Marcelo Abi-Ramia Caetano era técnico de planejamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) quando preparou um diagnóstico da Previdência Social. O estudo, produzido em parceria com o pesquisador Roberto de Rezende Rocha, do Banco Mundial, chegou à seguinte conclusão: “O melhor caminho para a sobrevivência do sistema previdenciário será uma expressiva reforma, que o adapte à boa prática internacional. Insistir na manutenção das regras atuais implicará aumento da sua insolvência e corresponderá à rota mais rápida e eficaz para sua decadência”.
O texto foi publicado em março de 2008. De lá para cá, não houve reforma alguma, apenas mudanças pontuais na legislação, que limitaram o déficit do regime dos servidores públicos mas, por outro lado, ampliaram o rombo do INSS, que cuida dos aposentados e pensionistas do setor privado. Hoje, passados quase dez anos daquele diagnóstico, Caetano é secretário da Previdência Social. E assiste ao lento naufrágio da reforma que idealizou, enquanto o sistema segue veloz pela rota da decadência.
O pagamento de aposentadorias e pensões é a principal causa para o buraco gigantesco que as contas primárias do governo federal exibem há quatro anos – e continuarão exibindo até, no mínimo, o início da próxima década. O déficit previdenciário, que se aproxima de R$ 190 bilhões apenas no INSS, é maior que o rombo do conjunto das contas públicas, estimado em R$ 159 bilhões neste ano. Ou seja, sem a Previdência, o resultado primário do governo ainda estaria no azul.
Quase 60% da arrecadação de impostos, já descontadas as transferências a estados e municípios, é destinada ao pagamento de benefícios previdenciários. Como o dinheiro do contribuinte não é infinito, o governo vai cortando onde a lei permite: saúde, educação, programas sociais, investimentos.
Medo e delírio
A ruína das finanças e dos serviços públicos não parece sensibilizar o Congresso, que é dominado por dois grupos. Na bancada do medo estão os que, mesmo na base aliada e reconhecendo os problemas do setor, não querem mexer com tema tão espinhoso a menos de um ano das eleições. Eles defendem que reforma é tarefa para governo novo, recém-eleito, o que faz bastante sentido do ponto de vista político.
“Os deputados que aprovaram terceirização, reforma trabalhista e teto de gastos tiveram muito prejuízo político. Se votarem a Previdência, é a pá de cal. A reforma foi trucidada pelas redes sociais, então não há espaço de racionalidade para fazer uma mudança tão grande, importante e necessária”, diz um deputado do PSDB. “Eu votaria a favor por questão de princípio, porque a reforma tem que ser feita. Mas sabendo que não voltaria mais para o Congresso.”
Na outra bancada estão parlamentares que negam a própria existência do déficit da Previdência. Um grupo que agora exibe, como uma espécie de “selo oficial”, o relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada no Senado para fazer oposição às mudanças na lei. Chancelando uma antiga narrativa de sindicatos e de parte da academia, a CPI decretou no mês passado que “tecnicamente” não há rombo nem na Previdência nem na Seguridade Social, apesar das evidências em contrário apresentadas por especialistas ouvidos pela própria comissão.
Em meados de agosto, o próprio Marcelo Caetano expôs aos senadores da CPI dados e projeções econômicas e populacionais que ilustram a piora acelerada na relação entre arrecadação de contribuições e pagamento de benefícios da Previdência. Mas não foi nem sequer citado no relatório final, de 253 páginas.
Homem certo, lugar certo
Um dos principais estudiosos do assunto no país, o economista foi escolhido para a Secretaria da Previdência Social pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Seu nome foi anunciado em 17 de maio de 2016, cinco dias depois de Michel Temer assumir a Presidência. A reforma começaria a afundar exatamente um ano mais tarde, da forma mais inesperada.
Quando foi nomeado, Caetano era o homem certo no lugar certo. De 1998 a 2005, ele foi coordenador de Atuária, Contabilidade e Estudos Técnicos do Ministério da Previdência Social. Ajudou a simular o impacto fiscal de reformas no Brasil, Equador e Cabo Verde. E em 2012 passou a coordenar os estudos dessa área no Ipea.
Além de carregar essa bagagem, o secretário da Previdência era imune a um dos ataques mais comuns à reforma: a cobrança por coerência. Temer foi muito criticado por tentar adiar a aposentadoria dos brasileiros e reduzir o valor dos benefícios mesmo tendo – ele e outros medalhões de seu ministério – se aposentado precocemente e com vencimentos elevados. Caetano, por outro lado, seria diretamente afetado pela lei que estava ajudando a criar.
Hoje com 47 anos, o secretário da Previdência ficaria de fora da regra de transição prevista na versão original da reforma e conseguiria se aposentar somente ao atingir a idade mínima de 65 anos. Também perderia o direito que a maioria dos servidores tem à integralidade (valor do benefício igual ao último salário, ou à média dos salários, dependendo do caso) e à paridade (reajuste igual ao pessoal da ativa).
