Caiu como uma bomba: a Polícia Federal decidiu, no início do mês, encerrar as atividades da força-tarefa criada há cerca de três anos para atuar exclusivamente nas investigações da operação Lava Jato. O Ministério Público Federal (MPF) chiou, manifestantes foram à superintendência da PF protestar, políticos de oposição a Michel Temer viram uma tentativa de sepultar investigações que cada vez mais ameaçam o presidente e seus aliados.
O delegado Igor Romário de Paula, coordenador da Lava Jato na PF, apressou-se a negar “teses conspiratórias”. Numa entrevista coletiva improvisada no mesmo dia em que a notícia veio à tona, disse: “A ideia inicial partiu de nós. Não teve conteúdo político, pressão, nada disso. Temos dificuldades, a equipe [para a Lava Jato] foi reduzida. Mas daí a criar um argumento de que isso tudo faz parte de uma grande estratégia para abafar a investigação é um equívoco muito grande”, garantiu.
Para ele, a mudança indica o sucesso, e não o fracasso, da operação. “Tivemos até 60 pessoas na força-tarefa em Curitiba. Hoje, temos 17 unidades da federação tocando investigações derivadas da Lava Jato. É um cenário mais difícil do que o lá de trás, quando havia exclusividade da investigação no Paraná. Hoje, os recursos são compartilhados entre as unidades prioritárias.”
De sua trincheira, o MPF – que ainda tem a sua força-tarefa para tocar a Lava Jato, comandada pelo procurador Deltan Dallagnol – respondeu, via nota oficial. “A anunciada integração, na PF, do Grupo de Trabalho da Lava Jato à Delegacia de Combate à Corrupção e Desvio de Verbas Públicas (Delecor), após a redução do número de delegados a menos de metade, prejudica as investigações da Lava Jato e dificulta que prossigam com a eficiência com que se desenvolveram até recentemente”, afirma o texto.
Diz mais: “O efetivo da PF na Lava Jato, reduzido drasticamente no governo atual, não é adequado à demanda. Hoje, o número de inquéritos e investigações é restringido pela quantidade de investigadores disponível. Há uma grande lista de materiais pendentes de análise e os delegados de polícia do caso não têm tido condições de desenvolver novas linhas de investigação por serem absorvidos por demandas ordinárias do trabalho acumulado. A redução e dissolução do grupo de trabalho não contribui para priorizar ainda mais as investigações ou facilitar o intercâmbio de informações”.
Uma fonte da PF, confrontada com a nota do MPF, disse o seguinte à reportagem: ““Eles têm o direito de achar o que eles quiserem. Mas a decisão pela mudança foi nossa mesmo.” Já outra, essa do MPF, respondeu o seguinte: “Os procuradores não soltariam a nota sem falar antes com o pessoal da PF. E eles lá não podem se manifestar, pois são subordinados ao Ministério da Justiça [para o qual Temer deslocou, recentemente, Torquato Jardim, homem de sua confiança].” O MPF, por seu turno, é um órgão independente – não está ao alcance presidente da República, por exemplo, demitir o procurador-geral da República ou mandar extinguir a força-tarefa liderada por Dallagnol.
O fim ainda está longe?
Não é, por certo, o fim da Lava Jato. O próprio avanço da investigação – e dos processos judiciais que ela motivou – faz com que Curitiba tenha um papel cada vez menos central. No dia 12 de julho, o juiz federal Sergio Moro emitiu a primeira sentença contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Condenou-o a nove anos e meio de prisão por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no caso do apartamento tríplex no Guarujá, litoral de São Paulo. Com isso, esse caso sai da capital paranaense e vai para Porto Alegre, onde está a segunda instância, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).
Há outro processo, em Curitiba, que tem Lula no banco dos réus. Este trata a compra de um terreno, em São Paulo, que a Odebrecht pretenderia destinar ao instituto criado pelo ex-presidente, na acusação feita pelo MPF. E caminha rápido: Moro marcou o novo depoimento do petista para 13 de setembro, e o julgamento, com isso, também não deve tardar.
Outros réus de peso – Eduardo Cunha, Antonio Palocci e José Dirceu – já foram condenados em ao menos parte dos processos que respondem em Curitiba. Palocci e Cunha ensaiam delações premiadas, mas seus alvos devem ser, prioritariamente, portadores de foro privilegiado – o que quer dizer que os inquéritos que irão demandar devem correr sob os cuidados de instâncias superiores.
O mesmo vale para desdobramentos recentes da operação – como, por exemplo, as delações dos empresários Joesley e Wesley Batista, da JBS. Por outro lado, parte considerável dos inquéritos que a PF ainda tem abertos por aqui tratam de “fatos antigos, muitos decorrentes de colaborações [premiadas] que ocorreram tardiamente e foram segurados”, nas palavras do delegado Igor de Paula.
Ainda assim, muitas linhas de investigação prometidas ao longo da operação – como, por exemplo, esquadrinhar as contas de publicidade e comunicação da Petrobras – podem nunca se tornar realidade. E há um desgaste natural da operação, após mais de três anos e sucessivas manchetes de prisões de políticos e grandes empresários. Desgaste vitaminado pela situação econômica do país, como admitiu numa palestra recente o procurador Santos Lima.
