Somente as chamas quebraram a invisibilidade daquele que já fora considerado o mirante mais importante da cidade. Símbolo de imponência e riqueza arquitetônica, o Palácio Belvedere, construído em 1915, na Praça João Cândido, no São Francisco, amargou três anos de abandono até incendiar em uma noite de dezembro do ano passado. “Aquilo ali foi uma tragédia anunciada. Tinha muita gente que usava droga ali, acendiam fogo lá dentro”, comenta um comerciante da região. O prédio, em concessão à Academia Paranaense de Letras, estava abandonado e há anos servia de abrigo para moradores de rua e usuários de drogas, constataram as reportagens à época.
Menos de seis meses se passaram até o Brasil acordar chocado com a queda do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, no feriado de 1º de maio. Ocupado de forma irregular, o edifício incendiou e desabou após uma tomada improvisada ter causado um curto-circuito no quinto andar. Duas pessoas morreram no incidente, mas ainda há desparecidos. Uma tragédia de proporções bem maiores às do palacete curitibano, claro, mas ambas mostram uma faceta do mesmo problema: o risco destes esqueletos de concreto encravados na cidade.
Dias após a tragédia paulista, o vereador Goura (PDT) foi a plenário cobrar um levantamento sobre a situação dos prédios e edifícios abandonados em Curitiba. O problema é que a prefeitura não tem dados oficiais de quantos prédios e construções se encontram em situação de abandono. De acordo com a secretaria do Urbanismo, o único método de controle e avaliação de riscos são as reclamações feitas pelo telefone 156. Segundo a pasta, por exemplo, foram 150 notificações no primeiro quadrimestre do ano – quando um vizinho liga para reclamar de consumo de droga em determinado local, por exemplo. Mas não há sequer um estudo do teor exato destas reclamações, tampouco um compilado de quais são os locais.
“Há uma série de imóveis que estão abandonados há anos na cidade, e vários deles poderiam ser destinados à moradia social. Com as informações, podemos articular mudanças nas políticas públicas”, defende Goura. Esses imóveis são, em sua maioria, objeto de falências e disputas judiciais. “Curitiba não está tão alheia a esse problema. O desastre de São Paulo mostrou que temos que ter ações aqui também. É obrigação da prefeitura não só fiscalizar, multar, mas cobrar ações específicas”, defende.
“Os prédios não devem ser invadidos pois, quando eles são abandonados, tudo o que havia lá é retirado. Não há abastecimento de água, de força elétrica, de gás e consequentemente os invasores fazem o famoso ‘gato’, que são as conexões sem nenhuma segurança para ter luz na parte de dentro. Como não há nenhum projeto seguro, acontece este tipo de situação e em pleno século 21 estamos assistindo estas tragédias.” explica o presidente do Instituto de Engenharia do Paraná, José Rodolfo Lacerda.
O problema é que os riscos estão lá, embora não existam tanto locais com o perfil dos prédios paulistas. As ocupações por aqui são de caráter temporário, não permanentes. Os prédios locais abrigam, em sua maioria, moradores de rua que procuram um espaço para passar a noite ou algumas delas, sem construir uma estrutura complexa, como no edifício paulista. No ano passado, em Curitiba, foram encontrados 14 endereços com moradores clandestinos – que foram levados para abrigos, de acordo com a prefeitura. “O mesmo problema que ocorreu em São Paulo pode ocorrer em Curitiba. Quando chega o inverno, os ocupantes destes edifícios abandonados precisam se esquentar e acendem fogueiras com papel usado, jornais velhos e até mesmo com botijões de gás sem nenhuma segurança na parte interna. Não há um sistema de combate á incêndio, nem saídas de emergência com segurança. Este incêndio pode evoluir para algo gravíssimo”, aponta Lacerda.
E, de fato, o risco é palpável. Em abril, por exemplo, um módulo policial abandonado no Água Verde, usado como mocó por usuários de drogas, sofreu um incêndio, assustando moradores da região e colocando vidas em risco.
“Se não há água e saneamento, há riscos ligados à saúde. Mas se não houver um sistema de gás encanado, se não houver cozinhas equipadas, as pessoas farão fogo nestes lugares por necessidade e improviso. Ou vão acender um cigarro e adormecer de cansaço”, disse em entrevista à BBC a advogada canadense Leilani Farha, que é a responsável para assuntos de moradia e populações sem-teto nas Nações Unidas. “A relação entre a falta de moradia e a morte - ou a vida, se preferir - é muito próxima. Estas pessoas vivem no limite entre vida e morte. É isso o que tiramos deste episódio: quando governos em nível federal e local fracassam em implementar o direito de moradia, grandes tragédias e mortes acontecem. Se os governos continuarem falhando, isso se repetirá. Isso é muito grave e não pode ser encarado sem seriedade. São justamente estas as questões mais urgentes que vemos hoje nas cidades”, completa.
Um ícone do abandono é o edifício nas esquinas da Alfredo Bufren com a Presidente Faria, no São Francisco. Há quase duas décadas inacabado, ele mostra como estas estruturas expõem a cidade ao risco. “Em 2014, por exemplo, quando estávamos construindo a Praça do Bolso do Ciclista [na entrada da Rua São Francisco], usávamos parte da estrutura deste edifício. Tinha grandes pedaços de ferragens colocando em risco quem estivesse embaixo. O prédio todo pichado, mostrando situação de invasão. Aconteceu inclusive uma situação em que um garoto entrou para pichar, caiu no fosso do elevador, que estava aberto e morreu”, conta Goura. O imóvel está em poder de uma construtora local, a Weber, que não respondeu aos pedidos de entrevista.
