Oito meses e 12 dias depois de instaurar uma comissão de processo administrativo para punir os servidores envolvidos no caso dos Diários Secretos, o então presidente da Assembleia Legislativa do Paraná, Nelson Justus (DEM), na véspera de deixar o cargo, no dia 31 de janeiro de 2011, “engavetou” o procedimento. Com aval da Procuradoria Jurídica da Casa, Justus acatou pedido da comissão para suspender qualquer punição até a conclusão das ações judiciais sobre a denúncia de corrupção. Para o Ministério Público do Paraná (MP), a Assembleia pode ter cometido desídia (negligência) - e ser punida por isso.
“A medida à disposição do MP seria a propositura de ação civil pública por ato de improbidade administrativa”, diz a promotora Luciane Freitas, à frente do caso. É dela o enquadramento da situação kafkaniana como desídia - um termo jurídico que significa ter havido negligência proposital no cumprimento de uma função. Considerando que já se passaram 2.660 dias da suspensão - 7 anos e 3 meses - e nada foi feito pelo Legislativo estadual, mesmo com os acusados condenados pela Justiça Estadual, as suspeitas da promotora merecem atenção.
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Especial para a Gazeta do Povo, o Livre.jor teve acesso às partes do inquérito civil que não estão protegidas por sigilo. A verdade é que se não fosse uma denúncia feita ao Ministério Público do Paraná em agosto de 2016, provavelmente o “engavetamento” da investigação interna permaneceria despercebido. Foram necessários vários ofícios do MP até que a Assembleia Legislativa, em fevereiro de 2017, reavaliasse a suspensão do processo administrativo. Os trabalhos, contudo, não foram retomados e concluídos. No documento devolvido ao Ministério Público, Roberto Costa Curta, diretor-geral da Casa, argumenta que “os feitos instaurados em face dos servidores investigados ainda pendem de julgamento de recursos”.
Recursos seguram conclusão
“Conforme certidões explicativas da 9ª Vara Criminal de Curitiba emitidas em fevereiro de 2017, o servidor Claudio Marques da Silva foi condenado em três processos criminais, sendo que dois deles estão no Tribunal de Justiça do Paraná [TJ-PR] aguardando julgamento de recurso; o servidor José Ary Nassif foi condenado em duas ações criminais, ambas aguardando julgamento de recurso no Tribunal de Justiça; Abib Miguel foi condenado em duas ações criminais, sendo que em uma delas aguarda julgamento de recurso no TJ, e, na outra, foi condenado em 1º grau, mas o TJ anulou o processo e determinou o retorno dos autos à origem para renovação dos atos”, sublinhou Freitas para a reportagem.
“A administração pública não tem discricionariedade [para ‘engavetar’ processos administrativos]”, diz a promotoradentro do inquérito, “[devendo] impulsionamento do procedimento destinado a investigar e aplicar sanção a servidor público, em razão do cometimento de infração disciplinar, independentemente da existência de processo criminal sobre os mesmos fatos”.
No documento, Freitas diz que a desídia, na investigação interna da Assembleia sobre os Diários Secretos, é “indubitável”. Contudo, fará mais diligências antes de concluir o inquérito. “[É] necessário apreciar se houve má-fé dos envolvidos, requisito indispensável para a caracterização do ato de improbidade administrativa.”
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A reportagem aguardou por um mês que a Assembleia Legislativa se manifestasse sobre a suspeita de negligência na investigação interna sobre os Diários Secretos. Os reiterados contatos com a assessoria de imprensa da Casa foram infrutíferos. As perguntas feitas via Lei de Acesso à Informação, até a publicação desta reportagem, não tinham sido respondidas - decorridos 35 dias dos questionamentos, quando o prazo legal é de 20 dias. A solicitação continha pedido de cópia das atas de reunião realizadas pela comissão.
Do que consta no inquérito civil, depreende-se que a comissão de servidores do Legislativo destacada para definir punição aos envolvidos nos Diários Secretos, numa etapa seguinte à sindicância do Legislativo sobre o tema, apenas intimou Abib Miguel, José Ary Nassif e João Leal de Mattos a darem esclarecimentos. “Porém os investigados não compareceram e não foi realizada mais nenhuma diligência”, registrou nos autos a promotora Luciane Freitas.
