As ações judiciais relacionadas ao caso dos Diários Secretos não dependem das provas coletadas na operação Ectoplasma II – realizada em 2010, na Assembleia Legislativa, e que teve efeitos anulados pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, no dia 16 de agosto.
O conjunto probatório é composto de uma série de outros elementos. Os primeiros são as próprias reportagens divulgadas pela Gazeta do Povo e pela RPC, consideradas como pontos de partida da investigação do Ministério Público (MP) e não maculadas por nenhuma discussão judicial sobre legalidade. Os textos e vídeos mostravam que pessoas que não trabalhavam efetivamente na Assembleia estavam lotadas como funcionárias – com a atribuição de altos salários – num esquema que se aproveitava da falta de publicidade dos diários oficiais do Legislativo.
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Também faz parte do farto material analisado pelo MP – além de arquivos cedidos pelos jornalistas –, documentos encaminhados pela própria Assembleia Legislativa, respondendo a ofícios da investigação. A quebra de sigilos bancários e extratos enviados pelos bancos serviram de base para auditorias do próprio MP demonstrarem que os saques de contas de funcionários fantasmas aconteciam em sequência, com intervalo de poucos segundos, sendo que as grandes quantias em dinheiro eram levadas ou usadas para pagamentos de boletos e transferências para os reais beneficiários.
Também dezenas de depoimentos, prestados por pessoas que reconheceram que apenas emprestaram documentos para abertura de contas bancárias e nunca trabalharam na Assembleia, fazem parte do conjunto de provas usado em processos judiciais.
“Acredito na força do conjunto probatório”, afirma Leonir Batisti, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco). Para ele, os advogados de defesa ainda não conseguiram comprovar objetivamente o prejuízo causado aos acusados pelos documentos aventados como ilegais que teriam sido incluídos nos processos.
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Defesa e MP apresentam argumentos sobre anulação de provas
A decisão da 1.ª Câmara Criminal do TJ desencadeou uma série de consequências e também virou uma batalha de argumentos jurídicos. Analisando uma das condenações dos ex-diretores da Assembleia Legislativa José Ary Nassif e Claudio Marques da Silva, acusados de participar do esquema de desvios de recursos, os magistrados acataram a tese de que a busca e apreensão realizada no Legislativo oito anos antes não poderia ter sido autorizada por um juiz de primeiro grau, já que poderia atingir autoridades com direito a foro privilegiado.
Para conferir o que as principais partes têm a dizer, a Gazeta do Povo ouviu representantes da promotoria e da defesa:
O que diz o Ministério Público
O Ministério Público contesta veementemente a decisão da 1.ª Câmara Criminal do TJ-PR. Ainda não foi notificado, mas confirmou que irá questionar o resultado – contudo precisa estudar os termos do acórdão para avaliar a melhor forma de recorrer. Leonir Batisti, coordenador do Gaeco, braço policial do MP que realizou a operação na Assembleia Legislativa, foi enfático em definir a anulação da sentença dos dois ex-diretores e a desqualificação das provas colhidas na busca e apreensão como um desserviço na tentativa de responsabilizar desvios de dinheiro público. “Foi frustrante e equivocada”, avalia.
“Um prédio não tem imunidade”, disparou. O procurador de Justiça salienta que foram coletados documentos apenas no prédio administrativo da Assembleia, nas salas dos diretores, na gráfica que imprimia os diários oficiais e no departamento de pessoal – sem nunca haver aproximação dos gabinetes dos deputados estaduais. Ele também destacou que não havia cabimento de pedir as medidas judiciais da operação diretamente em segunda instância se nenhum dos investigados tinha direito a foro privilegiado.
