População de rua de Curitiba tem sido alvo de crimes, mas MP e movimentos sociais querem mostrar que os casos não ficam impunes.| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Catorze meses se passaram entre o assassinato de Luiz Antonio Holmes e a condenação do culpado, proferida pelo Tribunal do Júri em Curitiba em 31 de julho. Em outubro de 2017, o órgão havia condenado o responsável pela morte de Andrea de Aguiar Coelho e pela tentativa de homicídio de Cleverson Leandro Francischini, crimes ocorridos 19 meses antes. No primeiro caso, a pena foi de 14 anos; no segundo, 20 anos. Além da celeridade e do longo tempo de prisão a ser cumprido em regime fechado, esses casos têm outra semelhança: as vítimas eram pessoas em situação de rua.

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Esses dois casos se somam a outros assassinatos de moradores de rua que já foram condenados pelo Tribunal do Júri ao longo dos últimos anos. A diferença é que, a partir deste mês, o Ministério Público do Paraná (MP-PR) e os movimentos sociais ligados ao tema querem dar maior publicidade ao desfecho dos casos, uma forma de mostrar que crimes do tipo não ficarão impunes.

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De acordo com o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), a violência contra esse público aumentou em Curitiba a partir de 2017. “Fizemos uma reunião no fim de julho com o MP e pedimos mais informações sobre o desfecho dos casos. É importante falar disso, ainda mais em uma cidade como a nossa, em que se vê tanta crueldade gratuita contra quem está na rua”, afirma o coordenador nacional do movimento na cidade, Leonildo José Monteiro Filho. Segundo ele, teriam sido mortas 20 pessoas em situação de rua ao longo de 2018.

O promotor Marcelo Balzer, que atua no Tribunal do Júri, disse que, a partir dessa reunião, fará um levantamento nos inquéritos policiais em andamento em Curitiba para identificar aqueles referentes a homicídios de população de rua. Ele estima que em 90 dias terá dados mais concretos a respeito desse grupo. Mas desde já adianta uma dificuldade nas investigações desses casos: muitas vezes, a vítima não é identificada, por falta de documentos, e por isso a polícia precisa primeiro descobrir de quem se trata para, depois, inquirir sobre quem é o culpado.

De todo modo, isso não é um impeditivo para condenações. Balzer relata que um réu já foi condenado no Tribunal do Júri de Curitiba por matar “A”, um morador de rua não identificado. “A lei fala em punir quem mata alguém. Não precisa ter nome. Tinha a materialidade, o corpo, tinha a imagem do responsável”, conta. O promotor ressalta que o corpo de jurados olha para o criminoso, tentando entender o contexto em que o crime ocorreu, independentemente da vítima. “O fato de ser morador de rua não interfere na condenação. Aliás, nosso papel é mostrar que principalmente para essa vítima, que já foi condenada em vida, é preciso punição, não se pode tratar a vida dela como lixo. Ao contrário. Se a sociedade errou no passado, tem de fazer certo quando tem chance, e condenar quem matou”, afirma.

O que conta mesmo é um processo bem fundamentado, diz Balzer. “O júri não quer errar. Quer que a gente dê elementos para que, se errar, erre junto com quem acusa. Os jurados querem estar bem embasados. Se há muita dúvida, preferem soltar”, relata ele, que tem 23 anos de experiência na área criminal, dos quais 15 como promotor. No caso das duas condenações citadas nessa reportagem, algo em comum: imagens de câmeras de segurança que embasaram a acusação.

O fato de ser morador de rua não interfere na condenação. Aliás, nosso papel é mostrar que principalmente para essa vítima, que já foi condenada em vida, é preciso punição, não se pode tratar a vida dela como lixo. Ao contrário. Se a sociedade errou no passado, tem de fazer certo quando tem chance, e condenar quem matou

Marcelo Balzer promotor de Justiça
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Caso Holmes

No julgamento mais recente, de 31 de julho, o condenado era morador de rua, tal qual a vítima. Jackson José Valter de Oliveira Filho (20 anos) foi condenado a 14 anos de reclusão por matar Luiz Antônio Holmes a golpes de pedaços de vidro e pau, no bairro Xaxim, em 11 de maio de 2017. As imagens de posse da promotoria mostram cenas do crime, nas quais não era possível identificar a autoria. Entretanto, após o assassinato, o culpado fez um furto em uma distribuidora de bebidas da região, onde deixou marcas de sangue de Holmes.

Nesse estabelecimento, as câmeras internas flagraram o rosto dele, e as imagens circularam na mídia. Com a divulgação do caso, denúncias feitas à polícia deram a identidade de Oliveira Filho e a região onde poderia ser encontrado. Alguns dias depois, ele fez outro furto, dessa vez em uma imobiliária da região e, com o dinheiro roubado, voltou à distribuidora de bebidas como cliente. Uma das vendedoras, ao reconhecê-lo, avisou a polícia, que o prendeu em 23 de maio, duas semanas após o assassinato.

