| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Duas aldeias estão encravadas no meio de uma área em discussão: a região em que está prevista a construção da Faixa de Infraestrutura, conjunto de obras projetado pelo governo estadual, incluindo uma rodovia e um canal de drenagem em Pontal do Paraná, no Litoral.

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Os indígenas são da etnia Guarani e estão nas áreas de influência da potencial pavimentação de 18 quilômetros em meio a um trecho conservado de Mata Atlântica. A rodovia seria uma alternativa ao fluxo conturbado da PR-412 e viabilizaria a construção de um complexo portuário. Mas agora a realização da obra – com custo estimado em R$ 270 milhões e licitação prevista para ser realizada em 18 de junho – também está sob o crivo da Fundação Nacional do Índio (Funai), que está analisando quais impactos o empreendimento traria para as aldeias da região.

INFOGRÁFICO: veja onde vivem os índios e por onde passará a Faixa de Infraestrutura

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Para saber como vivem os índios de Pontal do Paraná, a Gazeta do Povo visitou as duas aldeias que estão mais próximas do eventual traçado da rodovia. A Guaviraty – também conhecida na região como Shangrilá, por causa do balneário próximo – está a menos de dois quilômetros do local em que está prevista a rodovia.

Os guaranis são conhecidos pela mobilidade e se instalaram no local há seis anos, vindos da aldeia da Ilha da Cotinga, em Paranaguá – outra aldeia que está na área de influência da Faixa de Infraestrutura. Filho do cacique João Acosta, Paulo conta que procurou, junto com funcionários da Funai, uma área para se instalar com a família. A terra indígena (TI) foi delimitada e identificada em 2016, mas a demarcação ainda não foi assinada pela Presidência da República.

Na aldeia vivem 48 pessoas. O solo arenoso complica o plantio. “A terra não ajuda”, diz Paulo. A principal fonte de renda é o artesanato. Além de objetos feitos em palha de taquara, colhida no mato das redondezas, também são feitas peças de caixeta, uma árvore típica da região.

A maioria dos adultos não sabe ler e escrever e se enrola para falar o português. Não são obrigados, como diz o jargão da internet. A língua deles é o guarani e dela que depende a comunicação interna e uma porção considerável da manutenção da sua cultura. Por isso a Guaviraty lutou para ter uma escola dentro da aldeia. A construção, feita pelo governo estadual ao custo de R$ 218 mil, deve ser concluída em dois meses.

De madeira, a escola já tem do piso ao telhado. Será uma sala multisseriada – juntando os estudantes de vários anos escolares. Tem ainda uma cozinha para o preparo da merenda e quando estiverem prontos, terá os dois primeiros banheiros da aldeia. Hoje as necessidades fisiológicas são feitas na mata.

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VEJA FOTOS:a rotina dos índios das aldeias Guaviraty e Karaguata Poty

Por enquanto, 16 crianças e adolescentes saem todos os dias da aldeia para estudar numa escola no balneário de Ipanema. Mas Paulo quer seja cumprida a lei que garante que eles tenham educação diferenciada, respeitando a cultura indígena. A dificuldade será conseguir um professor guarani. Precisa ter ensino médio completo e ninguém se enquadra no perfil ali. Assim, há a possibilidade de “importar” um professor de outra aldeia – o que a Guaviraty não quer. No litoral só há dois professores da etnia Guarani.

Mais problemas

A rede elétrica não chega até a aldeia, que é servida por pontos de energia solar. A geração é suficiente para lâmpadas e alguns eletrodomésticos, como televisores e rádios. Há alguns poucos celulares, mas a comunicação é difícil. Para conseguir sinal os índios construíram uma escada amparada num toco de árvore. O ponto foi descoberto num momento de desespero: o dia que uma índia cortou os dedos e foi preciso chamar uma ambulância. Em busca de sinal, alguém saiu testando vários locais até que decidiu subir num lugar mais alto e se agarrou ao tronco.

O principal problema é a falta de água. A aldeia não é servida por sistemas de abastecimento e galões são levados na caçamba de uma caminhonete do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Paranaguá, segundo os índios, garantindo o suprimento por uma semana. Mas, às vezes a entrega falha. No dia em que a Gazeta do Povo esteve na aldeia, fazia sete dias que não chegava água. A louça se acumulava na pia e pequenas cisternas eram usadas para coletar a chuva, usada para beber. A roupa costuma ser lavada num riacho que passa perto das casas, mas a água é avermelhada e não serve para limpar as camisetas brancas do uniforme escolar.

