A Justiça Federal pode concluir até o final do ano o processo envolvendo o Instituto Confiancce, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) de Curitiba que ao longo de quase dez anos firmou dezenas de termos de parceria com municípios do Paraná - e acabou alvo da Operação Fidúcia, da Polícia Federal, em meados de 2015. Entre o final de setembro e o início deste mês, foram interrogados todos os oito réus da ação penal, que trata de crimes como peculato, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Entre eles, está Cláudia Aparecida Gali, gestora do Confiancce, que admitiu durante relato à juíza federal Gabriela Hardt ter usado “notas frias” para “cobrir o caixa” da Oscip.
Com experiência em recrutamento de pessoal, Cláudia Aparecida Gali abriu o Confiancce em 2005. O primeiro termo de parceria do instituto foi firmado com a Prefeitura de Piraquara, município da região metropolitana de Curitiba. A Oscip foi crescendo ao longo dos anos. Chegou a prestar serviços em áreas como saúde, educação, limpeza. Com ajuda de laranjas, Cláudia Aparecida Gali resolveu então criar mais uma Oscip, o Instituto Brasil Melhor, em 2007. No ano seguinte, abriu a empresa Med-Call Sul Serviços Médicos Ltda, no nome do companheiro, Paulo César Martins, também na lista de réus.
A partir daí, a unidade da Controladoria Geral da União (CGU) que atua no Paraná começou a detectar problemas. “Concluiu que havia uma confusão patrimonial e administrativa entre as entidades, consistindo praticamente em uma estrutura única para administrar os negócios. Assim, reduziam-se os custos operacionais e aumentavam os excedentes financeiros nas atividades das Oscips, que eram desviados e apropriados pelos integrantes da organização criminosa”, resume o Ministério Público Federal (MPF) na denúncia oferecida à Justiça Federal.
Segundo o MPF, no rol de despesas pagas pelas Oscips até a deflagração da Operação Fidúcia estão empregados domésticos, material de construção, motorista, IPVA, plano de saúde, professora particular dos filhos, material escolar, viagens internacionais. Quando interrogada sobre o assunto na Justiça Federal, Cláudia Aparecida Gali confessou que, no começo do Confiancce, houve “mistura” nas contas.
“Algumas despesas pessoais foram pagas com dinheiro da Oscip. Por um período houve confusão mesmo. Eu achava que era como uma empresa. No começo eu não sabia que Oscip não podia ter lucro. Em 2012, quando começou a ter fiscalização, aí a gente percebeu que estava fazendo errado”, justificou ela, durante interrogatório realizado no último dia 5.
Cláudia Aparecida Gali também admitiu que o Confiancce utilizou “notas frias”. Mas, ao contrário do que sustenta o MPF, que aponta as falsificações como um instrumento para desviar dinheiro em benefício próprio, a dona da Oscip alega que precisava “cobrir o próprio caixa” do instituto, devido a despesas extraordinárias de fato realizadas, mas sem nota fiscal.
Já o MPF destaca que a CGU estimou um desvio de ao menos R$ 13 milhões das duas Oscips “por meio de despesas fictícias”, a partir de registro de transações com empresas baixadas, dissolvidas, de fachada, em nome de laranjas (mortos, inclusive).
Na denúncia, o MPF lembra que, pela legislação, os recursos públicos recebidos pelas duas Oscips “deveriam ser integralmente aplicados nas finalidades contratadas”. “Na hipótese de eventual sobra de recursos, eles deveriam ter sido devolvidos, tendo em vista a vedação de apropriação dos valores como lucro pelas entidades”.
Mulher de conselheiro ganhou R$ 1 milhão em três anos
Sobrinha de Cláudia Aparecida Gali e casada com o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TC-PR) Fernando Guimarães, Keli Cristina de Souza Gali Guimarães recebeu pouco mais de R$ 1,3 milhão entre 2010 e 2013. Ela começou a trabalhar no Instituto Confiancce em 2007, com carteira assinada, quando ainda morava no interior do Paraná, em Palotina. Naquele período, segundo ela, seu salário “era no máximo R$ 8 mil, R$ 9 mil”. Quando se mudou para Curitiba, entre 2009 e 2010, Keli Cristina abriu uma empresa para receber seus pagamentos, de “R$ 20 mil a R$ 35 mil”.
“Não era fixo. Dependia dos termos de parceria. Às vezes chegava a R$ 35 mil, mas era eu quem pagava as despesas todas, usava meu carro, tinha o combustível”, justificou ela, que também figura na lista de réus, durante seu interrogatório à juíza federal Gabriela Hardt, no último dia 3.
Keli Cristina acompanhava a execução dos serviços prestados pelas pessoas contratadas pela Oscip e produzia relatórios a partir daí. Questionada pela juíza federal se considerava seu salário adequado, ou seja, se o valor estava de acordo com o mercado e com o serviço prestado, Keli Cristina assegurou que “sim, pelo que eu trabalhava, bastante, sim”.
Para a procuradora da República Renita Cunha Kravetz, que assina a denúncia, a remuneração de pessoas ligadas à Oscip “com valores muito acima do mercado” constitui “um mecanismo de desvio de recursos públicos, que caracteriza o crime de peculato”. “Oscips são consideradas entidades sem fins lucrativos, sendo vedada a distribuição de lucros ou de excedentes operacionais para os sócios, associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores”, aponta ela.
A defesa de Keli Cristina tem reforçado que ela não acompanhava a parte financeira da Oscip e que trabalhava apenas na elaboração dos relatórios de pessoal, sem qualquer conhecimento dos supostos crimes agora apontados pelo MPF. Keli Cristina é casada desde 2009 com o conselheiro Fernando Guimarães e trabalhou no Instituto Confiancce até 2013. Atualmente, ocupa um cargo comissionado na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (Alep).
Órgão auxiliar da Alep, o TC-PR é responsável por fiscalizar todos os recursos públicos em circulação no estado, inclusive termos de parceria firmados entre Oscips e prefeituras de municípios. De acordo com o TC-PR, Fernando Guimarães se declara impedido quando há julgamento envolvendo o Confiancce, e não participa das votações. Em função da relação com Keli Cristina, Fernando Guimarães chegou a ser alvo de uma sindicância no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Mas a investigação foi arquivada.
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