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Cerca de um mês depois, foi concluído o inquérito policial, e o juiz da 2ª Vara do Tribunal do Júri, Daniel Surdi de Avelar, acatou a denúncia contra Oliveira Filho em 22 de junho. Ele negou a autoria do crime; a defesa argumentou que ele estava sob efeito de drogas e álcool no momento do assassinato e solicitou instauração de incidente de insanidade mental. Avelar, porém, destacou que em depoimento o réu deu detalhes do furto realizado na distribuidora de bebidas, demonstrando a capacidade mental e a ciência de que cometia “atos reprováveis”.

Em março de 2018, após ouvir testemunhas, acusação e réu, o juiz deu a sentença de pronúncia, confirmando o crime doloso contra a vida e a necessidade de o julgamento ocorrer por um corpo de jurados, o qual ocorreu quatro meses depois. Oliveira Filho ainda tentou argumentar que a vítima seria um estuprador, fato negado por outras testemunhas.

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Caso Andrea e Francischini

Em 31 de outubro de 2017, o comerciante libanês Imad Hamdar, 56 anos, foi condenado a 20 anos de reclusão pela morte de Andrea Coelho e a tentativa de homicídio de Cleverson Francischini. O crime ocorreu em 27 de março de 2016, na Praça Osório, no Centro da capital paranaense. Ao lado de dois homens, Hamdar passou pelas duas vítimas, deitadas sob cobertores. Câmeras de segurança mostram o comerciante as interpelando. Depois de ficar mais alguns minutos na rua conversando com os amigos, Hamdar vai ao apartamento onde mora, também na Praça Osório. Minutos depois, sai, fumando um cigarro e com uma arma visível pela roupa. Caminha até os moradores de rua e desfere vários tiros contra eles, que ainda estavam deitados. Em seguida, retorna ao prédio.

Em seguida Hamdar fugiu. Com as imagens das câmeras de segurança, logo foi identificado e teve a prisão preventiva decretada, mas Hamdar só foi localizado pouco mais de um ano depois, em maio de 2017, em Balneário Camboriú. Enquanto isso, o processo corria na 2ª Vara do Tribunal do Júri. A denúncia foi recebida em 1º de julho de 2016, três meses após os crimes. A sentença de pronúncia foi proferida em outubro de 2016. Como o réu estava foragido, porém, a sessão de julgamento demorou para ser marcada.

Francischini, que sobreviveu à tentativa de homicídio, relatou que Hamdar reclamava dos moradores de rua, que “incomodavam os proprietários dos apartamentos”. O comerciante, por sua vez, alegou que foi provocado e teve a família ameaçada pela vítima. Disse ainda que não tinha a intenção de matar, apenas ferir. Após a condenação do Júri, a defesa apresentou recurso, que ainda tramita.

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Imagens e testemunhas

As imagens comprovando a autoria desses crimes foram cruciais para o andamento dos processos e condenação dos réus. Segundo a série especial de reportagens Crime sem Castigo, publicada pela Gazeta do Povo em 2013, que analisou mil inquéritos de assassinatos cometidos em Curitiba a partir de 2004, 77% das investigações não tinham sido solucionadas. As dificuldades começavam já no inquérito policial: em média, transcorreram três meses entre o crime e o início oficial das investigações.

Outros problemas detectados eram o número reduzido de testemunhas (em 595 casos, foram tomados três ou menos depoimentos), agravado pela falta de provas técnicas, como imagens de vídeo ou exames de DNA: apenas 19% dos inquéritos analisados tinham algum elemento desses. Como resultado, um cenário de impunidade. Enquanto Curitiba registrou 5.806 assassinatos entre 2004 e meados de 2013, o total de condenações no Tribunal do Júri era de 247 casos.

Segundo o promotor Marcelo Balzer, mesmo quando há imagens de vídeo mostrando a autoria de um homicídio, o depoimento de testemunhas é essencial. “Só a imagem por si não vale. Ela é uma prova muito boa, mas precisa de outros testemunhos, para saber das circunstâncias do crime, o que levou a isso. Com a população de rua, às vezes há uma dificuldade para identificar alguém que estava por perto ou viu, mas geralmente há algum pipoqueiro, vigilante ou alguém que passou, viu, se condoeu e se dispôs a falar”, destaca.

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Para Balzer, em alguns casos o inquérito policial referente a homicídio de população de rua não anda por falta de empenho. “Como não costuma ter muita procura, pressão de família ou imprensa, vai se deixando. Muitas vezes se alega que é uma discussão por droga, mas é preciso investigar isso. Sempre digo que precisamos sempre fazer o trabalho independentemente da repercussão do caso. Se não fizer, quando tiver alguma repercussão, vai ter medo, não vai saber bem como atuar, pois haverá cobrança da mídia, todo mundo. Se fizer certo sempre, todas as investigações saem ganhando”, opina.

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