Uma sentença, proferida pela 5.ª Vara Criminal de Curitiba em dezembro, expôs as entranhas da Justiça, revelando a falta de igualdade no rito judicial. Em fevereiro de 2015, 32 pessoas foram acusadas, pelo Ministério Público, de participar de um núcleo usado para desviar dinheiro da Assembleia Legislativa do Paraná: 31 foram julgadas, mas para uma delas ainda nem começou a fase de ouvir testemunhas no processo. Trata-se do deputado estadual Nelson Justus (DEM), apontado pelo MP como o comandante do núcleo. O caso foi revelado pela série de reportagens Diários Secretos, divulgada pela Gazeta do Povo e pela RPC em 2010.
A diferença no ritmo de julgamento ficou perceptível depois do desmembramento do processo. Inicialmente, era uma ação judicial única, que foi encaminhada para o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) por causa do foro privilegiado a que Justus tem direito. Os desembargadores decidiram, então, que a parte referente aos réus sem prerrogativa de foro deveria ser encaminhada para a primeira instância. Foi aí que a ação começou a tramitar mais rapidamente para os demais acusados. A denúncia foi prontamente aceita pela Justiça e os prazos processuais começaram a correr. Isso aconteceu ainda em 2015 – na mesma época os desembargadores não tinham nem mesmo apreciado se aceitariam a acusação contra Justus.
ENTENDA: a diferença na tramitação dos processos na Justiça
Uma diferença no rito judicial foi fundamental para a demora. Enquanto que na primeira instância a Justiça analisa se há fundamentos suficientes para acatar a denúncia e só depois abre prazo para a chamada defesa prévia, na segunda instância – no caso, no Tribunal de Justiça – primeiro é aberto o prazo para que a defesa se manifeste e só depois é avaliado o recebimento do processo. No caso de Justus, o TJ intimou o advogado errado. A confusão levou nove meses para ser contornada. Até hoje a situação caso não foi esclarecida, já que o tribunal se recusou a comentar o caso.
Enquanto o processo dos 31 réus caminhava, a ação criminal contra Justus continuava parada. Depois que a assessoria jurídica do deputado apresentou a defesa prévia, os desembargadores passaram a debater se deveriam aceitar a denúncia. Foram muitos meses de discussão. O processo era frequentemente retirado da pauta de votação por causa de pedidos de vista. Em uma das situações o magistrado ficou quatro meses analisando o processo, desrespeitando o prazo de 14 dias.
Só em novembro de 2016 é que o Órgão Especial do Tribunal de Justiça decidiu que havia fundamentos suficientes para aceitar a denúncia contra Justus, permitindo que o processo começasse a tramitar. Mas aí foi aberta uma nova etapa de recursos, como embargos de declaração, e também houve a troca do relator do processo – o que também resultou em demora. Assim, o caso se arrasta no último ano, sem previsão de julgamento. No mesmo período de tempo, dezenas de depoimentos foram tomados na ação envolvendo os outros 31 réus – inclusive foram ouvidos deputados, o que costuma atrasar processos, já que autoridades têm a prerrogativa de escolher a data e o local das audiências.
Mesmo com uma série de entraves jurídicos e advogados renomados – alguns inclusive atuam nos processos da Operação Lava Jato – a ação criminal de primeira instância chegou a um desfecho em dezembro de 2017, levando à condenação de 17 pessoas: 16 funcionários que eram ligados ao gabinete do deputado estadual Nelson Justus (DEM), à época em que ele era presidente da Assembleia Legislativa do Paraná, e o ex-diretor-geral Abib Miguel.
Privilégio
O caso também serve para debater o foro privilegiado. Os defensores do modelo atual alegam, entre outros argumentos, que o direito de ser julgado por instâncias superiores “encurta” o processo, diminuindo a quantidade de recursos processuais. Foi o caso do Mensalão. Ao serem julgados diretamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), os envolvidos não tiveram a quem recorrer nos casos de condenação. O processo demorou, mas se começasse na primeira instância, talvez ninguém tivesse ido para a cadeia.