A reportagem procurou a prefeitura e recebeu a informação de que a água seria entregue em breve, por um caminhão-pipa da Sanepar, e que os índios precisam avisar antes de a reserva acabar. Um reservatório de 10 mil litros foi instalado na aldeia, mas teria sido usado poucas vezes, de acordo com os índios. A aldeia fica a menos de dois quilômetros das tubulações de abastecimento de água da Sanepar, mas a administração municipal afirma que não pode fazer a ligação porque a terra indígena ainda não foi oficialmente demarcada. Uma tentativa de escavar um poço, a uns 18 metros de profundidade, resultou numa água salobra.

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Preocupação

Durante a preparação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Faixa de Infraestrutura, uma equipe de técnicos visitou a aldeia. Mas os índios dizem que não entenderam muito bem o que está para acontecer. “Disseram que vai ter uma estrada grande aqui perto e um porto”, conta Lídio Acosta, também filho do cacique. “Eu me preocupo muito. Eu falo para os meus pais que não só vai complicar para os indígenas, mas pra todo mundo”, diz Paulo.

Um dos temores é a proximidade com os brancos, chamados de juruás. A população indígena é muito vulnerável e alguns tipos de contato levam a perdas culturais irreversíveis, além de não terem resistência orgânica para várias doenças. Na temporada de verão, são frequentes as visitas indesejadas, como curiosos, caçadores e pescadores. “Tem gente que vem aqui e pede para fumar droga”, conta Paulo. Alguns são enxotados pelo vira-latas Rambo.

Dependentes da renda do artesanato, alguns índios saem da aldeia periodicamente e vão à cidade e principalmente à orla para vender as peças produzidas. Paulo afirma que está preocupado com o risco que representaria cruzar uma rodovia movimentada. Dentro do projeto de construir a Faixa de Infraestrutura, foi proposta uma travessia subterrânea sob a rodovia.

Sambaqui

Às margens do rio Guaraguaçu fica a aldeia Karaguata Poty, também conhecida como Sambaqui, constituída há 18 anos pelo cacique Irineu Rodrigues, de 48 anos, também vindo da Ilha da Cotinga. Lá ele mora com a família, formada por sete pessoas. Em partes, as condições são parecidas com as da vizinha Guaviraty: com energia solar e sem água encanada – e dependente da renda do artesanato. Há pelos menos quatro boilers instalados, mas sem funcionamento. Sem a rede de abastecimento e sem banheiros construídos, os caros aquecedores de água acabam não tendo utilidade.

A Karaguata Poty fica a um quilômetro de um sambaqui – que significa amontoado de conchas – e é um depósito feito por povos primitivos, de valor histórico e, para os índios, espiritual. Alguns visitantes aparecem de vez em quando e são convidados a pagar entrada ou comprar artesanato como compensação para conhecer o lugar. Os eventuais turistas já incomodam Irineu. “Na temporada já tem bastante barulho. Fica ruim”, diz. Ele acredita que vai ficar pior se a Faixa de Infraestrutura for construída. “Se tiver estrada vai trazer mais doença e poluição”, afirma. O cacique conta que foi visitado por representantes que estavam pesquisando os impactos da obra. “Mas eles vêm com o papel pronto. Já chegam com tudo decidido”, reclamou.

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No dia 18 de junho, uma reunião com todas as lideranças indígenas do litoral está marcada para acontecer em Paranaguá, para discutir o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Litoral, estudo que está sendo elaborado por um consórcio internacional e financiado pelo Banco Mundial. A ideia é que as comunidades indígenas tenham a oportunidade de se manifestar sobre o que esperam de políticas públicas para a região.

Funai entra na discussão

A Fundação Nacional do Índio (Funai) manifestou interesse em participar da discussão jurídica sobre a construção da Faixa de Infraestrutura. O projeto recebeu autorização ambiental em novembro de 2017 e o licenciamento foi chancelado pelo Conselho de Desenvolvimento do Litoral (Colit). Contudo, a avaliação do processo foi contestada na Justiça porque foi não foi atendido um pedido de vista para que o caso fosse estudado com mais atenção. A Universidade Federal do Paraná (UFPR), que participa do Colit, conquistou uma liminar suspendendo a autorização para a obra. O traçado proposto para a rodovia fica a menos de oito quilômetros das aldeias e, por isso, a Funai tem o direito de se manifestar sobre o potencial impacto da obra. O caso segue sendo discutido na Justiça.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]