Duas noites ao mês, o entorno das ruas Fernando Amaro e Schiller, no Alto da XV, em Curitiba, fica ainda mais estreito. Dos carros estacionados descem olhares marejados e sorrisos amarelos que se juntam, em roda, na sala de entrada de uma casa bege, com grades antigas nas janelas. A simpatia de ocasião dura poucos minutos. “Perdi meu filho há dois meses, num acidente de moto, e não consigo mais viver”, desaba a primeira a falar.
Entre um lencinho de papel e outro, uma senhora toma a palavra e ameniza o clima da conversa. Pergunta pela história do Instituto Paz no Trânsito (IPTRAN), organização que promove o encontro. “Começou com umas sete pessoas: eu, a dona Antônia, a Juliana, a Ana, a Dona Helena, o seu Osmar e a Chris. Fazíamos reuniões em uma salinha do lado da igreja do balão [apelido do templo evangélico instalado no Jardim Ambiental]”, responde Rose Mari Carriel de Lima, hoje secretária do instituto e, como costuma dizer, “todos os dias mãe do Robson”, morto em um acidente na Linha Verde, no dia em que completava 21 anos, véspera de Natal de 2008.
Quando ouvi dizerem que eu estava usando a morte do meu filho para me eleger, respondi: ‘Realmente, estou usando a morte do meu filho, porque preciso disso para que o seu filho tenha uma chance de viver’.
A Chris de quem ela fala é a deputada federal Christiane Yared. Hoje, disputa espaço com engravatados nos corredores de Brasília. À época da fundação do IPTRAN, tinha como principal atividade buscar Rose e outras mães em casa, para garantir que não faltassem às reuniões. “Ela é uma mãezona, para todas nós”, conta a amiga, que não deixa escapar um acidente de trânsito em Curitiba sem procurar familiares para levar aos encontros de apoio. “Chris faz muita falta aqui”, lamenta.
7/5/2009
Novas Roses, Anas, Helenas, Antônias e Julianas nascem todos os dias na capital. Órfãs de filhos, encontram em Christiane uma mãe. “Você não imagina o que é acordar de madrugada com o telefonema de uma mãe e ver sua esposa chorar com ela a noite toda pela perda dos filhos”, conta o marido Gilmar Yared, que passou para Gilmar Rafael não só o nome, mas também boa parte dos traços.
Na última sexta-feira, Gil, como era chamado, completaria 32 anos. Na véspera do próximo Dia das Mães, em maio, serão seis anos sem ele. “Seis anos sem respostas”, resume a deputada, que em dois segundos de conversas vira somente Chris. “Lá no Congresso, seja quem for, não tem nada de chamar de senhor ou de senhora. Pra mim, todo mundo é você”, diz. Durante todas as entrevistas para esse perfil, ela só não dispensou o formalismo para se dirigir a uma pessoa: o “senhor” Carli Filho.
Chris sabe contar de trás para frente os últimos passos – e voltas – do então deputado estadual antes do acidente que vitimou Gilmar Rafael e o amigo Carlos Murilo de Almeida, na madrugada daquele dia 7 de maio de 2009, na esquina das ruas Ivo Zanlorenzi e Paulo Gorski, no Mossunguê. Também consegue detalhar com precisão as horas derradeiras do filho. “Ele comeu pizza e tomou suco”, diz.
Assim como a própria história, Chris decorou as estatísticas de mortes violentas no trânsito – no Brasil, informa, são mais de 200 óbitos por dia. “Vamos analisar: cai um avião e morrem 200 pessoas. É feito um estudo para se saber o que aconteceu. Morre o equivalente a isso no trânsito, todos os dias, e ninguém se preocupa”, questiona. Diz mais: tem na ponta da língua o que acontece a um motorista depois de ingerir uma taça de vinho. “Em média, você vai demorar mais sete segundos do que o normal para parar. Nesse espaço de tempo, atropelou um ponto de ônibus inteiro”, observa.
