A primeira oportunidade de trabalho da vida de Gilmar*, de 21 anos, surgiu em circunstâncias em que ele menos esperava: na penitenciária, depois de ter sido condenado por tráfico de drogas e porte ilegal. Antes da prisão em regime fechado, ele nunca havia tido um emprego formal. Agora, trabalha em um anexo de uma indústria de cerâmica, instalado dentro da Unidade de Progressão (UP) – um “presídio-modelo” localizado na Penitenciária Central do Estado (PCE), em Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba. Ali, ele passa o dia aplicando decalques em canecas, trabalho que lhe ampliou os horizontes e que o faz vislumbrar um futuro.
“Eu nasci em favela. Nunca ninguém me puxou para o trabalho. Aí, caí para o lado errado. Aqui, eu ganho meu dinheiro, ajudo minha família. Quero continuar nessa quando sair daqui”, planeja ele.
FOTOS: Imagens mostram as atividades desenvolvidas pelos detentos
Gilmar* não é exceção. Na UP, todos os 235 presos do regime fechado trabalham, mesmo atrás das grades. São 20 canteiros de trabalho, cinco dos quais correspondem a instalações levadas para dentro do presídio por empresas privadas. Primeira a se instalar na UP, a indústria Germer Porcelanas, por exemplo, emprega 14 detentos, mas já planeja uma expansão a partir da qual vai dar oportunidade a 25 internos. Hoje, 3,9 mil canecas são decalcadas e finalizadas por dia, na planta que a fábrica instalou no presídio.
INFOGRÁFICO: confira quantos presos trabalham no sistema penitenciário do Paraná
“Eles [os presos] rendem tanto quando os que trabalham na sede da empresa. Têm um comprometimento bacana. Temos um projeto para empregá-los quando eles saírem da prisão”, disse Rielson Gaio, gerente da Germer Porcelanas.
Nas instalações ao lado, trabalha Daniel*, de 28 anos, condenado por roubo. Naquele espaço funciona uma linha de produção em que dez presos confeccionam uniformes para 720 funcionários de uma empresa de segurança. Para ele, o que conta mais é o dinheiro e a possibilidade de antecipar a saída da prisão. Cada detento recebe 3/4 de um salário mínimo (R$ 715): 80% do dinheiro vão para a família e 20% ficam depositados em uma poupança, em nome do interno. Além disso, a cada três dias trabalhados, o preso abate um dia da pena.
Cada detento recebe 3/4 de um salário mínimo (R$ 715): 80% do dinheiro vão para a família e 20% ficam depositados em uma poupança, em nome do interno
“Eu tenho duas filhas – de um ano e meio e de três anos. Esse dinheiro ajuda a família lá fora. Além de eu ocupar a cabeça aqui dentro, me deixa mais perto da porta da rua”, resumiu Daniel*.
Gerente de uma indústria de alimentos, Sônia Loretz trabalha em canteiros de trabalho dentro do presídio desde 2008 e atesta: “O que a maioria deles precisa é de uma oportunidade”. Ela já foi testemunha de como o trabalho dentro dos presídios foi decisivo para a ressocialização. “Na empresa que eu trabalhava antes, por exemplo, três saíram da prisão direto para a linha de produção. Se ninguém der oportunidade, como vai ser?”, questiona.
Entre as mulheres
Há seis anos presa na Penitenciária Feminina do Paraná (PFP), Maria Alice* concluiu oito cursos de corte e costura, ofertados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Paraná (Senai-PR). Antes de ser condenada por tráfico, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, a mulher de 52 anos era dona de um império em Foz do Iguaçu, que incluía hotéis e postos de gasolina. Hoje, ela trabalha na linha de produção têxtil da penitenciária, fazendo uniformes para outras presas e agentes penitenciárias.
“A gente entra [no trabalho] pensando na remição de pena, mas logo se apaixona. Eu era empresária, hoje sou costureira, com orgulho”, diz. “Várias meninas que saíram [da prisão] escrevem, dizendo que estão bem, que conseguiram emprego em confecções lá fora. Isso dá esperança. Eu quero fazer isso, quando sair”, completa.
