O recente fechamento do abrigo Boa Esperança – que disponibilizava 247 vagas no bairro Rebouças para que moradores de rua passassem a noite – foi mais um episódio do que a prefeitura de Curitiba chama de “reordenamento” de sua política assistencial. Essa mudança de rumo – que inclui também o endurecimento no trato à população em situação de rua – provocou a reação da Defensoria Pública e do Ministério Público do Paraná (MP-PR). Juntos, os órgãos expediram um ofício com 21 recomendações à prefeitura e, nesta semana, vão cobrar resultados.
O documento foi direcionado à Fundação de Ação Social (FAS) – órgão responsável pelas políticas de assistência social em Curitiba. Entre as recomendações está a indicação de que “se abstenha de praticar políticas de cunho higienista, violenta, racista ou com fim segregatório”. Neste sentido, a Defensoria e o MP-PR requerem que não sejam “efetuadas remoções compulsórias” dos moradores de rua e que não sejam tomados seus pertences.
Tamanho da rede não é conhecido
Mas não é só. MP-PR e Defensoria estão de olho no encolhimento dos serviços de proteção às pessoas socialmente vulneráveis. A prefeitura ainda não repassou a dimensão exata de qual é o tamanho da rede. Por isso, os órgãos requerem que a FAS torne público – em seu site – o mapeamento da rede, com o número de vagas disponibilizadas em cada tipo de serviço, e que faça um novo censo da população de rua.
“Esses dados nos vão ser passados nesta reunião, quando saberemos quais os recursos, qual é a rede efetiva de que a cidade dispõe. Precisamos saber a perspectiva que temos e quais são as perspectivas futuras, porque, com o encolhimento que houve, a estrutura é insuficiente”, diz o procurador Olympio de Sá Sotto Maior Neto, do MP-PR.
Quem é afetado
Stevam Gomes Cerqueira Filho, de 40 anos, trabalhava no “guarda-volumes” que era mantido pela FAS na Praça Osório, no Centro, e que foi fechado pela gestão do prefeito Rafael Greca (PMN) em janeiro deste ano.
Ao ficar desempregado e, em consequência, ver sua “pequena reserva” se esgotar, Stevam foi obrigado a voltar para as ruas. “Foi uma pena, porque eu estava me reerguendo”, diz. No fim de outubro, ele se surpreendeu quando chegou ao prédio em que funcionava o albergue Boa Esperança e se deparou com as portas fechadas. Lembrou-se, então, do episódio ocorrido durante a campanha eleitoral, em que Greca disse que havia vomitado ao sentir cheiro de pobre.
“Por aquilo, a gente sabia que ia ser assim. Isso tem sido a política do prefeito, desde que ele entrou: é reduzir os equipamentos sociais e aumentar a repressão. É porrada para a população de rua”, lamenta. “Acaba que aumenta o número de pessoas na situação [de rua], porque você tira a possibilidade de ela evoluir. Já está aumentando. Não dá pra esconder a gente. Tem que criar condições para a ‘porta de saída’.”
Apesar de ter só 23 anos, Sérgio dos Santos já está nas ruas há mais de uma década. Filho de um casal de guardadores de carros, ele era vítima constante de violência doméstica, na infância. O pai chegava a obrigá-lo a ir à “biqueira” (ponto de venda) comprar drogas. Fugiu de casa aos 10 anos e conheceu o “lado errado” da rua: o álcool, o crack, a fome e a violência. “Sozinho, sem ajuda, eu não consigo sair da situação [de rua]. Com as portas se fechando pra gente, pode ter certeza de que vai morrer muita gente. Muita gente.”
O fechamento do Boa Esperança também fez com que o Movimento Nacional dos Moradores em Situação de Rua se articulasse. A entidade elabora um abaixo-assinado – que conta com mais de 120 assinaturas –, pedindo a intervenção da Defensoria contra o fim do albergue. “Mais de 300 pessoas estão sendo empurradas para as marquises, principalmente do Mercado Municipal. Estão desmontando tudo. Para nós, nem a migalha da migalha”, diz o coordenador estadual do movimento, Carlos Humberto dos Santos, o Pulga.
Mudança do Centro para a periferia
O único equipamento aberto pela prefeitura neste ano é a Casa de Acolhida do Bairro Novo, localizada no Sítio Cercado, onde são disponibilizadas 100 vagas para a população de rua. Para quem não vive sob um teto, no entanto, a estratégia da prefeitura é clara: fazer com que os moradores de rua, aos poucos, deixem a região central da cidade e migrem para a periferia.