Mas, embora tenham sido úteis na elaboração da reforma, o conhecimento técnico e essa espécie de salvo-conduto de Caetano não fizeram muita diferença na sequência.
Desidratada e desigual
Temer demorou a encaminhar para o Congresso a Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Defendendo uma utópica “reforma consensual”, o governo perdeu meses em discussões infrutíferas com centrais sindicais para, no fim, encaminhar o texto que sempre esteve em seus planos. A PEC 287 deu entrada na Câmara apenas em dezembro do ano passado. E já chegou desfalcada: atendendo às Forças Armadas, o governo decidiu não mexer nos benefícios dos militares.
Na comissão especial da Câmara, a pressão de grupos organizados levou o relator, Arthur Maia (PPS-BA), a desidratar o texto original, reduzindo o impacto sobre as contas públicas e enterrando o conceito de reforma “igualitária”. A regra geral, que estabeleceria idade mínima e tempo de contribuição iguais para todos após um período de transição que duraria até a década de 2030, deu lugar a um amontoado de asteriscos, com normas específicas para segurados do INSS, funcionários públicos, professores, policiais e agricultores.
As concessões só reforçaram a percepção popular de que a reforma prejudica a maioria desorganizada sem mexer em privilégios. E provavelmente minaram parte do escasso apoio que ela ainda tinha – segundo diferentes pesquisas, mais de 70% dos brasileiros rejeitam a mudança na legislação.
Leia também: Sem reforma da Previdência, impostos podem subir R$ 430 bilhões em 10 anos
Apesar dos revezes, ou por causa deles, a PEC foi aprovada pela comissão especial no início de maio, e desde então está pronta para ser votada no plenário da Câmara. Mas nunca entrou na pauta, e não se sabe se um dia entrará. Temer, que já naquela época não contava com o mínimo de 308 votos necessários para aprovar a emenda constitucional na Câmara, passou a gastar seu capital político com outro tipo de desafio: o de se manter no cargo.
Em 17 de maio, uma semana depois de a comissão especial concluir a votação da PEC, veio à tona a gravação do encontro às escondidas entre Temer e o empresário Joesley Batista, da JBS. Duas denúncias depois, o presidente continua no cargo e a reforma, estacionada. E o ministro da Fazenda, num otimismo aparentemente inabalável, segue declarando que conta com a aprovação da PEC no mês seguinte.
Parlamentares aliados duvidam até da aprovação de versão enxuta da reforma, limitada a idade mínima e regra de transição. Até a recuperação da economia parece atrapalhar, ao alimentar a percepção de que as coisas estão melhorando e que o remédio amargo pode esperar.
O que nos espera
Alheia a questões políticas e contabilidades criativas, a população segue envelhecendo a passos rápidos. A queda nas taxas de fecundidade e a “pejotização” em massa limitam a entrada novos contribuintes do INSS no mercado de trabalho, ao passo que o aumento da longevidade faz a população idosa – que recebe os benefícios previdenciários – crescer rapidamente. O número de aposentados aumenta a uma taxa de mais de 3% ao ano.
Os brasileiros com 65 anos ou mais eram 5,6% da população em 2000 e hoje já são 8,5%, segundo o IBGE. Apesar desse avanço, o perfil demográfico ainda é de país jovem. Mas o gasto público com Previdência já é de país velho. Em 2016, o setor público destinou 13% de todas as riquezas geradas pelo Brasil ao pagamento de benefícios previdenciários. Mais que o Japão, onde 26% da população é idosa e o gasto com aposentadorias e pensões é de pouco mais de 10% do PIB.
Mesmo tomando-se como referência um símbolo do Estado de bem-estar social como a França, a situação brasileira é preocupante. Os franceses gastam 13,8% do PIB – pouco mais que o Brasil – com a previdência. Mas, lá, 19% da população tem 65 anos ou mais – mais que o dobro do nosso índice.
É assunto digno de ser debatido na campanha eleitoral. Mas, historicamente, os candidatos preferem evitar o assunto, pois falar em restringir benefícios não dá voto a ninguém.
As projeções do IBGE indicam que o Brasil atingirá padrão demográfico semelhante ao do Japão por volta de 2060. Até lá, estima o governo, a despesa com Previdência chegará perto de 23% do PIB caso as regras não mudem. Um desfecho improvável. No compasso em que estão, as despesas dessa área tendem a abocanhar todo o orçamento da União antes de 2040. Antes de o Estado implodir, alguma reforma será finalmente aprovada. Quanto mais demorar, mais traumática será.
UMA NO PREGO, OUTRA NA FERRADURA
Em 2012, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criou o Funpresp, a previdência complementar do funcionalismo. Com isso, os servidores contratados a partir do ano seguinte passaram a ter seus benefícios limitados ao teto do INSS, a menos que contribuam para esse fundo.
Mas, em 2015, na tentativa de frear o aumento de gastos com pensões, Dilma aceitou como contrapartida a implantação da fórmula 85/95, que ampliou a concessão de benefícios integrais justamente à fatia mais privilegiada dos celetistas – os que conseguem se aposentar por tempo de contribuição, em muitos casos antes de completar 60 anos.
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