Dois meses depois de ter iniciado um pente-fino em alvarás expedidos entre 2013 e 2016, a Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) confirmou uma série de irregularidades nas autorizações para construção e ocupação de imóveis comerciais em Curitiba. Dos 44 licenciamentos urbanísticos analisados até agora, 27 foram suspensos preliminarmente. Entre os casos, estão a liberação de exploração comercial de imóvel com área 13 vezes maior que o permitido pelo zoneamento urbano e a substituição de medidas mitigadoras sem previsão legal.
Dentro de um ano, o Conselho Municipal de Urbanismo (CMU) pretende revisar 389 processos de licenciamento urbanístico, concedidos na gestão do ex-prefeito Gustavo Fruet (PDT). A auditoria foi instituída dois dias antes de o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) ter deflagrado a “Operação Al Barã”, que investiga um suposto esquema de fraudes na emissão de alvarás.
Por meio da lei de acesso à informação, a Gazeta do Povo teve acesso aos oito primeiros licenciamentos analisados pela auditoria do CMU – todos considerados irregulares. Um dos documentos (124.726/16) trata do processo que autorizou o uso comercial do imóvel que serve como sede ao Conselho Regional de Farmácia (CRF-PR). O casarão de 1.329 metros quadrados se localiza em uma área residencial (classificada como ZR3), que permite imóveis comerciais de até 100 metros quadrados.
OUTRO LADO: veja o que dizem os donos dos alvarás sob suspeita
Outro caso diz respeito ao processo 830.002/2015, que autorizou a edificação da escola Anjo da Guarda, no bairro Cascatinha, que ainda está em obras. Ao fim do processo, a prefeitura liberou a construção de um prédio de três pavimentos e área construída de 15.437 metros quadrados. O zoneamento urbano local, no entanto, permitia apenas imóveis de dois andares. Além disso, construções com mais de 5 mil metros quadrados só poderiam ser autorizadas naquele local mediante a compra de potencial construtivo. Essa aquisição, porém, foi substituída por outras medidas compensatórias, que, além de contrariar a lei, eram “inferiores ao valor a ser adquirido em potencial construtivo”, o que pode “ter causado prejuízo ao erário público”.
Segundo a atual gestão – do prefeito Rafael Greca (PMN) –, as irregularidades começaram a ocorrer quando, em 2013, a SMU criou os conselhos deliberativo e superior, na era Fruet. Estes órgãos passaram a emitir os licenciamentos urbanísticos, que antes eram analisados pelo colegiado do Conselho Municipal de Urbanismo. Para o secretário atual da pasta, Marcelo Ferraz Cesar, essa descentralização favoreceu o afrouxamento na emissão dos alvarás.
“Em todo município, há um conselho único, como o Conselho Municipal de Urbanismo. Não existe a figura de dois conselhos superiores, porque o colegiado que é autêntico e formado por membros qualificados para discutir a matéria urbanística. Tem que ter esse rigor”, destacou.
Além do aspecto administrativo, a “farra dos alvarás” também é investigada sob o aspecto criminal. Em ligação interceptada pelo Gaeco em dezembro do ano passado, o então secretário de Urbanismo, Reginaldo Cordeiro, disse que 80% dos licenciamentos autorizados pelos conselhos ocorriam à revelia da lei. Também no ano passado, Cordeiro foi alvo de mandado de condução coercitiva e de busca e apreensão, a pedido do Gaeco. Na ocasião, oito pessoas chegaram a ser presas temporariamente.
Suspensões e impactos
Os 27 processos considerados irregulares foram suspensos preliminarmente pela SMU. Os responsáveis pelos imóveis serão notificados a apresentar defesa em um prazo de dez dias. A partir de então, o Conselho Municipal de Urbanismo deve avaliar a argumentação da defesa. Dependendo da análise, os casos poderão ser regularizados, a partir de medidas compensatórias ou mitigadoras prevista pela legislação ambiental e definidas pelo CMU.
“Os casos mais graves, em que o conselho entender que a irregularidade é irreparável, ocorrerá a adoção da anulação do ato administrativo e a abertura de medidas para apuração de responsabilidades”, disse Ferraz Cesar. “Por enquanto, as licenças ficam suspensas. Em caso de obras, elas devem ser paralisadas automaticamente, porque [a autorização] está anulada. Não pode dar sequência”, completou.
A liberação para ocupação comercial ou construções diferentes dos parâmetros estabelecidos pelo zoneamento urbano pode trazer impactos negativos à ocupação da cidade. Um dos pontos mais evidentes ao cidadão é o trânsito. Um dos processos destaca que “o sistema viário existente na área não possui infraestrutura necessária para absorver o impacto resultante do empreendimento liberado”.
