A votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado do projeto de lei relatado pelo senador Roberto Requião (PMDB-PR) que trata do abuso de autoridade, prevista para esta quarta-feira (26), marca mais um capítulo no embate entre uma classe política emparedada por suspeitas como as levantadas pelas delações de executivos da Odebrecht, de um lado, e integrantes de Ministério Público e poder Judiciário, de outro.
Para os juízes e o MP, o texto, se virar lei sem alterações, irá prejudicar “qualquer investigação que envolva pessoas poderosas”, nas palavras da procuradora Laura Tessler, integrante da força-tarefa da operação Lava Jato. Requião, por seu turno, anota no relatório do projeto de lei que os críticos “não compreenderam ou não fizeram a correta interpretação” do que está proposto.
Os principais pontos de discórdia são dois. O primeiro é o que os envolvidos na matéria convencionaram chamar de “crime de hermenêutica”, ou seja, da interpretação da lei. Para os críticos, o projeto abre a possibilidade de que juízes sejam punidos por apresentarem suas leituras do texto legal.
“A redação atual do projeto, de autoria do senador Roberto Requião e que tem o apoio do senador Renan Calheiros, não contém salvaguardas suficientes. Afirma, por exemplo, que a interpretação não constituirá crime se for ‘razoável’, mas ignora que a condição deixará o juiz submetido às incertezas do processo e às influências dos poderosos na definição do que vem a ser uma interpretação razoável. Direito, afinal, não admite certezas matemáticas”, critica o juiz federal Sergio Moro, em artigo publicado no jornal “O Globo” nesta terça-feira (25).
No relatório, Requião diz que Moro “aquiesceu” com sua redação para trecho do projeto que trata do assunto. O peemedebista escreve que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade”.
Em nota divulgada no último dia 19, Moro já havia negado estar de acordo. “Se o substitutivo apresentado pelo senador Requião agrega o condicionante ‘necessariamente razoável e fundamentada’, esclareço que não fui consultado sobre essa redação específica e ela, por ser imprecisa, não atenda a minha sugestão”.
“O projeto de lei possui muitos defeitos e precisa ser discutido à exaustão. Mas não vejo presente descrição do que se convencionou chamar ‘crime de hermenêutica’, até porque [isso] seria claramente contrário à Constituição”, diverge o advogado José Carlos Cal Garcia Filho, presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR (Ordem dos Advogados do Brasil, seção Paraná). “O projeto ressalva, em favor do agente público, justamente o espaço de indeterminação e subjetividade característicos da interpretação”, avalia Garcia, que já defendeu investigados pela operação Lava Jato.
Processos contra investigadores
Para os procuradores do Ministério Público, o ponto mais sensível do projeto trata da possibilidade de que qualquer pessoa que se sinta prejudicada por uma investigação ou uma decisão judicial possa processar o investigador ou o julgador. Atualmente, tal prerrogativa é exclusiva do próprio MP.
“Isso será usado como vingança e ameaça a julgadores e procuradores”, afirma Laura Tessler. “[Se a lei for aprovada como está] Só usaremos nosso tempo para nos defender. Temos mais de 200 acusados [nas investigações da operação Lava Jato]. Imagine cada procurador aqui respondendo a 200 ações penais. [Os investigados] São pessoas de grande poder econômico, que podem arcar com custos [de ações judiciais] e fazer com que investigadores sejam falsamente criminalizados por cumprir sua função constitucional e seu dever funcional.”
No projeto, a possibilidade de “legitimidade concorrente do ofendido para a promoção da ação penal privada” está descrita no artigo terceiro. “Sensibilizou-me a sugestão formulada pelo Dr. Fábio Tofic Simantob, Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, durante a audiência pública havida no dia 4/4/2017, no sentido de possibilitar a legitimação concorrente do ofendido, como forma de dar maior efetividade à lei”, justifica Requião, no texto.
“Não vejo problema em que o ofendido seja legitimado para provocar o processo-crime contra eventual abuso de autoridade. Isso porque, muitas vezes, o ofendido encontrará resistência nos órgãos a que eventuais agressores pertençam. De todo modo, o próprio ofendido responderá por eventuais abusos no exercício desse direito”, argumenta o advogado Cal Garcia.
Se monitorar esses abusos seria já difícil, mais complicado é lidar com uma brecha aberta por esse dispositivo incluído por Requião. Durante um processo, o réu poderia entrar com uma ação contra o juiz, o que forçaria o magistrado a ter de sair do julgamento – ele poderia ter de se declarar impedido por ser parte em uma ação envolvendo o réu.
Lei sobre o tema precisa mudar. Mas será o momento?
Se existem divergências quanto ao conteúdo do projeto de lei, há um “consenso”, nas palavras da procuradora Laura Tessler, quanto à necessidade de se atualizar a legislação brasileira sobre o abuso de autoridade.
“É um consenso [que é preciso] atualizar a lei. Mas acreditamos que [uma nova regra] deva ser amplamente discutida, e não feita no açodamento, como se fosse necessidade primária da sociedade, que não é. E não é este o momento adequado, justamente quando pela primeira vez o combate à corrupção vem tendo sucesso no país”, diz a integrante da Lava Jato.
“É indispensável a atualização dos crimes de abuso de autoridade à luz de um ordenamento democrático”, afirma Cal Garcia, presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR – o texto em vigor atualmente é de 1965, ano em que o Brasil vivia sob ditadura militar.
“Tenho muito mais reticências em relação ao texto [discutido no Senado] do que à iniciativa [de legislar o abuso de autoridade]. Se tem um momento em que é importante falar em abusos de poder, em limites para as autoridades, é este. O momento é perfeito”, afirma Paulo César Busato, professor do departamento de Direito Penal da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e procurador de Justiça do Ministério Público Estadual.
“O problema é que, como está redigido, o projeto de lei abre espaço para essa classe de interpretação”, diz, referindo-se à interpretação de que seria uma revanche da classe política contra Ministério Público e o Judiciário.
“Também não me parece que seja apropriado figurar na relatoria algum senador envolvido com o lado A ou o lado B do maniqueísmo [político-partidário que vive o país]. É um momento de técnica, de isenção, e não de lenha na fogueira. Será uma votação polêmica, tendendo ao maniqueísmo”, aposta Busato.
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