Ponteiros doidos
De tantas outras coisas, Christiane se esquece. Do horário, por exemplo. Chegou uma hora e meia atrasada para a gravação de uma mensagem para o Dia da Mulher na produtora que contratou, na campanha eleitoral, para cuidar da sua imagem. Para economizar tempo, uma entrevista para a Gazeta do Povo acontece no salão de beleza, enquanto tenta “disfarçar as olheiras de Capitão Caverna” para o vídeo. Correria. Mas ela arruma um jeitinho de fazer inveja às cabelereiras ao mostrar fotos do neto Lorenzo, que completava quatro dias naquela sexta-feira de fevereiro. Lamenta não estar do lado da filha Daniele, também mãe de Isabela, de 8 anos.
“Tive que fazer algumas escolhas, deixar algumas coisas de lado”, pontua. O IPTRAN e as palestras de conscientização sobre mortes no trânsito, ao menos, ela não larga. Bate ponto no Alto da XV todas as sextas-feiras, depois de cumprir expediente semanal na Câmara dos Deputados. “O instituto abastece a minha alma. É o que me dá forças”, repete. Três, quatro, cinco reuniões depois, lembra que ainda não almoçou.
O marido Gilmar deixa uma marmita para ela na cozinha. Chris nem se dá ao trabalho de sentar: engole a comida em cinco minutos, às quatro da tarde. “Partiu?”, pergunta, ainda com a boca cheia, sobre um assunto qualquer. “Abraça o mundo inteiro, e isso afeta sua saúde”, critica o filho caçula Jonathan, que acabou assumindo o negócio da família, a Confeitaria Coeur Douce, uma das atividades deixada de lado pela mãe.
“Esta noite sonhei que estava comendo um pedaço de torta”, lembra a ex-doceira que, de tanto gosto por chocolate, desenvolveu suas próprias técnicas gastronômicas. São dignas de tutoriais no Youtube. “O marshmallow, por exemplo, é algo que vira açúcar muito rápido e ela consegue fazer todos os bolos com ele, sem desandar”, ilustra o marido. A arte de cozinhar faz parte da múltipla mulher para quem a definição de “ajudadora”, da Bíblia, é a que melhor a define. Outros a chamariam de força da natureza.
Em Brasília, “aquela”
“Pra mim, ela é uma extraterrestre”, ri Gilmar, ao se referir ao estilo “fazer e acontecer” da companheira. Logo na primeira semana de trabalho no Congresso, Chris foi avisada de que demoraria pelo menos quatro anos para marcar uma reunião com algum ministro. Em sete dias, falou com três. Enquanto fica abismada com os “achacadores”, tenta conquistar apoio para projetos, como o que trata do “dolo eventual” para crimes de trânsito. O termo se refere aos que não têm intenção de matar, mas assumem esse risco ao dirigirem embriagados, por exemplo. Entre olhares maliciosos, ouve conversas miúdas como “aquela que é a mais votada do Paraná”. Christiane fez 200.144 votos.
Assim como toda decisão importante de sua vida, a de se candidatar também foi obra de Deus, como ela gosta de pontuar, nos moldes de sua cultura evangélica. Depois de semanas de insistência das lideranças do PTN, nanopartido ao qual estava filiada, ela só registrou a candidatura 20 minutos antes de expirar o prazo permitido pela lei eleitoral. Estava decidida a fazer campanha e apoiar alguém que a legenda indicasse, mas se sentiu incomodada quando esse alguém lhe disse: “Que triste, quem pode, não quer, e quem está lá, não faz.”
O número na urna também foi um sinal: 1900. O mote da primeira campanha que coordenou foi “190 km/h é crime”, em referência à suposta velocidade que atingiu o carro de Carli Filho no acidente. Depois da decisão de seguir na política, vieram os primeiros julgamentos – e as novas conversas com Deus. “Quando ouvi dizerem que eu estava usando a morte do meu filho para me eleger, respondi: ‘Realmente, estou usando a morte do meu filho, porque preciso disso para que o seu filho tenha uma chance de viver’”, desabafa.