“O impacto desse tipo de liberação irregular é sempre coletivo. É o fluxo que causa naquele setor, porque não tem estrutura viária para absorver aquele fluxo, é a falta de vagas para estacionamento”, exemplifica o secretário.
Outro lado
A Rede Marista de Colégios (RMC) – responsável pela escola Anjo da Guarda – disse, por meio de nota, que “a obra e o terreno não são propriedade do grupo, mas que se trata de um built-to-suit realizado por terceiros, com contrato de locação com a RMC em um projeto iniciado há três anos”. A entidade aponta que, no momento da formalização do acordo, “todos os documentos necessários foram apresentados, constando as devidas aprovações dos órgãos competentes”.
Já o CRF-PR disse que “vem realizando medidas no sentido de regularizar a situação perante a municipalidade, por meio dos procedimentos administrativos pertinentes”. O conselho destaca que na notificação não houve menção de que “a liberação do uso comercial ocorreu de forma irregular”. Além disso, a entidade aponta que há “informação em guia amarela da existência de alvará anterior expedido com finalidade comercial para o mesmo imóvel, pela Secretaria de Finanças, para área construída de aproximadamente 1 mil metros quadrados.
Veja as notas na íntegra
Posicionamento do Grupo Marista
“O terreno e a obra em questão não são de propriedade da Rede Marista de Colégios. Trata-se de um built-to-suit realizado por terceiros com contrato de locação com a RMC em um projeto iniciado há três anos. No momento da formalização do acordo todos os documentos necessários foram apresentados, constando as devidas aprovações dos órgãos competentes.”
Posicionamento do CRF-PR
“De fato procede a informação de que a Sede do CRF-PR, em Curitiba, estaria instalada em região que não comporta atividades comerciais ou de prestação de serviços em imóveis com mais de 100 metros quadrados.
Tal situação é de conhecimento da Entidade que vem realizando medidas no sentido de regularizar a situação perante a municipalidade, por meio dos procedimentos administrativos pertinentes.
Mas alguns pontos merecem esclarecimento para melhor compreensão da situação:
O primeiro consiste no fato de que o CRF-PR foi notificado da suspensão do parecer concedido pelo Conselho Deliberativo da CMU, que por sua vez acolhia os argumentos do CRF-PR para a regularização mediante atendimento de condições. Tal notificação determinava a apresentação de defesa pelo CRF-PR tão somente em relação a tal sobrestamento da autorização, medida já adotada mediante protocolo realizado em 17/07/2017, com as mesmas razões expostas nesse texto e com requerimento de extensão da autorização, ainda que precária.
Não houve nessa notificação qualquer menção de que a liberação do uso comercial ocorreu de forma irregular.
Outro aspecto diz respeito a informação em guia amarela da existência de alvará anterior expedido com finalidade comercial para o mesmo imóvel, pela secretaria de finanças, para uma área construída de aproximadamente 1000 metros quadrados.
Ainda pertinente a informação existente na mesma guia amarela, de que “Poderá ser concedido a critério do CMU, alvará de funcionamento para comércio e serviço vicinal e comunitário 1 em edificações existentes e com porte superior a 100 metros quadrados desde que com área de estacionamento de no mínimo igual a área construída e porte compatível com a vizinhança habitacional e com as características da via”.
O caso do CRF-PR amolda-se perfeitamente a essa hipótese na medida em que utiliza construção já existente na região (não houve construção do imóvel pela Entidade), com porte superior a 100 metros quadrados (que inclusive conta com aprovação da utilização comercial para 994 metros quadrados, como acima mencionado). A exigência do estacionamento compatível foi solucionada com a aquisição do terreno de Identificação Fiscal I.F 34.071019, no ano de 2015, já instalado e em funcionamento, bastando apenas a unificação.
Por fim, a notícia de que existia também sobre o imóvel bloqueios decorrentes de irregularidades nas instalações hidrossanitárias, constatado em vistoria técnica ambiental realizada pela SANEPAR, situação regularizada pela Entidade e retirada da relação de impedimentos, que demonstra a efetiva intenção do CRF-PR em regularizar a pendência com a administração municipal.
Assim, diante da defesa apresentada pelo CRF-PR e dos relevantes argumentos acima mencionados, os quais, entendemos, serão suficientes para o acolhimento do pedido, nenhuma medida poderá ser adotada até a posição definitiva do órgão responsável.
Os documentos que embasam as informações acima estão à disposição da imprensa para consulta e averiguação.”