Uma série de audiências públicas marcada para começar nesta segunda-feira (25) irá apresentar a proposta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) para a nova lei de zoneamento da cidade. Consequência natural da revisão do plano diretor de 2014, o texto foi enviado à Câmara em 2016 pelo então prefeito Gustavo Fruet (PDT), e em seguida retirado da pauta de votações a pedido do sucessor dele, Rafael Greca (PMN). Mais tarde, em junho passado, um grupo de dez entidades que representam, primordialmente, os interesses do mercado imobiliário, pediu formalmente a revisão do projeto elaborado pela equipe do ex-prefeito.
Infográfico: veja as principais mudanças propostas na lei de zoneamento
A tarefa foi confiada por Greca a Alberto Paranhos, um economista urbano que trabalhou no Ippuc durante a era dourada da repartição, entre os anos 1970 e 80, e de lá saiu para fazer carreira no Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, o UN-Habitat. Aparentando bem menos que seus 69 anos de idade e apoiado numa bengala que lhe foi imposta por uma torção num dos joelhos, Paranhos recebeu a Gazeta do Povo numa casa de madeira – rincão favorito do prefeito quando despacha do Ippuc – dizendo que as mudanças em relação às regras atuais – mas não em relação ao projeto de Fruet – serão poucas. “No frigir dos ovos, não mudaremos mais que uns 5%, uns 8% do total”, afirmou.
Por ora, o Ippuc acena com apenas quatro mudanças que, se aprovadas, serão perceptíveis aos poucos no cotidiano da cidade. A principal é, nas palavras de Paranhos, “reequilibrar o uso misto das áreas de grande adensamento” – isto é, a região central e as vias estruturais, como o eixo Norte-Sul formado por avenidas como João Gualberto, Sete de Setembro e República Argentina, ou vias conectoras como o eixo Wenceslau Braz e João Bettega.
“Hoje, há pouco uso comercial no setor estrutural e pouca moradia no centro. Queremos que a cidade retome o uso misto desses espaços. Assim, haverá incentivos a construções comerciais e de serviços nas estruturais e a prédios residenciais na área central”, ele explicou. “O Centro sempre foi uma área primordialmente de trabalho, o que faz com que ele ‘morra’ à noite. É bom para a cidade que ele tenha mais gente morando e circulando”.
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A pedido de Greca, o Ippuc também preparou mudanças nas regras de outorga onerosa, um anexo ao zoneamento que define as condições para que empreendedores construam mais que o permitido habitualmente em determinada região. “O coeficiente básico [que indica quantas vezes se pode construir em relação à área do lote] para áreas de grande adensamento vai baixar. Onde o básico era quatro, passará a ser três, para um máximo de seis”. A intenção, Paranhos não esconde, é reforçar os combalidos caixas do município. “Vamos vender o que era dado de graça. A prefeitura precisa de dinheiro. Vamos tentar ganhar algum dinheiro aproveitando o dinamismo imobiliário”.
Também haverá mudanças nas regras que trocam galerias comerciais ou andares térreos abertos ao uso público por mais potencial construtivo – que o jargão técnico chama de prêmios. “Aquela torre na esquina da Conselheiro Laurindo com a Sete de Setembro (o edifício 7th Avenue, entregue há poucos anos) é a soma de todos os ‘prêmios’ previstos na lei. Hoje, todos podem ser acumulados. Não vai mais ser assim. Vamos convergir o que interessa à cidade. O que não interessar, cai. Poderemos ter construções desse tipo, mas elas não precisam ter 40 andares”, ponderou.
Por outro lado, o Ippuc decidiu aceitar a construção de dois andares de garagens em subsolo em empreendimentos fora do Centro e das vias estruturais – locais em que, atualmente, apenas um é autorizado. A grande vantagem disso, para o construtor, é que a área construída sob a terra não é computada na metragem que ele está autorizado a erguer.
Fim do estacionamento em recuos
Ao menos uma mudança pretendida pelo Ippuc parece fadada a gerar alguma chiadeira se de fato for aprovada: a proibição do uso de recuos de calçada como estacionamento em pequenos comércios de bairro, hoje permitida. “É uma demanda de moradores”, justificou-se Paranhos. “O que buscamos é preservar o miolo residencial dos bairros, que não será invadido por lojas de grande porte e assim verá preservado seu o comércio vicinal, local. E queremos que as pessoas façam mais coisas a pé”.
Na verdade, a mudança está no bojo de uma disputa – até agora indefinida entre Ippuc e empreendedores imobiliários – sobre a definição do porte de imóveis comerciais, que é determinado pela lei de zoneamento. Atualmente, pequenos comércios – os afetados pela mudança – são os que têm até 100 metros quadrados. “Ainda está em discussão [qual a nova área], mas será mais que isso. O que eles querem, e não vamos aceitar, é conjunto comercial em miolo de zona residencial”, afirmou o economista urbano.