Não é possível dar prerrogativa a quem não tem
Batisti alega que a tese agora vencedora foi levantada desde o início e nunca prosperou, em oito anos, e que uma discussão jurídica foi feita ainda em 2010, quando Abib Miguel contratou o renomado advogado José Roberto Batochio para questionar os procedimentos do Ministério Público do Paraná. À época, o argumento era de que a investigação dos Diários Secretos decorria do esquema Gafanhoto, que apurava, na esfera federal, a destinação de salários de vários funcionários na mesma conta bancária. Como o caso anterior envolvia suspeitas contra deputados federais, a competência para analisar seria das cortes superiores. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que as investigações não eram correlatas e que a atribuição sobre os Diários Secretos era do Ministério Público Estadual, devolvendo o processo para o Paraná.
Embora saliente que não há jurisprudência uniformizada sobre o caso – portanto, sem entendimento único que deva ser seguido –, o procurador alega que o pleno do STF, no caso do mensalão, ao analisar uma investigação em primeira instância que acabou chegando a um detentor de foro privilegiado, decidiu que a prova não deveria ser desconsiderada, tendo em vista que, assim que foi identificada, foi encaminhada às autoridades responsáveis. Também no caso dos Diários Secretos, segundo o MP, no momento em que documentos comprometendo deputados foram descobertos, foram remetidos para a Procuradoria e os casos passaram a ser analisados pelo Tribunal de Justiça. “Estou plenamente convencido de que o caminho traçado pelo MP foi adequado”, afirma.
O que diz a defesa
Experiente advogado, com atuações na defesa do ex-ministro Antonio Palocci na Lava Jato e no júri do ex-deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho, Alessandro Silvério comemorou a decisão da 1.ª Câmara Criminal do TJ-PR. Na assessoria jurídica do ex-diretor José Ary Nassif, ele fez a sustentação oral durante o julgamento da divergência sobre a apelação. Para Silvério, já havia decisões judiciais no sentido de considerar nulas as provas colhidas em prédios públicos, autorizadas por juízo de primeiro grau. Contudo, no entender do advogado, a partir de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF), em pelo menos três situações, prolatadas por diferentes ministros, teria dado matéria referencial indicando claramente o entendimento pela nulidade.
“O Supremo se manifesta no mesmo sentido da tese que já vinha sendo defendida pelo advogado Eurolino Reis muito antes”, afirma, mencionando um parecer dado por Alexandre de Moraes antes se tornar ministro do STF. Silvério também cita uma decisão dada por um juiz federal, sobre o caso dos Diários Secretos, negando competência para atuar no caso e dizendo que, como havia possibilidade de atingir deputados, o pedido deveria ser feito no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4).
Para o advogado de defesa, está cada vez mais substanciada a discussão sobre os fins justificarem os meios. Segundo ele, com a justificativa de combate à corrupção, em busca do resultado útil, medidas estão sendo tomadas ao arrepio da lei. “O problema é o ativismo do Judiciário”, diz. Silvério considera que a decisão de autorizar a operação na Assembleia foi tomada “de forma afoita”.
O problema é o ativismo do Judiciário
Usualmente discreto, o advogado não costuma dar declarações à imprensa e fez questão de constar que só aceitou se manifestar para contestar o editorial publicado pela Gazeta do Povo na semana passada. Silvério questiona, entre outros pontos, o entendimento de que a decisão da 1.ª Câmara Criminal anula os efeitos da operação policial somente no caso que estava sendo julgado. Para ele, toda a operação foi anulada e assim deve ser considerado em todos os processos do caso. “Não anula só a denúncia, mas o ato decisório de autorizar a operação. Por consequência, as provas coletadas”, diz. “E não pode ser nula para A e não para B”, complementa. Para o advogado, os magistrados tomaram a decisão que melhor se adequa ao sistema constitucional vigente.
Segundo Silvério, houve efetivo prejuízo a partir de provas que deveriam ser consideradas nulas, uma vez que seu cliente está cumprindo pena há dois anos – por outra decisão judicial, mas que seria baseada, de acordo com a defesa, nos documentos da operação policial. Nesse segundo caso, a apelação da condenação foi julgada e considerada improcedente – ou seja, a sentença foi mantida – e está em grau de recurso. Agora o advogado pretende pedir um efeito suspensivo com base no acórdão que acatou o questionamento sobre a legalidade da operação.