Apesar desse argumento, é inegável que os tribunais superiores não são preparados para julgamentos criminais. As estruturas são pensadas para a análise de recursos e não para ouvir depoimentos e outros procedimentos da instrução processual. O que é corriqueiro nas varas criminais acaba virando uma situação extraordinária nos tribunais – causando demora.
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Há um porém a ser considerado: enquanto o processo dos 31 réus entra agora na fase de recurso, sem previsão de julgamento, e com todos esperando a apreciação em liberdade, a situação seria muito diferente para Justus caso ele fosse condenado pelo TJ. Com a decisão do STF que determina a prisão a partir de julgamentos por colegiados de magistrados, o deputado teria de cumprir pena imediatamente após uma eventual condenação. Contudo, no ritmo em que está, o caso caminha para a prescrição – que é a perda do poder de julgar. Ou seja, independentemente de culpa ou inocência, a Justiça nada poderá fazer sobre o assunto, porque passou muito tempo entre o suposto crime e o julgamento.
O MP levou quase cinco anos para oferecer a denúncia. O argumento foi de que a investigação era muito complexa, envolvendo quebras de sigilos bancários e perícias (tanto de movimentações financeiras como grafotécnicas, para comprovar falsidade em assinaturas e identificar a pessoa que preencheu cheques em sequência). O resultado foi uma acusação baseada em documentos e depoimentos, cuja inicial tem quase 500 páginas. Já são quase três anos do processo no Tribunal de Justiça, sem previsão de desfecho.
Entenda o caso
A série Diários Secretos mostrou, entre outras irregularidades, que era uma prática recorrente na Assembleia Legislativa contratar funcionários fantasmas para desviar o dinheiro dos salários. Com relação ao deputado estadual Nelson Justus, restou provado que mais de 30 pessoas de duas redes familiares foram empregadas em gabinetes ligados a ele. As reportagens revelaram que algumas nem conseguiam explicar para qual trabalho foram contratadas.
A investigação do Ministério Público apontou que os gabinetes ligados a Justus consumiam, em salários, R$ 1 milhão por mês – o setor chegou a 180 funcionários, dez vezes mais do que o permitido. Os pagamentos levantaram suspeitas. Uma perícia indicou que um assessor preenchia cheques, sacados, em sequência, na boca do caixa da agência que funcionava dentro da Assembleia. Seriam ao menos 104 cheques de, pelo menos, cinco parentes dele, contratados como funcionários da Casa. Além disso, num único dia, ele sacou em espécie, R$ 88 mil referentes a 17 cheques de 17 correntistas diferentes, todos funcionários contratados por Justus. Os saques foram feitos no intervalo de 4 minutos. Casos de assinaturas falsificadas também foram comprovados.
Na primeira instância, o caso foi separado em quatro processos, divididos por níveis de atuação e por grupos familiares. Juntas, as sentenças chegam a quase mil páginas, proferidas pela juíza Luciana Fraiz Abrahão, da 5ª Vara Criminal de Curitiba, em dezembro. Pelos crimes de formação de quadrilha, peculato (desvio de recurso público), falsidade ideológica e lavagem de dinheiro, 17 réus foram condenados a penas que, juntas, somam 195 anos de prisão. Para Sergio Roberto Monteiro, ex-chefe de gabinete de Justus, Edson Artur Borrin e Luís Alexandre Barbosa, considerados como auxiliares diretos do deputado, as penas foram mais pesadas: cada um foi sentenciado a 49 anos e seis meses de prisão. Eles foram considerados responsáveis por montar a rede de parentes nomeados. As sentenças também absolveram 14 acusados. Cabe recurso tanto para o Ministério Público como para as defesas. Todos os envolvidos negam as acusações.
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