A juíza Fernanda Orsomarzo encaminhou na quarta-feira (8) passada ao Procurador Geral de Justiça do Paraná, Ivonei Sfoggia, o processo de 2,4 mil páginas envolvendo os acontecimentos que culminaram nas mortes de Vilmar Bordim e Leonir Orback, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Eles foram assassinados em abril de 2016 em um assentamento em Quedas do Iguaçu, no Sudoeste do estado.
A magistrada usou a prerrogativa do Art. 28 do Código de Processo Penal e remeteu a íntegra dos autos ao chefe do Ministério Público para ele decidir sobre a continuidade da investigação ou o arquivamento definitivo – nesse caso, o Poder Judiciário é obrigado a aceitar.
Na mesma decisão a juíza suspendeu a acusação de resistência qualificada contra Rudmar Moeses, Claudir Braga, Valdemir Xalico de Camargo e Antonio de Miranda, agricultores ligados ao movimento. Eles eram acusados de agir com violência contra policiais ambientais e militares durante o tiroteio que culminou na morte de Bordim e Orback. Um deles foi morto pelas costas.
Os cinco promotores do caso pediam o engavetamento dos inquéritos que tramitavam na Polícia Civil, Polícia Federal e no próprio MP-PR, fundamentando o pedido na legítima defesa por parte dos policiais. Todavia, a magistrada indicou na decisão que os autos ainda são inconclusivos e merecem exame por parte do Judiciário, principalmente porque os seis oficiais dispararam 153 vezes contra civis em fuga e porque há diversas contradições e versões tanto dos policiais quanto dos militantes do MST. Não há no processo uma prova cabal de disparos por parte dos integrantes do MST, apesar dos indícios de que também portavam armas de fogo. As perícias técnicas foram realizadas pela Polícia Civil e Polícia Federal.
Exige-se a certeza. Em um cenário no qual foram disparados, comprovadamente, 153 tiros pelos agentes policiais, sem prova cabal de que um tiro sequer tenha sido feito pelos integrantes do MST, não há como encerrar a discussão com base em presunções ou, ainda, com fundamento na palavra dos próprios policiais diretamente envolvidos no episódio
A decisão elenca uma série de fatores para o reexame por parte do MP-PR como incongruências nos depoimentos dos policiais em relação ao incidente ambiental que culminou no encontro e ao início dos disparos, a apresentação tardia de uma arma de grosso calibre por parte da PM, a exumação dos corpos das vítimas que constatou lesões que não foram atestadas na necropsia original e a tentativa dos oficiais de alterar a cena dos crimes.
“Dar cabo sumariamente à discussão demanda prova inequívoca de que os policiais, usando moderadamente dos meios necessários, repeliram injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”, destacou a magistrada. “Ainda que restasse demonstrado que o primeiro tiro partiu dos integrantes do MST, eventual excesso na legítima defesa dos policiais militares deveria ser levado ao exame do Poder Judiciário”.
Os policiais alegaram legítima defesa nos inquéritos de todos os órgãos, mas as versões sobre a quantidade de armas encontradas e dos veículos do MST são desencontradas. Os integrantes do movimento social ouvidos pelas autoridades repeliram as acusações e afirmaram que os tiros partiram primeiro dos policiais.
Dia D
As mortes ocorreram em 7 de abril de 2016 em uma área alvo de litígio judicial entre a madeireira Araupel e o MST, em Quedas do Iguaçu. A empresa possui cerca de 30 mil hectares de terras entre as regiões de Pinhal Ralo e Rio das Cobras, espalhados pelos municípios de Rio Bonito do Iguaçu, Quedas do Iguaçu, Espigão Alto do Iguaçu e Nova Laranjeiras. O acampamento leva o nome de Dom Tomás Balduíno, em homenagem ao ex-membro da Pastoral da Terra.
