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Esse processo, porém, não é rápido nem simples. Só na Vila 29 de Outubro moram mil famílias, mas a cidade tem, de acordo com a Companhia de Habitação Popular (Cohab) de Curitiba, 412 áreas de ocupação. Destas, 200 já estão em processo de diagnóstico para a regularização. O tamanho da fila de quem espera por moradia junto ao órgão é grande: mais de 46 mil famílias inscritas, sendo que 90,3% deles têm renda familiar mensal de até R$ 2,6 mil.
Regularização fundiária e urbanística
O passo-a-passo da Regularização Fundiária Urbana (Reurb) é regido por uma lei federal, juntamente com legislação municipal, e começa com visitas da Cohab à área ocupada para avaliação de critérios jurídicos, urbanísticos, ambientais e sociais. No contato com a comunidade local é levantado o histórico da região e se há entraves judiciais, para que seja elaborado um diagnóstico de viabilidade de regularização.
“Começa aí uma consulta nas secretarias envolvidas no processo, com uma planta já desenhada. Todas as secretarias se manifestam, então, prevendo aspectos como sistema viário e áreas de preservação ambiental”, explica a assessora de regularização fundiária da Cohab Curitiba, Melissa Kesikowski. Além da Cohab, fazem parte desse processo o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) e as secretarias de Urbanismo, Meio Ambiente e Obras Públicas e, paralelamente, as de Educação e Saúde. No âmbito jurídico, também podem estar envolvidos a Defensoria Pública e Ministério Público.
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Com toda essa documentação pronta, as famílias podem buscar as escrituras, com um projeto já prevendo a instalação, imediata ou não, da infraestrutura necessária para a urbanização da área – só então as obras e os pagamentos das parcelas por parte dos moradores podem começar. O direito à Moradia Social só é garantido uma vez – ou seja, se alguém já recebeu esse benefício em algum momento anterior, não pode recebê-lo de novo. “É feita uma avaliação socioeconômica das famílias para ver o quanto elas podem pagar, qual o tamanho da área que ocupam e quantos anos precisam para pagar”, diz o presidente da Cohab Curitiba, José Lupion Neto.
“A regularização fundiária deveria estar sempre associada com a regularização urbanística”, aponta a professora Maria de Lourdes Zuquim, coordenadora do Núcleo de Apoio à Pesquisa Produção e Linguagem do Ambiente Construído (Napplac) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). “A regularização fundiária tem um peso muito importante porque elimina o imbróglio da propriedade da terra, mas não resolve, por si só, as questões de urbanização. É fundamental que haja o redesenho das vias, infraestrutura de saneamento e energia e articulação do sistema viário no entorno para melhor mobilidade.”
O processo é lento. Em Curitiba, segundo a Cohab, ele pode levar de cinco a 15 anos, dependendo de diversos fatores: impasses judiciais e burocráticos, necessidade de remoção de famílias de áreas de risco, construção de novas casas para quem está em situação precária e outros.
Vila Terra Santa
É o caso da Vila Terra Santa, na região do Tatuquara, uma área de 240 mil metros quadrados que foi ocupada por centenas de famílias em 1998 e levou 12 anos para ser totalmente regularizada. Hoje, quem passa pelas ruas asfaltadas cercadas pelas casas de alvenaria custa a acreditar que todo aquele espaço era coberto de vegetação não mais do que 20 anos atrás.
Depois de perder tudo que tinha em uma enchente, Ana Pereira Marques assistiu a uma reportagem sobre a ocupação, perto da casa de sua irmã, decidiu que era lá mesmo que iria arrumar um pedaço de terra para chamar de seu. Quando chegou ao que hoje é a vila, tudo era mato. Ela e os vizinhos foram abrindo espaço na área, que era fechada por um bosque de mata nativa.
“No começo foi difícil porque a gente enfrentou muitas batalhas: teve guarda municipal, polícia e cavalaria tentando tirar todo mundo, desmanchando as barraquinhas das pessoas”, relembra ela. O espaço, que hoje conta com asfalto, saneamento, linha de ônibus, comércio e espaços de lazer, foi conquistado com muita luta. “Fizemos manifestação, fechamos a rodovia para pedir a regularização daqui”.
