O símbolo da Justiça cega não combina muito com a juíza Fernanda Orsomarzo. Ela faz questão de olhar ao redor, de enxergar, de prestar atenção. Acredita que o contexto, a realidade e o histórico importam. E costuma divulgar isso nas redes sociais, detalhando os dramas humanos envolvidos nos casos que julga.
Fernanda começou a ganhar visibilidade em 2016, quando fez uma postagem sobre meritocracia, defendendo que esforço é importante, mas destacando que é inegável o fato de que há um conjunto de pessoas privilegiadas que sai muito na frente na corrida por aquilo que se convencionou chamar de sucesso. O texto teve mais de 150 mil interações e gerou um debate sobre o tema.
Mais recentemente, fez outras postagens que viralizaram. Numa, escreveu sobre a desesperança de uma usuária de drogas que aceitou tratamento – e a mobilização que se seguiu, dos vários profissionais que se sentiram tocados e trabalharam para viabilizar o internamento. Em outra situação, contou sobre o olhar de desilusão de uma mulher que voltou a usar crack ao saber que havia perdido a guarda da filha – e que chorou ao responder que não tinha endereço.
ENTREVISTA: “Prisão sem ressocialização é mera vingança”
A preocupação com as pessoas veio de casa, dos pais, que ela considera suas principais referências. “Eles nunca me deram verdades postas e me permitiram questionar”. Também foram a inspiração para o universo do Direito. O pai foi policial durante 30 anos e hoje é delegado aposentado. Depois dos plantões, contava muitas histórias tristes. “Visitei delegacias desde pequena.” A mãe é advogada, voltada para a área de Família e formada na mesma faculdade em que a filha viria a se tornar bacharel em Direito, a Mackenzie, em São Paulo.
Antes de ser juíza, Fernanda teve outra profissão, que a ajudou a entender melhor os desafios que se apresentariam no futuro. Foi policial civil durante seis anos, atuando como escrivã. Passou no concurso aos 18 anos, no mesmo momento em que foi aprovada no vestibular. Por ter um emprego desde muito cedo, acredita que amadureceu mais rápido.
Quando o sonho da magistratura falou mais alto, pediu exoneração e foi estudar para o concurso. Ela conta que a vontade de ser juíza foi sendo construída ao longo da faculdade, no contato com os professores, nas audiências que assistia. “Eu ficava admirada com aquela figura e pensava que gostaria de um dia estar nesse lugar e entender as histórias que estão ali para ser analisadas.” Avaliava os argumentos de defesa e de acusação e se admirava com as sentenças. “Ficava pensando no desafio que é ouvir os dois lados e tomar uma decisão justa.”
Foi aprovada no concurso paranaense em 2014. Começou atuando como juíza substituta em Assaí e foi transferida para Grandes Rios, onde ficou por dois anos e meio. “É minha vara do coração, onde fui muito feliz e bem recebida.” Depois teve uma passagem pela Vara Criminal de Quedas do Iguaçu, e desde junho, está em Ibaiti, acumulando temporariamente as áreas cível e criminal.
VÍDEO: Veja o que pensa a juíza Fernanda Orsomarzo
Paulista, nascida e criada numa cidade grande, teve o primeiro contato com os paranaenses num município ao norte do estado, com “um pé em São Paulo”. “Pensei que eu fosse sofrer de ir para um lugar pequeno, mas fui tão bem acolhida que eu me sinto bem. Aprendi a ver a vida de outro jeito.”
Alegrias e tristezas
A magistratura trouxe também inquietações. “Comecei a me questionar como um juiz pode ser melhor, como pode ajudar, modificar a realidade à sua volta, e com base nisso fui lendo livros, textos, seguindo algumas pessoas nas redes sociais, e me inspirando. Foi algo natural, foi aumentando meu interesse à medida que eu ia me aproximando da população.” Aos 31 anos, tem especialização em Filosofia e Direitos Humanos e está cursando mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas.