“Hoje, há uma unidade do espectro político para aprovar leis que impeçam a continuidade da investigação. O atual momento é de cansaço da população com a Lava Jato. Muitos dos [movimentos] que nos apoiaram achando que era uma investigação do PT não nos apoiam mais. Outras pessoas pensam mais na crise, querem que a situação econômica melhore”, ele disse, em Curitiba, num evento beneficente para a Apae.
“Uma hora tem que acabar”
“Em algum momento, a Lava Jato tem que acabar”, avalia o cientista político Alberto Carlos de Almeida, diretor do InteliGov, empresa de inteligência de governo e monitoramento legislativo e autor do best-seller “A cabeça do brasileiro”. Em artigo recente para o portal “Poder 360”, ele aposta que a operação perderá força após eleições de 2018, quando “a política retornará ao palco pelas mãos dos representados e a Lava Jato perderá o seu protagonismo”.
Enquanto isso, Almeida vê o fim da força-tarefa da PF como “parte do jogo”. “Há um cabo de guerra entre o mundo político e o das procuradorias, do Judiciário. A PF é um órgão do poder Executivo. Então, a decisão é do poder Executivo, de proteção ao mundo político.”
O norte-americano naturalizado brasileiro David Fleischer, professor de ciência política na Universidade de Brasília (UnB), concorda. “[O fim da força-tarefa] Foi uma decisão dos delegados. Mas é claro que a PF teve um corte violento no seu orçamento, tanto que falaram em parar de emitir passaportes. Falta verba para gasolina, viagens. Isso é uma parte da história. Mas meu ex-colega de UnB, o [ministro da Justiça] Torquato [Jardim] provavelmente colocou o dedo ali para mexer nisso”, ele afirma.
E a “República de Curitiba”?
Tal qual o transporte coletivo e a coleta seletiva de lixo, nos anos 1990, a operação Lava Jato se tornou um ícone de Curitiba para muitos de seus moradores. Uma frase dita por Lula numa das conversas grampeadas pela Polícia Federal mencionava a “República de Curitiba”. Era uma referência à República do Galeão, um tribunal de exceção montado em 1954 após o atentado da Rua Tonelero, em Copacabana, quando um oficial da Aeronáutica foi morto num atentado contra o jornalista – e mais tarde também político – Carlos Lacerda.
Lacerda culpou o presidente Getúlio Vargas, e a oposição fez com que a investigação policial fosse para as mãos da Aeronáutica, que concentrou as investigações na base aérea do Galeão. A República do Galeão, como se sabe, acabou abruptamente após o tiro contra o próprio peito disparado por Vargas.
Por aqui, porém, a “República de Curitiba” virou orgulho da cidade. Adesivos em automóveis e camisetas celebram a cidade em que “se cumpre a lei”. Não é o que parece ao procurador Diogo Castor de Mattos, um dos integrantes da força-tarefa do MPF. Num artigo chamado “Paraná, paraíso da impunidade”, ele afirmou, na Gazeta do Povo, que “enquanto para alguns a Lava Jato curitibana promoveu uma faxina no país, a cidade continuou com seu quintal imundo, pois os casos de corrupção local sempre acabaram em pizza”.
“É inegável que existe na Polícia Federal de Curitiba uma expertise na investigação de crimes de corrupção. Isso não se deve à boa vontade ou ao voluntarismo dos policiais, mas a circunstâncias histórias, à tríplice fronteira e um histórico de contrabando e de corrupção por aqui”, diz o cientista político Luiz Domingos Costa, professor da PUCPR.
Ele lembra de casos como os do Banestado, que reuniu, no começo dos anos 2000, figuras como Deltan Dallagnol, Carlos Fernando dos Santos Lima e Sergio Moro para investigar um escândalo de corrupção no hoje extinto banco estadual paranaense, durante o governo Jaime Lerner. Deu em nada, como se sabe.
Ressaca da condenação
Logo após a condenação de Lula por Sergio Moro, uma multidão acorreu à praça localizada em frente à Justiça Federal. Mais que uma manifestação de apoio à Lava Jato ou contra a corrupção, a coisa tinha ares de festa anti-petista. Munidos de “pixulecos” – os bonecos com o ex-presidente vestido de presidiário –, bandejas com coxinhas e fogos de artifício, dezenas de pessoas celebravam. Quem esteve por lá ouviu uma manifestante, eufórica, gritando palavras de apoio ao presidente acuado pela Lava Jato. Não Lula, mas o atual. “Fica, Temer”, ela berrava.
Um dia antes da sentença, a reportagem tentou, por meio do perfil no Facebook do “Acampamento da Lava Jato” – mantido por manifestantes na praça em frente à Justiça Federal –, ouvir a opinião do grupo sobre o fim da força-tarefa na PF. “Estamos realmente muito preocupados com o desmanche da Lava Jato”, respondeu a responsável pela conta, prometendo uma entrevista para dali dois dias. Na dia marcado, um dia após a condenação de Lula e a festança na praça, ela foi novamente procurada. Não atendeu à ligação ao telefone nem respondeu às mensagens.
Voltou a fazer contato com a reportagem apenas uma semana após Lula ser sentenciado. “Desculpe, semana passada foi correria com a Festa da Condenação (sic), e só agora vi sua mensagem. Acho que tarde demais, né? Fica para a próxima.”
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