Órgão Especial do TJ-PR analisou questão semelhante
Quando foi provocado a decidir sobre o recebimento de uma ação penal contra o deputado estadual Nelson Justus (DEM), em 2016, o TT-PR analisou o argumento da nulidade da operação Ectoplasma II e rechaçou a reclamação. O Órgão Especial, composto por 25 desembargadores e responsável por analisar casos criminais relacionados a deputados estaduais, rejeitou, por maioria de votos, a preliminar da defesa. O voto divergente foi do desembargador Dartagnan Serpa de Sá, que acatou os argumentos de que a denúncia podia estar maculada por provas colhidas com autorização judicial de primeira instância.
Quem é quem
A composição original da 1.ª Câmara Criminal do TJ-PR conta com cinco desembargadores e dois juízes substitutos. Contudo, três desembargadores se declararam suspeitos, sem declinar o motivo: Miguel Kfouri Neto, Antonio Loyola e Macedo Pacheco. Entre os juízes substitutos, Naor Ribeiro de Macedo estava impedido de votar por ser irmão do juiz Marcel Rotoli de Macedo, que apresentou o voto divergente na sessão da 2.ª Câmara. Para conseguir compor cinco votantes para analisar o embargo infringente e de nulidade, foi necessário convocar dois desembargadores de outras Câmaras. A votação foi unânime pela anulação da sentença. Veja quem votou no caso:
- Clayton Coutinho de Camargo, desembargador relator
- Telmo Cherem, desembargador revisor
- Benjamim Acácio de Moura e Castro, desembargador
- Marcio José Tokars, juiz substituto convocado
- Anderson Ricardo Fogaça, juiz substituto convocado
Veja os princípios jurídicos envolvidos
Frutos da Árvore Envenenada
Baseada no Direito norte-americano e incorporada à jurisprudência brasileira, a teoria dos frutos da árvore envenenada parte do pressuposto de que a prova colhida, ainda que contundente e capaz demonstrar um crime, é inválida se foi produzida de forma ilícita. Assim, um telefonema em que duas pessoas dão detalhes de como cometeram uma irregularidade não pode ser usado no processo se o grampo foi ilegal. Os frutos (provas) seriam contaminados pela origem (a árvore).
Teoria da aparência
É um conceito que atribui valor jurídico a atos produzidos de boa fé. Assim, quando não há nenhuma prova de que uma atitude foi tomada para burlar o sistema, tendo em vista que aparenta estar dentro da lei, ela pode ser considerada. No caso, não há evidência fática de que a operação visava buscar informações sobre pessoas com direito a foro privilegiado e, por isso, ao ter como alvo apenas pessoas sem prerrogativa de foro, a ação estaria revestida de legalidade.
Separação de poderes
É um princípio basilar do Direito e também da democracia. É o entendimento de que o Judiciário, o Executivo e o Legislativo são independentes e não se subordinam aos interesses uns dos outros. Vem do conceito do filósofo francês Charles Montesquieu. Nesse quesito, para manter a relação dita harmoniosa entre os poderes, seria necessário que certos ritos e regras fossem seguidos – como o caso de que um poder só pode ser acionado pelo outro a partir do instrumento legal adequado.
Juiz natural
É um princípio jurídico que estabelece quem é o magistrado adequado para analisar determinada causa. Trata-se de saber previamente qual a estrutura judicial avaliará uma situação, para que haja uma previsibilidade, como forma de teoricamente garantir independência e imparcialidade, e para que, por interesse, o caso não se possa direcionar para outro lugar. A Constituição diz que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Assim, o princípio do juiz natural pode ser aplicado ao caso de foro privilegiado, estabelecendo qual a instância judicial avaliará os processos de cada acusado.
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