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A área era uma propriedade privada que, em 2001, foi adquirida pelo município em meio aos impasses entre os moradores e o proprietário por apresentar potencial construtivo. Foi a partir de 2003 que começaram a chegar estruturas de necessidade básicas, como água e energia elétrica.
No momento da regularização, mais de mil famílias moravam na região. Destas, 606 receberam obras de infraestrutura. Cortada por córregos e nascentes, outras 479 foram realocadas, a partir de 2008, para o conjunto habitacional Moradias Laguna, construído nas proximidades para abrigar as pessoas que estavam em áreas de proteção ambiental ou com risco de alagamentos e deslizamentos de terra.
Presidente da associação de moradores pelo quarto mandato consecutivo, dona Ana, apesar do protesto da filha, não quer sair da vila que lutou tanto para construir. “Nós fundamos isso aqui, tem uma história. Eu me enraizei aqui, criei meus dois filhos aqui”, conta.
Vila Governador
Outro líder comunitário que construiu a vida e o lugar onde mora com o suor do próprio rosto é Antônio Brandão, morador da Vila Governador, no Jardim Cláudia, em Pinhais -- região metropolitana. No início dos anos 90, ele estava entre as 200 famílias que iniciaram a ocupação de um terreno de 58 mil metros quadrados, à época utilizado como pasto.
Ao longo de uma década, a ameaça da reintegração de posse ao proprietário pairava sobre os moradores. “Teve muitos advogados espertalhões que agiram de má fé com os moradores aqui. O pessoal já não acreditava muito [que haveria regularização]”, explica seu Antônio, que assumiu a presidência da associação de moradores em 2001. Ele conta que foi só a partir daí que o processo começou a andar, quando o grupo Terra Nova, empresa social especializada em mediação de conflitos para regularização fundiária de interesse social em áreas urbanas particulares, em parceria com a associação de moradores, passou a mediar a negociação.
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“O nosso trabalho é de sensibilizar as lideranças comunitárias, negociar com o proprietário, consultar a prefeitura e homologar um acordo prevendo uma indenização ao proprietário proporcional à renda dos moradores”, afirma o presidente do Terra Nova, André Albuquerque. Em 2010, o projeto de regularização fundiária da área foi aprovado pela prefeitura e os moradores que já haviam concluído o pagamento da indenização ao proprietário legal da área puderam seguir com os trâmites de titulação de seus lotes.
As fotos dos anos 90 mostram barracos no meio de um mato alto, cortado por carreiras de terra. “Minha casinha dava 3 metros de largura por 5 metros de comprimento. Eu chacoalhava no canto e ela balançava inteira”, conta seu Antônio, rindo. “Hoje aqui, fora a área externa, ela tem 7 metros de largura por 12 de comprimento”, comemora.
Hoje, a Vila Governador e outras ocupações no seu entorno estão totalmente integradas ao município: as ruas são asfaltadas, há redes de energia elétrica, esgoto e água, creche, escola de nível fundamental e médio, duas linhas de ônibus, canchas esportivas e qualidade de vida.
Déficit habitacional
Como não há produção suficiente de lotes para as famílias em faixas de renda mais baixas, elas não têm acesso a lotes formais, nem a crédito para poder comprá-los. “As cidades ainda crescem através da informalidade: as pessoas vão ocupando essas áreas e o poder público fica pressionado a regularizar. Mas a demanda é muito grande e o poder público tem pouca capacidade regularizar em escala”, aponta Albuquerque.
No Brasil, segundo dados de 2015 da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (PNAD), o déficit habitacional em áreas urbanas é de 5,57 milhões de domicílios. A moradia é um direito garantido pela constituição brasileira, ao lado de bandeiras de peso como educação e saúde, porém não recebe a atenção necessária. “A política pública de habitação tem que estar associada a um projeto de país, estado e cidade. Para avançar na garantia de direitos, a moradia tem que estar articulada com um projeto de país que todos queiram, mas isso não é uma prioridade”, ressalta a pesquisadora do Napplac/USP.
Números
É quanto pode durar o processo de regularização em Curitiba.
Esse é o déficit de moradias no Brasil, segundo dados de 2015.
Total: 46.064 inscritos
22.825 na faixa 1 (renda familiar de até R$ 1,8 mil)
18.767 na faixa 2 (renda familiar entre R$ 1,8 e R$ 2,6 mil)
4.472 na faixa 3 (renda familiar de até R$ 4 mil)