Segundo a denúncia, policiais ambientais da Força Verde (Luis Gustavo Landmann e Juliano Marcelo da Silva), policiais militares da ROTAM (Anibal Pires do Amaral Neto, Carlos Roberto Volpato Junior, Graciano José dos Santos Júnior e Otávio Duarte Júnior) e um vigilante da Araupel (Gerson Xavier de Souza) entraram em confronto com integrantes do MST próximo a um suposto incêndio.
O acesso principal da área havia sido ocupado pelos integrantes do movimento, o que levou os policiais a buscaram acesso por um local denominado Fazendinha. Ali os policiais constataram um novo bloqueio feito pelos integrantes do MST. Por volta das 15h teriam ouvido o barulho de uma motocicleta e realizaram uma abordagem do condutor. Mais tarde outras duas motocicletas, um carro e um ônibus com cerca de 20 pessoas se aproximaram do local.
SAIBA MAIS: O ponto nevrálgico da guerra no campo no Paraná
Um intenso tiroteio teve início. Os policiais concentraram a ação no carro e, posteriormente, no ônibus. Cessados os disparos, um dos PMs buscou o escudo balístico na viatura e, após a formação de uma cédula de segurança, ele e a equipe teriam se dirigido até os veículos. Os policiais localizaram Pedro Francelino (ferido com um tiro no braço esquerdo e outro na nádega direita) e Henrique Gustavo Souza Pratti (ferido com um tiro na perna esquerda). Em seguida encontraram os corpos do Volmir Bordim e Leonir Orbach, já sem qualquer sinal vital. Eles eram ocupantes do carro. Ainda foram localizados Volmir Beltrame e Luiz Santos Rossa, que foram presos. Os demais fugiram.
Alguns integrantes do MST teriam se aproximado do local para reivindicar os corpos logo após a calmaria, mas teriam sido repelidos verbalmente pelos policiais. Pouco depois um comboio com 30 PMs chegou ao local, a maioria do Batalhão de Operações Especiais (Bope).
Muitas dúvidas
Segundo a decisão judicial, a existência do incêndio é incerta e não elimina a ideia de emboscada. “As versões apresentadas acerca da finalidade da empreitada são inúmeras: prestar apoio à Polícia Ambiental; tirar fotografias do local; localizar possíveis indivíduos envolvidos com o incêndio, em tese, criminoso; prestar apoio aos funcionários da Araupel para desbloqueassem um portão, etc. [...] Não se sabe ao certo o que desencadeou a ação policial, tampouco os motivos pelos quais seis policiais, na companhia de vigilantes armados da empresa Araupel (um deles ocupando a viatura), deslocaram-se ao local”, afirmou a magistrada.
“Também não se sabe ao certo se o incêndio estava ocorrendo no dia dos fatos ou se já havia ocorrido no dia anterior”, completou. Essa impressão aparece nos depoimentos dos seis policiais à Polícia Federal. Eles vão de “levantar informações sobre um incêndio na mata de pinus a fotografar e fazer um levantamento” sobre um fato ocorrido no dia anterior.
“Não se sabe quem apoiou quem ou de quem partiu a ordem de ação: enquanto os policiais militares afirmam que foram acionados para prestar apoio aos policiais ambientais, estes últimos dizem que teriam recebido ordem para acompanhar os funcionários da empresa Araupel”, destacou, em outro trecho, a juíza.
Fernanda Orsomarzo afirma que o começo dos disparos representa ponto “fulcral” na história. O tenente Anibal Pires do Amaral Neto disse à Polícia Civil que os policiais foram recebidos a tiros, mas não especificou o caso. Mais tarde mudou a versão em depoimento à Polícia Federal e afirmou que foram recebidos com disparos de calibre .12. O soldado Carlos Roberto Volpato Júnior disse que acreditava que os integrantes do MST estavam de posse de aproximadamente 25 armas. Enquanto alguns afirmam que a reação foi imediata, outros aduzem que jogaram-se no chão e só depois reagiram.
“A fase investigatória não deixou claro quem teria efetuado o primeiro disparo, se o indivíduo que se encontrava na carroceria [do carro], munido de uma arma calibre .12, ou dois indivíduos simultaneamente, com uma arma longa e outra curta. Também não esclarece quantos tiros foram dados até a reação policial”, apontou a magistrada.
