As sucessivas fugas de presos mantidos em delegacias da Polícia Civil do Paraná ocorridas em maio e a consequente vistoria desses distritos revelaram uma distorção na execução penal do estado: em decorrência da superlotação prisional, detentos já condenados estão cumprindo pena em carceragens de delegacias. Entidades como o Conselho da Comunidade na Execução Penal de Curitiba e a Associação dos Delegados do Paraná (Adepol) estimam que quase a metade dos 9,6 mil custodiados em delegacias já tenha condenação, ou seja, deveria cumprir pena em um presídio. O governo argumenta que o problema será solucionado com a construção de novos presídios.
Em vistorias realizadas neste ano, o Conselho da Comunidade constatou o alto índice de condenados, encarcerados em delegacias. De 50 homens que eram mantidos, em fevereiro, no 8º DP de Curitiba, 24 já havia sido condenados. Na carceragem da Delegacia de Furtos e Roubo de Veículos (DFRV), havia 25 condenados, em um universo de 63 detidos.
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“Nas vistorias, sempre nos deparamos com um índice muito alto de presos condenados, que estão nas delegacias. O índice geral é de 50%. A metade dos presos de delegacias é [formada por] condenados”, disse a presidente do Conselho da Comunidade, Isabel Kügler Mendes.
O último relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) – datado de 2015 – apontava que o Paraná era o estado que mantinha o maior número de presos em delegacias: mais de 9,1 mil pessoas. De lá pra cá, a lotação das carceragens paranaenses aumentou, chegando a conter 9,6 mil presos. Durante a campanha de 2010, o governador Beto Richa (PSDB) apresentou entre suas promessas a construção ou ampliação de presídios, mas nenhuma unidade chegou a ser inaugurada.
Enquanto isso, a situação das delegacias no estado segue caótica. Só em um fim de semana (27 e 28 de maio), unidades de três cidades do Paraná registraram fuga de presos. Na de Peabiru, no Noroeste do Paraná, por exemplo, 11 homens escaparam – cinco deles eram condenados. Também no mês passado, 18 presos – todos condenados – promoveram uma fuga em massa do 1º Distrito Policial (DP), em pleno Centro de Curitiba.
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Reações
A superlotação e alto número de condenados cumprindo pena em delegacias também já provocou a reação da Defensoria Pública do Paraná, que tomou uma atitude drástica: em 2014, a entidade ingressou com um pedido judicial de relaxamento coletivo de prisão, ou seja, que todas que pessoas que estavam detidas em delegacias de 13 cidades do estado fossem postas em liberdade.
A Justiça negou a solicitação, mas o governador decretou que as carceragens fossem esvaziadas e os presos, transferidos para presídios. A determinação do governador, por sua vez, não saiu do papel. “Foi um decreto que acabou não vingando e voltamos a ver a lotação de sempre. [A manutenção de presos em delegacias] é o maior problema que temos hoje no sistema penitenciário”, apontou o defensor público, Henrique Camargo.
A Adepol também foi à Justiça pedir a retirada dos presos dos distritos policiais. A associação entrou com uma ação, com pedido de antecipação de tutela, mas a juíza Patrícia de Almeida Bergonse, da 3ª Vara de Fazenda Pública de Curitiba, negou a liminar, considerando que não havia urgência na decisão. O mérito ainda será julgado pelo Judiciário.
“O STF já reconheceu a gravidade da situação carcerária no país, e no Paraná isso se agrava com a custódia de presos em delegacias. É papel do Ministério Publico e do Poder Judiciário, como órgãos de controle, exigir as providências cabíveis do Poder Executivo. Há mecanismo para isso, e confiamos que serão utilizados”, disse o diretor jurídico da Adepol, Pedro Felipe de Andrade.
“Não há previsão legal para presos ficarem em delegacia”, ressalta defensor
A Lei de Execuções Penais (LEP) aponta que os presos que tiverem condenação transitada em julgado devem cumprir a pena em presídios. Por isso, a Defensoria Pública do Paraná destaca que a manutenção de presos em delegacias da Polícia Civil configura uma ilegalidade.
“A lei determina que os presos definitivos fiquem em penitenciárias. Não há previsão legal para os presos ficarem em delegacia”, disse o defensor público Henrique Camargo.
Além de provocar impacto às próprias delegacias, o encarceramento de presos nos distritos policiais impossibilita a ressocialização dos detentos, que não podem trabalhar, estudar e ter acesso a visitas – direitos assegurados pela LEP. “Nem o RDD [Regime Disciplinar Diferenciado –o modalidade mais rigorosa de cumprimento penal] tem condições tão severas como a delegacia”, apontou Camargo.
“Nas delegacias, eles [os presos] ficam amontoados. Dormem uns por cima do outros. Não têm, em muitos casos, nem lugar pra fazer as necessidades. Nem bicho vive daquele jeito”, acrescentou Isabel Mendes, do Conselho da Comunidade.
A Defensoria, o Conselho e a Associação dos Delegados do Paraná destacam que mesmo os presos provisórios não deveriam ser mantidos nas celas de delegacias, como vem acontecendo no estado. Em condições ideais, as carceragens deveriam manter os detidos apenas por um curto período, até que eles fossem encaminhados a uma cadeia pública.