As polêmicas não começaram aí. “Quando assumimos uma postura de linha de frente nos meios de comunicação para denunciar as circunstâncias da morte do Gil, teve boleira dizendo que a Chris queria vender mais bolo na confeitaria, por isso ia pra TV”, espanta-se Gilmar, ainda hoje. Ultimamente, os debates giram em torno de alguns posicionamentos da deputada, reticente à descriminalização do aborto e ao casamento homoafetivo. “A opção é de cada um e eu respeito, mas carrego meus valores”, resume.
“Balão Mágico”
Christiane é pastora evangélica. Toda família se converteu quando ela tinha 14 anos. “Meu pai era desembargador e estudou a Bíblia como se fosse um processo”, explica. Tamanha dedicação fundou uma nova igreja: a do Evangelho Eterno – a igreja de lona, no Alto da XV, ou “Balão Mágico”, como alguns gostam de brincar. Hoje, a pregação entrou parcialmente na lista dos abandonos de Chris, mas costuma não negar quando alguém a convida para discursar em uma assembleia.
Falar, aliás, é com ela mesmo. Sem economia nos gestos ou preocupação com o tom de voz e o volume da risada, compartilha piadas com as assessoras enquanto se desloca de um lado para outro da cidade. A ausência de meios tons se soma à sua própria existência. Nunca passa despercebida. É uma mulher grande, “tem presença”, como se dizia. Ou “virada em olho e cabelo”, como ela mesma se qualifica. Faz o estilo perua despachada: “Tem feijão no meu dente?”, pergunta, sem pudores.
Depois da gravação na produtora, despede-se de todos e entra no carro com a assessora, mas não parte de pronto. Passados alguns minutos, chamaria todos perto do veículo para combinar como seria sua festa de aniversário, dali a dois dias. Queria fazer um almoço em casa, preparado por ela mesma. Ninguém aceitou. “Vai trabalhar no dia do aniversário?” Decidiu-se reservar uma mesa no Restaurante Madalosso. “Mas a sobremesa, eu levo”, grita Chris.
Reunir os amigos e a família ainda dói, mas a vida melhora quando pensa nos avanços alcançados, como a maior rigidez na Lei Seca. Para o trânsito no Brasil, usa a metáfora do terreno abandonado, de onde é preciso arrancar as ervas daninhas para poder replantar. “Às vezes, para isso, é preciso machucar a terra”. O filho, para ela, é uma das árvores dessa terra, que mesmo envolta em arames, dá seus pequenos frutos.
Na festa em que comemora seus 55 anos, Christiane não é apenas a mãe do menino que morreu em um acidente terrível, com cenas dignas de filme. Nem ao menos é a deputada mais votada do estado, a boleira, a pastora ou alguém que muda comportamentos com suas palestras. Ali, quem ri, chora, grita e fala sem parar é a Chris: esposa do Gilmar, avó do Lorenzo e da Isabela, e mãe da Daniele, do Jonathan e do Gilmar Rafael. O título mãe das mães lhe cai bem.
Christiane Yared
Christiane Yared nasceu em 23 de fevereiro de 1960. Filha de desembargador, desde criança era dada a colocar a “boca no trombone”. Com 14 anos, mudou de religião. Todos de casa se tornaram pastores evangélicos. Na igreja conheceu Gilmar. Dois anos depois se casaram. Logo nasceram Daniele, Gilmar Rafael e Jonathan. Formada em Belas Artes, precisava ajudar no orçamento da família e começou a fazer bombons de morango para vender. O negócio prosperou e virou uma confeitaria elegante no Alto da XV. Também fazia bolos de noiva. Na véspera do Dia das Mães de 2009, foi acordada às 2h30 por dois agentes funerários. Gilmar e um amigo haviam morrido em um acidente de carro. Christiane e o marido não sabem quantas entrevistas deram para pedir justiça contra o então deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho, envolvido no acidente. Fundou o Instituto Paz no Trânsito (IPTRAN). Ano passado foi eleita deputada federal com 200.144 votos. “As urnas foram o júri”, repete. Carli Filho ainda tenta recorrer na Justiça para não ir a júri popular.
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