Fernanda conta que a “virada”, o momento em que a realidade bateu forte, veio a partir do contato com o sistema prisional. “Foi a primeira vez que eu pisei numa carceragem e que olhei diretamente um preso. Isso me tocou. Aquele ambiente frio, malcheiroso. Eu entrei com um pouco de receio do que eu ia encontrar do outro lado da grade, mas, quando eu olhei, me identifiquei. Eu vi um irmão, não vi um bandido, um monstro. Eu vi uma pessoa que estava ali porque cometeu um erro, mas que precisava de um olhar, de uma atenção, e foi ali que realmente me sensibilizei.”
A partir desse momento, a juíza decidiu agir mais enfaticamente. Passou a se envolver em ações por um sistema judicial mais humanizado. A atitude teve consequências. A maior alegria na magistratura veio de um projeto chamado Maktub, palavra árabe que significa “estava escrito”, algo como destino. Uma iniciativa para adolescentes em conflito com a lei, promovendo a inclusão por meio de oficinas de teatro, música e dança.
“Muitos deles viraram professores. Trouxemos dois deles, o EJ que canta rap e o Luiz que dança hip hop, para se apresentar para juízes em Curitiba. E na volta, o EJ contou que estava bastante feliz e disse ‘eu me senti gente’. Aquilo me marcou.” Mas esse contato mais próximo também trouxe a maior tristeza. “Foi ter perdido um jovem, que era usuário e foi se envolvendo com o tráfico e foi morto. Ali eu senti o impacto.”
Com 45 mil seguidores no Facebook, Fernanda vê as redes sociais como uma válvula de escape e uma ferramenta de transformação social. “Embora haja uma impressão de anonimato, com pessoas que se sentem em condições de fazer coisas que não fariam pessoalmente, percebo que há a possibilidade de crescimento, de evolução no debate de ideias, educado, que não se traveste de ataque pessoal. Então, embora nem sempre a rede social seja justa, caminha para uma evolução.”
Quem observa seus traços delicados, os gestos lentos e calmos, o olhar direto – mas sem fuzilar – e a voz mansa e baixa, pode achar que está lidando com uma pessoa acanhada ou mesmo frouxa, muito diferente do perfil associado a quem ocupa um cargo no Judiciário. Fernanda escolheu lutar, mas sem agressividade, optando por usar as palavras que buscam o esclarecimento e não o enfrentamento.
Quando questionada se tem coração mole, ela ri. “Não tenho coração mole. Tento ter um coração justo, sem perder a empatia, sem deixar de ver no outro um ser humano, sem deixar de pensar que eu também erro e que na maioria das vezes fui perdoada, e que as pessoas merecem uma segunda chance, que devem ser compreendidas e que isso não me faz fraca, isso me faz uma igual.”
“Prisão sem ressocialização é mera vingança”
Como parte das atividades extragabinete que desempenha, a juíza Fernanda Orsomarzo participa como voluntária em mutirões carcerários. Ela esteve durante uma semana de julho em Curitiba, dentro do complexo prisional de Piraquara, atendendo mais de 100 pessoas e verificando a situação de 2,2 mil processos. Em meio a mulheres presidiárias, com os filhos no colo, na creche da penitenciária feminina, a juíza recebeu a reportagem da Gazeta do Povo. Confira como ela analisa o papel social do Judiciário e o sistema carcerário.
O que pensa sobre prisão?
Antes de a gente discutir prisão, teria de discutir educação. Tem pessoas que não têm o que comer. Pitágoras tem a frase “eduquem os meninos e não será preciso castigar os homens”. Infelizmente existem alguns atos que precisam de uma resposta do Estado, mas o que acaba acontecendo é que não ocorre a ressocialização. Aquela pessoa que comete um erro na vida, às vezes até isolado, acaba colocada em um ambiente hostil, que de nada vai adiantar.
Vivemos num momento em que muitas pessoas acham que a prisão é solução. Até concordam que a educação é o caminho, mas esperam uma solução imediata. O que pensa sobre isso?
Segundo a Constituição, a prisão é a exceção da exceção. Só podemos privar a liberdade de alguém quando não houver alternativa. Hoje, a prisão vem se tornando regra, e muito por causa desse clamor popular, dessa ideia de que a prisão resolve. Mas existem casos que podem ser remediados e a própria lei prevê medidas alternativas, que podem sim trazer uma efetividade. Nós, magistrados, pautados na lei, devemos sempre observar essa excepcionalidade da prisão.
