O cheiro podre do Rio Pequeno – em São José dos Pinhais, quase na divisa com Curitiba – já não incomoda Francisco de Souza Júnior, de 31 anos. Acostumou-se. Há pouco mais de seis meses, ele passa a maior parte do dia metido no veio, com a água escura a correr na altura das canelas. Dali, do leito do riacho, ele retira “no braço” e com ferramentas rudimentares a areia que, em seguida, vai vender clandestinamente para lojas de materiais de construção. Trabalho pesado. Ressalta que não está ali porque quer, mas considera que foi empurrado àquela ocupação pelo desemprego que assola 617 mil pessoas no Paraná.
“É a necessidade. Se não fosse isso, eu tava parado. Então a gente vem. É o que, bem ou mal, tá botando comida na minha mesa. Era isso ou fome”, disse Souza Júnior, pai de quatro crianças e casado com uma mulher que trabalha como catadora de recicláveis.
DETALHES: Veja vídeo e imagens do trabalho degradante no Rio Pequeno, em São José dos Pinhais.
Assim como ele, pelo menos outras quatro pessoas passaram a viver da extração manual de areia da calha do Rio Pequeno. Enquanto São José dos Pinhais se consolida como o segundo maior PIB do Paraná (mais de R$ 23 bilhões ao ano), eles permanecem à margem – quase que literalmente. Todos moram na vila São Judas Tadeu – uma área de ocupação que fica perto dali – e estão sem emprego formal há mais de um ano, quando trabalhavam em postos como servente de pedreiro ou ajudante de serviços gerais.
“Eu mandei mais de 30 currículos, gastei sola de sapato atrás [de emprego] e nada. Nem pra entrevista não chamam. Aí, caí aqui”, contou Diogo Santos. “A gente faz na mão o serviço de dragas”, definiu.
Daqueles cinco trabalhadores, o que mais chama atenção é J.C.S., de 15 anos. O menino franzino cursou até a sétima série, mas abandonou os cadernos para empunhar a pá e a enxada no Rio Pequeno, em troca de cerca de R$ 60 por dia. O dinheiro vai ajudar a manter o casebre, em que mora com a mãe – que trabalha como diarista – e duas irmãs. Pensar em um emprego formal parece ser algo distante para o rapaz, que sequer pode se dar ao luxo de sonhar com o futuro. Para ele, a vida é o presente.
“Nunca pensei em profissão nenhuma. A gente precisava [de dinheiro], então eu vim”, disse, resignado. “O ruim é que é serviço pesado. No começo, achava a água fria. Mas a gente acostuma”, completou o jovem, em uma tarde em que os termômetros marcavam 9ºC. Assim, à revelia dos tios, ele continua à cata de areia.
“Ele [J.C.S.] é novo. Devia estudar, senão vai morrer puxando areia. A gente, que é mais velho, tá nessa porque não tem outra coisa, mas ele devia pensar em ir pra escola e ter algo melhor”, opinou Francisco Júnior, que não completou o ensino médio.
O “trabalho”
Para a extração de areia, o grupo sai em duplas, cada uma em sua jangada, em direção aos pontos que aparentam acumular material de melhor qualidade. O mineral é retirado do fundo do veio com a ajuda de uma lata perfurada, presa a um cabo de madeira. Com as embarcações lotadas, retornam à beira do rio e descarregam a areia à pá, em uma espécie de porto improvisado. Ali, um deles se põe a peneirar a carga e ajeitar os montes. Cada dupla faz 12 viagens por dia, que rendem um total de 12 metros cúbicos de areia.
Para proceder à coleta, os trabalhadores precisam necessariamente entrar no rio – e dar de ombros ao mau cheiro e à poluição. Vão descalços, mesmo, sem qualquer proteção e expostos a risco de eventuais contaminações. O jovem J.C.S. contou que, por várias vezes, cortou o pé em pedras ou objetos depositados no fundo o riacho. Mesmo assim, com os ferimentos à água suja, continuou o trabalho.
“Sorte que não fiquei doente”, disse. “Medo a gente tem. Se se machucar ou se ficar doente, a gente fica feio no trecho. Não tem uma segurança, não tem nada. Então, é cuidar e rezar pra não dar nada”, acrescentou Souza Júnior. “Dia sem vir é dia sem ganhar dinheiro”, acrescentou, para justificar o risco.
A julgar por relatório do Instituto Ambiental do Paraná (IAP) emitido dois meses atrás, a preocupação tem motivo. Aquele trecho do Rio Pequeno é classificado como “poluído”, “com condições de oxigenação ruins, em função de cargas poluidoras”. A análise da água indica a presença de esgotos domésticos, de dejetos e de sabões e identifica “despejos clandestinos de indústrias, comércios e residências”. “Até o motel joga água aqui”, afirmou J.C.S. “A gente já viu até camisinha boiando”, completou.
Toda atividade ocorre de forma clandestina, já que o grupo não tem licença do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para extrair areia do veio. No ano passado, o IAP chegou a identificar e multar uma empresa que lançava no Rio Pequeno águas do processo de lavagem de areia, o que provocava a alteração da qualidade da água.
A venda
Sem patrões, os trabalhadores atuam de forma autônoma. Os montes arrancados do Rio Pequeno são vendidos diretamente a lojas de materiais de construção ou a freteiros, que pagam R$ 180 a cada seis metros cúbicos de areia (o que equivale a um caminhão cheio). Os atravessadores vão revender ao consumidor final o mesmo produto por mais que o dobro do preço, o que deixa os trabalhadores do Rio Pequeno com um gosto de exploração na boca. “A gente não acha muito certo, mas eles dizem: ‘Não quer, vende pra outro’. Então não tem muito o que fazer”, disse Souza Júnior.
Degradante
A atividade exercida pelos coletores de areia no Rio Pequeno pode ser enquadrada como trabalho degradante, de acordo com a definição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), já que o labor transcorre em condições completamente inadequadas, sem observância a quaisquer normas de segurança, saúde e higiene.
“É uma conjuntura que aparentemente decorre da falha ou ausência do Estado, em diversos níveis. Quais são os programas, do ponto de vista da assistência social, que existem para que essas pessoas não chegassem aquele ponto? Do mesmo modo, e os serviços de saúde e as autoridades de meio ambiente? O Estado precisa garantir condições mínimas a essas pessoas, para que não fiquem expostas a esse tipo de atividade”, avaliou a procuradora Margaret Matos de Carvalho, do Ministério Público do Trabalho (MPT) do Paraná.
Programa encerrado em 2015
Questionada sobre que tipo de programas de capacitação ou geração de renda mantém na vila São Judas Tadeu, a prefeitura de São José dos Pinhais informou que a última iniciativa voltada especificamente àquela área foi encerrada no início de 2015. Tratava-se de um programa desenvolvido em parceria entre a Secretaria de Trabalho, Emprego e Economia Solidária (Setrab) e a Fundação Volkswagen, por meio da qual moradores da localidade podiam frequentar curso de “corte e costura”. O projeto foi interrompido porque as aulas ocorriam em imóvel emprestado, que foi solicitado pelo proprietário.
De acordo com a prefeitura, antes do fim do projeto, as atividades migraram para o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) Parque da Fonte, “porém a própria comunidade não deu seguimento em se manter junto ao programa”. O CRAS mencionado pela prefeitura fica do outro lado do Rio Pequeno, a mais de quatro quilômetros da vila São Judas.
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