Ao mesmo tempo não foi possível identificar disparos por parte dos integrantes do MST, segundo Orsomarzo. “Não me parece crível que elevado número de civis portasse arma de fogo no dia dos fatos, muito menos que todos tenham efetuado disparos. A uma, porque, felizmente, nenhum dos seis policiais foi ferido – sequer as viaturas foram atingidas. A duas, porque apenas duas armas de fogo apreendidas e registradas pela Autoridade Policial como vinculadas aos integrantes do MST estavam municiadas”.
Segundo os policiais, o tiro partiu de um indivíduo que se encontrava em cima da carroceria do carro e com arma longa. No entanto, ambos os mortos se encontravam dentro da camionete: Vilmar Bordim na frente, na direção, e Leonir Orback no banco traseiro.
Todos os depoimentos prestados pelos integrantes do movimento refutaram a troca de tiros e mencionaram a existência de uma “rajada de balas”. Mesmo no depoimento que foi tomado a força por policiais civis na UTI de um hospital.
Os policiais militares ainda esconderam nos depoimentos a posse de uma espingarda calibre .12. A informação não foi relatada sequer ao delegado da Polícia Civil, autoridade responsável pela apreensão das armas e demais objetos relacionados da cena dos crimes. “A relevância de tal informação, não repassada à Polícia Civil, é ainda mais patente se considerarmos que foram apreendidos no local um case de espingarda e um único cartucho calibre .12, o qual, com base nos depoimentos de alguns dos policiais militares, teria sido deflagrado por um integrante do MST que portava arma longa”, lembrou a magistrada. Tais objetos foram apreendidos pelos próprios PMs diretamente envolvidos no acontecimento, antes da chegada da perícia.
“Há indícios de que realmente alguns integrantes do MST portavam armas de fogo. Todavia, a responsabilidade pelo primeiro disparo, e que fundamenta a tese de legítima defesa pelos policiais, é extremamente frágil, sobretudo quando consideramos, repito, que não foram apreendidas munições que teriam sido deflagradas pelos civis no dia dos fatos, a não ser, conforme já salientado, um cartucho calibre .12, oriundo de arma de fogo também utilizado pelos militares e não apresentada às autoridades no dia do acontecimento”, afirmou.
Também causou estranheza à juíza o vídeo produzido pelos policiais depois dos acontecimentos. Um integrante do MST disse ter ouvido que eles “deveriam ficar ao lado dos policiais”. Logo em seguida, temendo uma nova revolta, eles tiraram os corpos do local por determinação de um Major da PM. “A ordem prejudicou sobremaneira os esclarecimento dos fatos”, afirmou. “Toda a cena foi alterada antes da chegada dos peritos e, o que é mais grave, o local dos corpos foi modificado. Mais que isso, os agentes policiais deixaram o local, não procedendo a qualquer isolamento ou preservação, tanto é que alguns integrantes do MST para lá voltaram instantes depois do confronto, ali adentrando sem qualquer limitação e tendo contato com inúmeros vestígios”.
A decisão também cita que os laudos de exames de necropsia realizados nos corpos de Vilmar Bordim e Leonir Orback não constataram lesões externas. No caso do segundo, no entanto, havia duas lesões de natureza violenta na cabeça que não foram informadas no laudo necroscópico inicial.
Outro lado
O advogado Fernando Prioste, que falou pelo MST, chamou a decisão de sensata. “O Ministério Público costuma apresentar denúncia mesmo diante de casos com muito menos provas, principalmente contra populações marginalizadas. O que se fez nesse caso foi mostrar que a resposta da força policial foi no mínimo desproporcional”. Segundo ele, um novo arquivamento torna a decisão irrecorrível, mas o caso pode ser levado para a Corte Interarmericana de Direitos Humanos.
A Polícia Militar informou que não comenta as decisões judiciais.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura
Deixe sua opinião