“Esse tipo de empreendimento, nos últimos anos, se expandiu para o Centro Cívico e zonas antes residenciais como Batel e Mercês. Queremos redirecionar o crescimento do comércio e dos serviços de grande porte para as vias estruturais, onde está o transporte de maior capacidade. Não tem sentido, por exemplo, colocar um shopping center fora de uma estrutural”, argumentou.
“O que evita o uso do carro é a liberdade de uso da cidade. Se a escola, o hospital, o comércio, o serviço de maior porte for perto de casa, eu não preciso usar o carro. Há pontos de congestionamento na cidade por conta da aglomeração de usos. Quando só se permite empreendimentos maiores em certas regiões, isso obriga ao deslocamento de automóvel”, rebateu o arquiteto Frederico Carstens, diretor de Legislação Urbana da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura no Paraná (Asbea/PR).
Nos últimos meses, Carstens se tornou uma espécie de porta-voz informal do grupo de entidades que no Ippuc é chamado de G10, e reúne também Federação do Comércio (Fecomércio), Sindicato das Indústrias da Construção Civil (Sinduscon), Federação das Indústrias (Fiep), Sindicato da Habitação e Condomínios (Secovi-PR), Associação Comercial (ACP), Instituto de Engenharia (IEP), Conselho Regional Engenharia e Agronomia (Crea-PR), Associação dos Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi-PR) e Câmara de Valores Imobiliários (CVI-PR).
“Nossa opinião de quem executa a cidade é de que, agora que a cidade cresceu e se consolidou, deveria haver mais liberdade com relação a usos e portes comerciais. Hoje, é muito difícil achar um local para instalar uma escola, por exemplo. Com isso, fica muito caro e distante”, defendeu Carstens.
“Eles [do G10] estão muito preocupados com a qualidade da cidade. Nenhuma das propostas é descabida. Agora: antes de defender a cidade, eles defendem os clientes deles”, contrapôs Paranhos.
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Muita coisa para o ano que vem
Ippuc e entidades do mercado têm um encontro marcado para tratar da lei de zoneamento no próximo dia 2. Será um workshop em que os técnicos municipais irão entregar ao G10 as respostas às propostas enviadas em junho. É quando, por exemplo, se buscará um acordo sobre o tamanho que define o “pequeno comércio vicinal”.
Mas já há quem deseje que esse encontro seja adiado. “Eles atrasaram a entrega [do anteprojeto de lei], e mesmo assim ainda não veio tudo. Vamos sugerir ao prefeito que eventualmente se postergue as audiências e o workshop. É difícil participar de uma discussão de tal importância sem acesso a todo o material”, reclamou o engenheiro civil Sérgio Luiz Crema, presidente do Sinduscon-PR, também do G10.
Na verdade, o ante-projeto do Ippuc “fatiou” a lei de zoneamento – um calhamaço de quase 700 artigos, extremamente descritivo e um bocado hermético. Temas mais espinhosos – como a definição de áreas de garagem em empreendimentos residenciais e comerciais, assunto em que município e setor imobiliário parecem distantes de um acordo, além de regras sobre meio ambiente, habitação social e plano de transporte – serão definidos apenas em 2018. Por isso, Paranhos disse achar improvável que haja um adiamento.
População ausente
A população de Curitiba, lamentou a urbanista Gislene Pereira, doutora em Meio-Ambiente e Desenvolvimento e professora do programa de pós-graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná, não parece ter sido chamada a participar do debate sobre o novo zoneamento da cidade. “Numa reunião sobre o tema, há alguns dias, arquitetos perguntaram a alguns cidadãos do que eles precisavam para opinar. A resposta foi: informação”.
Mesmo as audiências públicas previstas pela prefeitura não devem ser mais que eventos pró-forma. “Sem informação, como alguém irá se posicionar?”, questionou a urbanista. “Serão mais exposições da nova lei que debates de fato. Que espaços efetivamente essa regra cria ou modifica na cidade? Isso é algo que o cidadão comum não consegue entender”.
Uma oportunidade desperdiçada, lamentou Pereira. “Em São Paulo, quando se fez a revisão do plano diretor, há alguns anos, a prefeitura produziu uma cartilha para explicá-la didaticamente a qualquer leigo. Aqui, certamente temos um corpo técnico habilitado para fazer essa tradução. Seria ótimo trazer para a participação popular a vanguarda que a cidade sempre teve em planejamento”.