Mas há a cobrança social por mais prisões...
Prisão sem ressocialização é mera vingança. O discurso do medo e do ódio tem permeado a sociedade, que acaba achando que o Direito Penal é a saída para todos os nossos problemas. Infelizmente, é certo ainda que o egoísmo e a indiferença com o outro são a regra nas sociedades modernas. Ninguém se preocupa com o resgate dessas pessoas, com a prevenção dos crimes. A maioria quer punição por punição, e esse tipo de discurso já se mostrou absolutamente ineficaz. Prender não reduz a criminalidade. Basta olharmos os índices de reincidência.
Há uma diferença muito grande entre privar uma pessoa de liberdade e colocá-la numa situação desumana e degradante. Como vê essa situação no sistema carcerário brasileiro?
Uma coisa é privar alguém porque cometeu um crime e para que a pessoa cumpra a pena; e outra coisa é, sob a justificativa de que temos de punir, nós jogarmos alguém num lugar inóspito e desumano. Ao mesmo tempo em que há a necessidade de cumprimento da pena, a Constituição prevê que não será permitido qualquer tratamento cruel ou degradante. Temos que fazer uma composição e ver o que vale mais: a prisão pela prisão e não importa como ela vai ter de cumprir, como um bicho ou até pior, ou tentar trazer melhores condições, para que ela possa ser ressocializada como alguém que possa conviver entre os iguais.
O que pensa de quem diz que Direitos Humanos é coisa de quem defende bandido?
Fico chateada com esse tipo de pensamento, mas, muitas vezes, a pessoa fala porque não tem um esclarecimento. Primeiro, somos todos humanos, então a defesa é para todos. As grandes conquistas que tivemos se deram porque pessoas lutaram por todos. Defender direitos humanos não quer dizer não olhar para as vítimas, mas defender a dignidade de todos.
O princípio de imparcialidade se mistura com a defesa da análise pela letra fria da lei. Muitas decisões são dadas nesse sentido, se ancorando nesse conceito para não ver quem será atingido por aquela sentença?
Sim. Com base no meu trabalho e no meu dia a dia, sempre olho os autos e penso que a letra fria da lei deve ser como um norte para o julgador, mas deve ser conjugada com a realidade social. Estive numa viagem em janeiro, ao Nordeste, e numa comunidade quilombola uma mulher me disse que julgar sem conhecer a realidade é injustiçar. Não esqueço dessa frase e penso que minha visão se resume muito a isso.
Quando você sentiu que estava realmente falando com as pessoas por meio das redes sociais?
O grande boom foi um texto que escrevi em 2016, sobre meritocracia. Escrevi de uma forma bem despretensiosa e, de repente, viralizou, com mais de 150 mil interações. Em que pese tenha sido um pouco assustador na época, senti que poderia usar as redes sociais para isso, para disseminar ideias.
A quem chegou esse material e qual foi o retorno?
Teve gente que não concordou e expôs de um jeito bacana o contraponto, me fazendo pensar, e gente que me atacou nas redes sociais. Mas, de outro lado, teve muitos retornos maravilhosos. Teve um menino que me mandou um áudio, dizendo que era um jovem negro, de uma favela do Rio de Janeiro, e que se sentiu feliz por ter representado a realidade dele sem colocá-lo numa condição de fracassado.
Como vê a repercussão dessas postagens?
No começo foi um pouco assustador, mas hoje vejo com bons olhos. Eu recebo diariamente mensagens de pessoas dizendo que mudaram a sua visão sobre determinado assunto, ou a visão sobre o Poder Judiciário, e isso é um incentivo. Esse senso comum precisa ser quebrado e é bom quando alguém chega e propõe que se pense de outra forma, apresentando uma alternativa àquela visão disseminada.
E como o Judiciário poderia ser melhor?
É um Judiciário consciente de seu papel constitucional. Um Judiciário garantidor de direitos e transformador da realidade social, formado por magistradas e magistrados que, em seu dia a dia profissional, extravasem as paredes dos gabinetes e se aproximem da população e de suas demandas. Um Judiciário idealista e norteado pela constante afirmação da dignidade da pessoa humana. Um Judiciário que represente a esperança.
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