Condenada a 37 anos de prisão por cinco homicídios, Soraia* planeja montar seu próprio negócio quando “terminar de pagar o que deve”. A mulher de 59 anos está presa há dez. Neste período, concluiu 11 cursos do Senai e aprendeu uma profissão. Hoje, ela é quem ensina as novas presas que começam a trabalhar na unidade penitenciária. “Meu sonho é montar uma salinha e começar um negócio de moletom e malhas. Com duas máquinas, eu já consigo. É isso que eu quero pra mim”, afirma.
O chefe da divisão de qualificação profissional da PFP, José Carlos Mota, aponta que os cursos deram o suporte inicial para a implantação do projeto. Hoje, além disso, a ideia é apostar no compartilhamento de informações entre as próprias internas. “Veja o poder de uma rede: cada presa é uma multiplicadora de conhecimento. Nós começamos o projeto com seis detentas e hoje temos 40”, aponta.
Na contramão do senso comum, uma das principais reivindicações no sistema penitenciário é o trabalho. Principalmente entre as mulheres, que se encontram em condição ainda maior de vulnerabilidade. “Isso por causa de dois fatores: elas são completamente abandonadas, até mesmo por familiares, e precisam se virar para cuidar de si lá dentro e de filhos menores. Do lado de fora, muitas tiveram como oportunidade apenas o mercado de drogas”, avalia a advogada Isabel Mendes, presidente do Conselho da Comunidade.
Na PFP, são três canteiros de trabalho conveniados com empresas privadas. Quando a Gazeta do Povo visitou a unidade, eles estavam excepcionalmente fechados, porque aguardavam-se a chegada de matérias-primas. Uma indústria de panificação deve ser inaugurada na penitenciária nas próximas semanas.
A relação entre trabalho e reincidência
Entre os que lidam diretamente com o sistema penitenciário, a opinião é unanime. “Não existe recuperação, no sentido de ressocializar o preso, sem que exista o trabalho”, resume o Luiz Alberto Cartaxo, diretor do Departamento Penitenciário (Depen). A única unidade do país em que todos os detentos trabalham, no entanto, é a Unidade de Progressão (UP). Idealizada a partir de iniciativa do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Paraná (GMF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Depen e o Conselho da Comunidade de Curitiba, a UP ostenta números animadores: em mais de um ano, apenas um preso reincidiu em crime, após ganhar a liberdade.
“A UP é uma unidade que aproxima o máximo o ambiente interno do presídio do ambiente que temos externamente na sociedade. O interno acorda, trabalho até o final da tarde e estuda até o início da noite. Isso deixa claro o quanto perdemos com o tratamento degradante que há em outras unidades prisionais”, disse o coordenador do GMF, juiz Eduardo Lino Bueno Fagundes Júnior.
“Essas parcerias precisam acontecer cada vez mais. Por isso, vamos em direção à Fiep (Federação das Indústrias do Paraná), a ACP [Associação Comercial do Paraná] para ampliar esses canteiros de trabalho”, avalia Cartaxo.
“A gente entra [no trabalho] pensando na remição de pena, mas logo se apaixona. Eu era empresária, hoje sou costureira, com orgulho”
O diretor da FPF, Marcos Muller, destaca que o trabalho também tem um efeito positivo do lado de dentro do presídio: ajudar a manter a estabilidade das unidades. Por outro lado, contribui de forma decisiva para a reeducação das presas. “Toda interna quer se ocupar e a sociedade quer isso: que o preso trabalhe, que pague pelo seu custo. É uma rede em que todos ganham. Faz parte do nosso papel ‘devolver’ a pessoa melhor à sociedade”, diz ele.
Segundo o Depen, pouco mais de 6 mil presos desenvolvem atividades laborais em presídios do Paraná – 30% do total. Apesar disso, o número leva em conta 2,5 mil presos que trabalham com artesanato dentro das celas, sem remuneração; e 1,8 mil internos que trabalham na manutenção dos presídios e que recebem pecúlio (que equivale a R$ 45 por mês). O Conselho de Comunidade de Curitiba alerta para a necessidade urgente de se expandir as vagas de trabalho.
“O Paraná não é uma ilha de ilusão. Há problemas gravíssimos no sistema penitenciário e a ociosidade é um dos principais fatores de risco. Nós empilhamos muitos presos e cuidamos de poucos. Precisamos de um tratamento penal eficaz, com trabalho, educação, atividade esportiva. O sistema do esquecimento e do embrutecimento já se provou totalmente ineficaz porque produziu a violência e as organizações criminosas”, destacou Isabel Mendes.
*nomes fictícios