Arquivamento tácito
Na investigação dos Diários Secretos, o MP incluiu o ex-presidente da Assembleia Nelson Justus no núcleo responsável pelo esquema de corrupção. O processo que trata do deputado, contudo, como revelou reportagem da Gazeta do Povo , não tinha nem entrado na fase de oitiva das testemunhas no começo deste ano. Enquanto isso, os outros 31 acusados já tinham sido julgados - todos foram acusados ao mesmo tempo pelo Ministério Público, em fevereiro de 2012.
De volta a maio de 2010, Justus, ao instaurar a investigação interna, pediu à comissão a “adoção das medidas legais cabíveis contra os envolvidos na presunção de autoria e contra os coautores citados”. No fevereiro seguinte, ao acatar a suspensão, num ato falho destacado pela promotora Luciane Freitas, o ex-presidente da Assembleia envia o documento para publicação e “após para arquivar”. Até a denúncia que motivou o inquérito, de fato, qualquer chance de punição administrativa estava “arquivada”.
Outro documento interno da Casa destacado no inquérito é um parecer opinativo da Procuradoria Jurídica. Assinada por Ayrton Costa Loyola, a peça admite que “apesar de não estar prevista em lei [a suspensão por prazo indeterminado enquanto tramitam as ações judiciais], se afigura plausível, especialmente em razão da cautela que deve imperar no âmbito administrativo, além do caráter de irreparabilidade de eventual sanção a ser imposta”.
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A comissão do processo administrativo tinha o mesmo temor das “graves consequências que podem resultar de uma eventual e antecipada sanção administrativa”, portanto “nada mais prudente que aguardar o deslinde final dos respectivos processos penais”. A promotora Luciane Freitas, entretanto, ao longo das suas manifestações no inquérito, ressalta que as comissões teriam 150 dias para decidir sobre as sanções administrativas do caso.
Diários secretos
A série de reportagens Diários Secretos revelou um esquema de corrupção que, pelas estimativas do MP, resultou no desvio de pelo menos R$ 200 milhões dos cofres públicos. Os diários oficiais da Assembleia Legislativa do Paraná não eram públicos. Os documentos foram reunidos, digitados e organizados pela equipe de jornalistas da Gazeta do Povo e da RPC.
Mais de 700 diários serviram de base para a sequência de reportagens. As informações culminaram em um banco de dados que mostrava toda a movimentação de funcionários do Legislativo. Foi possível desvendar um sistema de contratação de funcionários fantasmas e laranjas. O trabalho deu aos repórteres a maior premiação mundial do jornalismo investigativo, o Global Shining Light Award.
Esquema gafanhoto
Esse inquérito conduzido pela promotora Luciane Freitas não trata só dos Diários Secretos. Ela confere também se não houve desídia em outra comissão de processo administrativo da Assembleia Legislativa do Paraná, destinada a apurar desvio da restituição do Imposto de Renda dos servidores mediante “fantasmas” e “laranjas” - investigado pela Polícia Federal desde 2008, ficou conhecido como Esquema Gafanhoto.
O andamento do caso, dentro da Assembleia, todavia, apesar da mesma suspeita de negligência, teve outro desenrolar. A investigação interna não foi aberta por ato do presidente Nelson Justus, mas por portaria assinada por Benoni Manfrin e Bruno Garofani - respectivamente diretores geral e de pessoal - no dia 23 de maio de 2011.
Diferente da outra comissão, que não ouviu ninguém, aqui foram tomados 13 depoimentos. Mas a decisão acabou sendo a mesma, de sobrestar a investigação até a conclusão dos processos judiciais. Esse “engavetamento”, pedido pelos servidores à frente da investigação interna, foi acatado por Manfrin e Garofani. O inquérito não cita Valdir Rossoni (PSDB), então presidente da Casa, nem Justus, seu antecessor. Apesar das diferenças, o MP trata os dois casos no inquérito em andamento como desídia.