“Embora a administração chame as delegacias de cadeia, não são cadeias. No Paraná, nós só temos duas cadeias, que são as Casas de Custódia. Uma cadeia não pode funcionar junto de uma delegacia, que tem a função de exercer atividades de polícia judiciária, de fazer investigação”, disse Camargo.
“Os presos só não ‘viram’ a delegacia, porque não querem”, diz delegado
A delegacia de Terra Rica – cidade de 15 mil habitantes, no Noroeste do Paraná – funciona à beira do colapso. A carceragem conta com apenas duas celas, onde estão amontoados 40 presos – dos quais 24 já são condenados, segundo dados do final de maio. A unidade está interditada, mas, ainda assim, continua a receber detidos. Só neste ano, o delegado João Paulo Sorigot de Souza já encaminhou mais de dez ofícios a diversos órgãos, como Conselho Estadual de Transferência de Presos, Justiça e Departamento Penitenciário, mas não obteve respostas.
A promotoria da Comarca chegou a ingressar com uma ação civil pública pedindo a remoção dos detidos, mas não houve resposta efetiva por parte do governo.
“Causa indignação pelo abandono com o ser humano. Pra ser sincero, os presos não vão ‘viram’ a delegacia [fazem rebelião] porque não querem”, disse o delegado. “A situação está aqui, pra quem quiser ver”, acrescentou.
Segundo Sorigot de Souza, o preso condenado “mais antigo” já está há sete anos detido na carceragem. Em 2016, ele conseguiu com que apenas um preso fosse encaminhado ao sistema prisional. Com equipe enxuta, apenas um investigador e um agente carcerário permanecem na delegacia em cada turno. As tentativas de fuga são recorrentes.
“A gente está muito vulnerável. Praticamente toda semana tem alguma coisa: é preso que serra um grade, é tentativa de cavar um buraco. No fim do ano passado, cinco conseguiram fugir”, contou o delegado.
Há três anos na Polícia Civil do Paraná, Sorigot de Souza já foi delegado em Goiás, estado em que havia uma realidade diferente, pelo menos no que diz respeito aos presos. “Não adianta falar que em todo estado é assim, porque não é. Lá [em Goiás] não tinha isso. São Paulo não tem”, apontou o delegado. “Profissionalmente, a gente vai ficando frustrado”, disse.
Para outro delegado do interior do Paraná, o estado têm se omitido ao longo dos anos, fazendo com que a situação tenha chegado ao insustentável. O policial é responsável por uma delegacia onde 162 presos são mantidos em um espaço projetado para 32 pessoas. Mais de 80, segundo ele, são condenados. Pelo menos cinco destes, estão na carceragem há mais de quatro anos.
“As carceragens foram criadas para ser espaço provisório. Mas que provisório que é esse que se arrasta mais de quatro anos? É humanamente impossível. Eu não aguento mais, rapaz”, disse, na condição de não ser identificado.
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De acordo com o delegado, todos os dias ele é obrigado a desviar parte de sua equipe para atender a demandas dos presos – como escoltá-los ao médico ou a audiências judiciais. Como ele também é responsável por outras quatro cidades, o serviço de investigação fica em segundo plano. Além disso, ele menciona riscos aos próprios servidores.
“As carceragens ficam muito próximas da parte administrativa e a delegacia fica em área urbana. Você está atendendo o povo e tem preso gritando. Sempre que tem tentativa de fuga, é um estresse pra todo mundo”, contou. “O governo não construiu uma cela, nem uma cela. Eles dizem que diminuiu o número de presos em delegacias, mas o que acontece é que estão adotando uma política de soltar os presos para ter rotatividade no sistema [prisional]”, completou.
Solução virá com novos presídios, diz Sesp
A Secretaria de Estado da Segurança Pública e Administração Penitenciária (Sesp) disse, por meio de nota, que a “solução para o caso de presos em delegacias são as 14 obras de construção e ampliação de unidades prisionais no Paraná”. De acordo com a pasta, os trabalhos já estão andamento e, ao fim das obras, serão abertas cerca de sete mil novas vagas em unidades prisionais do estado.
De acordo com a Sesp, “houve avanços” na questão. A Secretaria argumenta que em 2011 havia cerca de 14 mil presos sob custódia da Polícia Civil e que “hoje o número é de aproximadamente nove mil”. “Semanalmente, o Comitê de Transferência de Presos (Cotransp), autoriza a transferência de até 100 presos de delegacias para o sistema prisional. No entanto, as vagas só são abertas com a saída de presos e, para isso, é preciso autorização do Poder Judiciário”, argumenta a Sesp.
A secretaria também menciona que tem adotado o uso de tornozeleiras eletrônicas, em presos que cometeram crimes de menor potencial ofensivo. “O número de presos monitorados subiu de 500, no início de 2015, para quase cinco mil, este ano - uma eficiente política de desencarceramento”, destaca a pasta. “Com a abertura de quase sete mil novas vagas no sistema penitenciário e o uso, cada vez mais frequente, das tornozeleiras eletrônicas será possível retirar os presos das carceragens das delegacias” finaliza a Sesp.
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