Fechado há cinco meses, o Banco de Tecidos Musculoesqueléticos (BTME) – conhecido como Banco de Ossos – do Hospital de Clínicas (HC) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) está no epicentro de uma investigação que pede o ressarcimento de R$ 14 milhões aos cofres públicos. O valor se refere aos recursos movimentados por uma entidade privada que geriu o banco entre 2007 e 2013. A apuração aponta que tecidos doados e captados pela unidade eram repassados clientes particulares – inclusive com sobrepreço – e que a empresa do diretor do banco, que também é médico do HC, foi subcontratada para emitir laudos.
Conduzidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), as investigações já se tornaram uma tomada especial de contas – espécie de processo administrativo deste órgão, com objetivo de apurar responsabilidades em relação a desvios e efetivar o ressarcimento aos cofres públicos.
Primeira unidade deste tipo a ser credenciada no Brasil, o Banco de Ossos do HC foi inaugurado em 1998 e funcionava em salas dentro do próprio hospital. Segundo a auditoria do TCU, os problemas começaram em 2007, quando o Banco passou a ser gerido pela Associação Banco de Tecidos Muscoesqueléticos (ABTME) – uma entidade privada, classificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip).
A ABTME fazia a captação de recursos para manter o banco funcionando, principalmente por meio do repasse (venda) de material a clientes particulares. Segundo o TCU, era a entidade “quem de fato recebia os valores pagos pelos tecidos fornecidos” a clínicas privadas e a pacientes de hospitais públicos, cujo ressarcimento era feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Na avaliação do tribunal, toda essa movimentação é irregular – “desprovida de amparo legal” – já que a ABTME não era detentora do credenciamento junto Ministério da Saúde. Na prática, o TCU entende que houve a terceirização da atividade fim do HC e a transferência indevida da autorização de funcionamento do Banco de Ossos a uma entidade privada.
Além disso, o TCU destacou outra irregularidade: a ausência da comprovação da rastreabilidade dos tecidos captados e distribuídos pela ABTME, como determina a legislação federal. Na prática, isso significa que o Banco de Ossos deveria documentar todo o “caminho” percorrido pelos tecidos, da captação à destinação ao receptor.
Sobrepreço de 1000% para particulares
Além disso, a auditoria detectou que os tecidos eram fornecidos às clínicas particulares com sobrepreço. Segundo o relatório do TCU, os valores cobrados pela ABTME dos clientes privados “superam a marca de 1000%” os valores ressarcidos pelo SUS. Mesmo que os preços pagos pelo SUS estivessem defasados, os auditores apontaram não haver motivos para a discrepância, “uma vez que a ABTME se utilizava das instalações do HC-UFPR (estrutura, água, energia elétrica, etc)”.
Segundo o TCU, a prestação de contas da ABTME impossibilitava “de se comprovarem os custos operacionais efetivamente incorridos” pela associação. Deste modo, o Tribunal “entende que deve ser impugnada a íntegra dos valores recebidos pela ABTME, que perfazem R$ 14.146.586,69”. O relator do caso, ministro Bruno Dantas, do TCU, considera que a então direção do HC foi omissa em relação às irregularidades e que também deve ser responsabilizada.
PF e MPF investigam se houve crime de comercialização de tecidos humanos
O MPF confirmou que há um procedimento instaurado para apurar se houve crime no repasse de tecidos humanos a clínicas particulares por parte do Banco de Tecidos Muscoesqueléticos (BTME) do HC. O órgão informou que aguarda a conclusão de inquérito solicitado à Polícia Federal (PF), que investiga o caso.
A investigação do aspecto criminal da atuação do Banco de Ossos foi uma das indicações do TCU. Segundo a auditoria realizada pelo órgão, a atuação da ABTME, que recebia pelos materiais fornecidos a clientes particulares, “dá ensejo à suspeita de comercialização de tecidos humanos, conduta vedada pela Constituição Federal e tipificada como ilícito penal”.
Para o relator do caso, ministro Bruno Dantas, do TCU, o fornecimento dos tecidos a clínicas privadas a valores que “superaram em 1000% os valores da tabela do SUS” indicam que houve a comercialização do material processado pelo Banco de Ossos.