“Por que colocar lá no Bairro Novo? É higienização social. Como o morador de rua vai conseguir acessar o serviço? Vai pagar R$ 4,25 pra ir e R$ 4,25 pra voltar? Como?”, questiona Pulga.
Outras pessoas que estão em situação de rua concordam com a tese de “higienização social”. Stevam e Sérgio apontam que a vida de quem está sem teto tem uma rotina muito própria na região central, onde há distribuição de alimentos e onde podem conseguir pequenos “bicos” como forma de conseguir dinheiro.
“Estão enxotando a gente do centro e nossa vida é aqui [na região central]”, resume Stevam. “Não tem sentido fechar [albergue] no centro e abrir em bairro, do lado de onde tem um monte de ‘biqueira’”, acrescenta Sérgio.
O MP-PR defende a adoção de um plano de habitação de interesse social, voltado aos moradores de rua. Como exemplo, o procurador Olympio de Sá Sotto Maior Neto menciona “repúblicas” voltadas a públicos específicos e alternativas, como o aluguel social. “Deveríamos estar discutindo outras solução que não albergues”, pontua Sotto Maior.
Há denúncias de truculência
Neste ano vieram à tona denúncias relacionadas à retirada de pertences de moradores de ruas, como forma de coação para que eles não permaneçam em praças. Em razão disso, MP-PR e Defensoria recomendam a não utilização de violência nem destruição de bens das pessoas em vulnerabilidade, e que não sejam efetuadas “remoções compulsórias”.
“O enquadro é o seguinte: já chegam batendo, tocando o terror. Semana passada, eu estava na [Praça] Tiradentes com umas amigas e chegaram xingando elas e falando pra gente sair fora, senão iam atirar na nossa fuça”, conta Santos.
Por meio de nota, a Guarda Municipal negou supostos excessos e disse que as equipes “não fazem retirada de pertences de moradores de rua e, caso haja alguma informação de caso pontual em que isso tenha ocorrido, a situação deve ser relatada ao órgão oficial, por meio da ouvidoria”.
Prefeitura está reordenando sistema para qualificar serviços
A Fundação de Ação Social (FAS) optou por se manifestar por meio de nota, em que afirma que, desde o início da gestão do prefeito Rafael Greca, “foi iniciado processo de reordenamento para qualificação dos serviços voltados para a população de rua”. A estratégia visa a “otimização de vagas e de serviços já existentes”, diz a prefeitura.
A atual gestão apontou que a atual rede é composta de dez equipamentos – entre próprios e conveniados – que, juntos, disponibilizam 611 vagas para pernoite de pessoas em situação de rua. O censo mais recente, divulgado em abril do ano passado, apontava que Curitiba tinha mais de 1,7 mil moradores de rua. Ainda assim, a prefeitura afirma que “sobram vagas diariamente” nos albergues administrados pela FAS.
A Fundação disse ainda que o fechamento do abrigo Boa Esperança já estava previsto. Segundo a FAS, o convênio que mantinha o espaço vigorou até outubro e a proprietária do imóvel pediu a entrega do prédio. “Houve o remanejamento desses usuários para as demais unidades existentes”, consta da nota. A FAS pretende realizar um chamamento público para viabilizar a abertura de uma casa de passagem, que teria 80 vagas.
Fim da “porta-aberta”
A FAS informou ainda que acabou a chamada “porta aberta” – em que o atendimento é procurado espontaneamente pelos moradores de rua, mesmo que não tenha sido cadastrado previamente. Segundo a Fundação, essa modalidade de serviço chegou a ser ofertada neste ano “como medida emergencial e temporária durante a ‘Ação de Inverno – Curitiba que Acolhe’, como forme de prevenir que pessoas em situação de rua ficassem expostas ao frio extremo”.
Segundo a FAS, essa política foi adotada para buscar a “vinculação dos usuários aos serviços sociassistenciais”, para que possam “superar a situação de vulnerabilidade em que se encontram”.
Além dessa estrutura, a FAS menciona ainda cinco unidades do Centro POP – em que a população de rua pode ter acesso a cuidados de higiene, alimentação e passar por triagem e encaminhamentos – e as nove unidades do Centro de Atendimento Especializado de Assistência Social (Creas).
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