Moradia social
Para Goura, a solução deve passar pelo uso social de prédios abandonados. “Vamos pensar em habitação de interesse social. Temos em Curitiba refugiados, migrantes, uma população indígena flutuante na cidade, a população de rua – são mais de 3 mil pessoas em números imprecisos para a própria prefeitura –, tem um enorme número de estudantes que sofrem com essa situação, a fila da Cohab”, diz. Esses prédios poderiam ser usados para acomodar essas pessoas, que preferem o centro da cidade por proximidade de emprego e flexibilidade de horário.
“Não faz sentido levar essa população para longe da cidade, porque aí tem que levar essa cidade até lá. Tem distorções no plano de zoneamento”, defende.
A pauta das moradias sociais é reivindicação antiga. Em Curitiba, o déficit habitacional é de 36 mil domicílios, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015 (a última disponível). A Cohab, no entanto, aponta que não há planos para ocupar estes espaços. Tampouco instrumentos legais que poderiam suavizar essa questão são colocados em prática. “Curitiba não aplica o IPTU progressivo [que é maior se o imóvel é pouco ou nada utilizado]. Isso por si só já evitaria a especulação ou subutilização destes imóveis e daria vida à cidade”, diz o advogado tributarista Marcelo Griemel. “Na prática, o município só perde dinheiro com estas estruturas vazias”, diz.
Por enquanto, as ações se restringem a um campo fiscalizatório e punitivo. Quando recebe a notificação, a prefeitura dá um prazo para que o proprietário do imóvel tome medidas para solucionar o problema. Caso seja a invasão de moradores de rua, é papel do proprietário tapar portas e janelas com tapumes. Caso não faça, recebe multa. Em caso de reincidência, a multa é dobrada. Novamente, os valores são variáveis, mais brandos para os padrões de algumas destas construções. Neste ano, dos mais de 30 casos de multa, os valores variaram de R$ 835,08 e R$ 4.180,59.
Cenário de precariedade
“Levei facada no braço, aqui atrás da cabeça... Já vieram tentar me matar umas três vezes”, relembra o gerente de um pequeno hotel na Pedro Ivo, que funcionava anteriormente como uma espécie de cortiço. Hoje, o funcionário, de descendência iraniana, diz que o local “acalmou”. “Agora aqui é um hotel mesmo, aí essas pessoas preferem ir para os pensionatos”, aponta.
“Essas pessoas” a que se refere são traficantes, foragidos da Justiça ou criminosos que usam os pequenos espaços no centro da cidade para esconder drogas, objetos de furto e armas. “Não usavam a fechadura, tinha gente que furava a parede (dos quartos) e passava uma corrente. Não confiavam na chave”, conta. Um antigo proprietário do local foi morto na escadaria em 2011. Um pouco antes, um hóspede foi baleado nas duas pernas ao reagir a uma abordagem policial. “Eles ligavam fogareiro no quarto, aí era preciso comprar briga”, conta o gerente, mostrando o escasso esquema de segurança entre os quartos de pouquíssimos metros quadrados. O hotel já passou por um princípio de incêndio em 2012.
O endereço engrossava a estatística de cortiços no centro de Curitiba – basicamente prédios antigos cujos cômodos são alugados para diversas famílias, de forma informal, em uma panela de pressão constante. Estrangeiros refugiados sem emprego ou com salários baixos dividem espaço com famílias e criminosos. “São estruturas bem precárias. Prédios históricos, mas por dentro com estrutura de madeira e tem bastante problema”, afirma a cientista social Marcela Lino, que fez uma complexa dissertação sobre os cortiços curitibanos. Em seu trabalho, visitou diversos destes endereços para descobrir o perfil dos hóspedes locais. “Não sou uma técnica, mas estes endereços me passaram uma situação de muita insegurança”, diz.
Morador de um destes cortiços, o equatoriano Jean García, que faz bicos em lanchonetes e restaurantes, relata que o convívio e a segurança são uma preocupação constante. “Moro em um dos quartos. Pago R$ 200 por mês. É perigoso porque as pessoas fumam dentro do quarto, que é de madeira e as tomadas são todas amontoadas”, relata. Ainda assim, prefere a situação do que voltar para a terra natal, onde “não tem trabalho algum”. “Meus primos vieram antes. Eles estão em outro prédio [cortiços também] porque podem pagar um pouco mais”, indica.
As reformas irregulares para transformar prédios em cortiços são passíveis de multa pela legislação. Mas é algo impraticável, admite a cientista social. “No Centro de Curitiba existem várias moradias de cortiço, porém os dados sobre elas são de difícil acesso, desatualizados, e não levam a algum tipo de ação efetiva. E como se constituem de propriedades particulares, a dificuldade de intervenção por parte do poder público se agrava. Inclusive, um dos pontos que levam à invisibilidade das moradias de cortiço, é a pouca ou nenhuma discussão sobre o tema, e menos ainda ações que intervenham sobre este tipo de moradia”, destaca em seu trabalho.
Aos moradores, resta subsistir nessas condições, já que a relação é quase de submissão. “A forma de locação não acontece por contrato documentado e permite que o dono aja de forma arbitrária, recebendo ou expulsando moradores quando e da maneira que desejar. Situação que faz com que os moradores tenham receio de criticar as instalações do local, e as situações adversas ocorridas entre a vizinhança. Às vezes este receio se soma a uma suposta relação de amizade com o proprietário, que não chega a ser tão sincera, já que o inquilino não pode criticar o locador nem os serviços que ele lhe oferece”, diz Marcela.
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