“A ABTME, ao fornecer tecidos em valores destoantes dos padrões, não apresentou documentos que comprovassem que esses valores correspondiam aos custos de processamento dos tecidos, o que pode caracterizar lucro e configurar crime de comercialização de tecidos humanos”, consta do voto do ministro.
UFPR e HC esperam finalização de tomada de contas para se pronunciar
A Gazeta do Povo não localizou o então presidente da ABTME, Gérson de Sá Tavares Filho. A reportagem solicitou entrevistas ao advogado dele, Eduardo Szazi, mas não houve retorno.
A UFPR, por meio de sua assessoria de imprensa, disse que somente após o final da tomada de contas especial é que haverá definição sobre possíveis danos ao erário. A universidade informou que Tavares Filho foi servidor da instituição, mas que está aposentado. Já o HC aguarda a finalização da tomada de contas especial para adotar eventuais providências.
Empresa do diretor do Banco de Ossos foi contratada pela ABTME
Parte dos R$ 14 milhões arrecadados pela Associação Banco de Tecidos Muscoesqueléticos (ABTME) foi repassada à empresa médica do então diretor do Banco de Ossos do HC, o ortopedista Paulo Gilberto Cimbalista de Alencar. Segundo o TCU, Alencar e sua clínica receberam um total de R$ 1.125.053,29. O médico alega que a contratação foi a forma encontrada para que ele fosse remunerado pelo excesso de serviços que ele prestava na unidade.
A investigação apontou que os mais de R$ 1,1 milhão destinados a Alencar a título de honorários e pela emissão de laudos técnicos e outros serviços não especificados. O pagamento era feito diretamente ao ortopedista ou por intermédio da Alencar Médica S/S Ltda, clínica da qual o então diretor do Banco de Ossos detinha 99% do capital social.
Para o ministro do TCU, Bruno Dantas, que é relator do caso, a empresa de Alencar foi usada indevidamente para receber recursos da ABTME. “O servidor, que também era responsável técnico do banco de tecidos, utilizou-se da empresa da qual é sócio para receber valores da ABTME pela prestação de serviços de terceiros e emissão de laudos técnicos”, destacou o relator.
Segundo o TCU, os pagamentos feitos a Alencar caracterizam conflito de interesse, já que o médico possuía dois vínculos funcionais, no HC e na direção do Banco de Ossos. Quando foi questionado pelo tribunal, “o referido servidor quedou-se inerte”.
Outro lado: “eu achei que era um trabalho extremamente ético, justo”
Em entrevista à Gazeta do Povo, no entanto, o médico Paulo Gilberto Cimbalista de Alencar se manifestou e disse que o Banco de Ossos se tornou “grande demais”, o que provocou o aumento do trabalho. Por, então, ser o responsável técnico do BTME, Alencar disse que se viu obrigado a “ampliar” suas atividades e a “trabalhar fora do expediente”.
Por isso, a ABTME e ele, em conjunto, teriam definido a contratação da empresa e o pagamento de honorários como forma de remunerá-lo. Desta forma, Alencar ou sua empresa passaram a emitir laudos dos tecidos que eram captados, processados ou fornecidos pelo banco.
“Eu não quis afetar a associação [ABTME] cobrando um salário ou coisa parecida”, disse Alencar. “Então, os laudos ficaram como remunerações mensais, de acordo com o meu trabalho e com o movimento do banco (...). Foi [feito assim] para eu não ter salário e não onerar o banco. Eu achei que era um trabalho extremamente ético, justo”, completou.
Alencar confirma que recebia salários pelos seus vínculos com o HC, mas negou que recebesse adicionais por ser diretor do Banco de Ossos. Questionado sobre a investigação do TCU, ele disse que vai “explicar isso” e que espera “que eles entendam”. Ele destaca que continuou cumprindo sua carga-horária no HC e que não recebeu vantagens indevidas.
A UFPR informou que Alencar continua trabalhando normalmente no HC, mas que foi afastado da direção do BTME desde que as investigações começaram. O HC aguarda a conclusão da tomada de contas do TCU para tomar eventuais providências.
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