Bem-vindos ao mundo de Gilmar Mendes. Quando o relógio marca 5 horas da manhã, às vezes mais cedo, ele já começou a enviar mensagens pelo celular ou computador para seus assessores mais próximos. Ninguém sabe se ele acabou de acordar ou ainda não dormiu. Além de ler jornal, ele também se exercita com um personal trainer, malha e gosta de andar de bicicleta na rua toda semana. Recentemente, conseguiu perder 10 quilos comendo mais frutas e salada apesar de gostar muito de carne vermelha. É o início do dia para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e também presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que dorme pouco, não desliga nem nas férias e está sempre em alguma polêmica.
Sempre que pode, pilota seu jet ski pelo Lago Paranoá, em Brasília, e brinca com os cachorros, como Bob, um Golden caramelo, que faz a alegria da casa. Para o ministro, um programão daqueles é ir em livrarias, sebos ou antiquários. Toda semana, Gilmar tem aulas de inglês, alemão e piano. Certa vez, uma professora alemã, com quem ele teve aulas durante 12 anos, o surpreendeu ao entregar uma carta em alemão em que “demite o ministro” por ser um aluno “muito indisciplinado”. É que ele não tinha tempo para fazer dever de casa e desmarcava as aulas às vezes em cima da hora. A gota d’água foi atender o telefone durante os ensinamentos da professora. Ela disse que aquela seria a última aula e assim o fez. O ministro conta a historia como uma de suas peripécias e ressalta como os alemães são sérios e rigorosos.
Na juventude, ele se especializou em Direito Constitucional na Alemanha. Quem o conhece de perto, diz que o ministro é menos sério, e mais bem humorado do que realmente parece. Mas bem ao modo brasileiro, Mendes quebra aquela desbotada máxima de que juiz só deve se manifestar nos autos. É conhecido porque fala, às vezes sem filtros, explode, ironiza teses e desafetos em plenário, em palestras, entrevistas, vídeos publicados no Youtube e mais recentemente até pelo Twitter. Na internet, são mais de 20 mil seguidores. Com 62 anos de idade, são mais de 40 anos dedicados à carreira pública. De suas amizades, normalmente, nascem bons livros, boas histórias ou decisões polêmicas – das inimizades também.
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De concurseiro a procurador da República
O ministro saiu de Diamantino, uma cidade do interior do Mato Grosso, onde estudou em colégio de padres. Não se acomodou e garantiu bom trânsito na política, fez faculdade de Direito na Universidade de Brasília. Ainda na casa dos 20 anos, passou em vários concursos públicos: foi oficial em chancelaria do Itamaraty no fim da década de 1970. E já formado, foi selecionado para consultor do Senado Federal, juiz federal e também para o Ministério Público Federal. No fim, optou pelo MPF. Foi o mesmo concurso que selecionou, para procurador da República, o ex-ministro Joaquim Barbosa, diga-se de passagem. Anos mais tarde, os dois como ministros do STF, protagonizariam duros embates. Em 2009, por exemplo, Barbosa disparou contra Mendes dizendo que ele não estava “falando com seus capangas do Mato Grosso”, justamente pelo tom ríspido.
Não é de hoje que Gilmar Mendes lida diretamente com decisões dos três Poderes. Já escreveu normas e legislações, emendas da Constituição, substituiu a aplicação de leis com novos entendimentos do STF, e sempre esteve dentro ou perto do Palácio do Planalto. O ministro que hoje vive em reuniões com o presidente Michel Temer sobre reformas e crise política, nos anos 1980 e 1990, esteve no assessoramento jurídico direto da presidência da República com José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, de quem foi ministro da AGU, a Advocacia Geral da União. Entre as leituras, ultimamente tem comentado muito sobre a obra em que FHC narra sua trajetória na Presidência. “Eu vivi muita coisa, mas tem situações que eu li ali que são surpreendentes”, afirma aos seus interlocutores.
Ex-AGU do governo tucano, foi no governo do PSDB, em 2002, que Mendes chegou ao Supremo Tribunal Federal. Os mutirões carcerários ganharam visibilidade no Brasil, em 2008, após a gestão dele no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ironicamente, ao seu lado no plenário do STF, anos depois, sentaria o ex-AGU do governo petista, o ministro Dias Toffoli, indicado por Lula e de quem Gilmar é amigo. Quis o destino que Gilmar Mendes fosse relator do processo que investigava o irmão de Toffoli, José Ticiano, acusado de fazer gastos ilícitos na campanha de 2012 pra prefeitura de Marília (SP). Ele foi absolvido.
Pedido de suspeição
Em uma decisão mais recente, Gilmar Mendes livrou da cadeia, por duas vezes seguidas, o “rei do ônibus” Jacob Barata Filho, empresário preso pela Lava Jato. O ministro foi padrinho de casamento da filha de Jacob, que se casou com o sobrinho de Guiomar Mendes, mulher de Gilmar. O pai do noivo é cunhado de Gilmar. Por isso, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que fala pela acusação, apontou que há relação de amizade, e não mera cordialidade, entre eles e pediu formalmente a suspeição do ministro e a consequente saída dele da relatoria do caso. Numa resposta ao juiz que determinou a prisão do empresário, Mendes destilou a seguinte frase: “isso é atípico. E em geral o rabo não abana o cachorro, é o cachorro que abana o rabo”.
O ministro reage como uma pessoa inabalável. Ele minimiza as críticas pessoais, diz que “tem couro duro” mas se irritou bastante quando viu fotos da família, principalmente da mulher, estamparem a notícia. Esse é o terceiro casamento do ministro. Com Guiomar, Gilmar troca apelidos carinhosos, Gil e Guio. O primeiro relacionamento com uma descendente de alemães lhe rendeu dois filhos e dois netos pequenos, um menino e uma menina. O ministro usa uma foto das crianças em seu perfil no WhatsApp. Quem o acompanha diz que não é raro vê-lo atender alguma ligação da neta, durante os eventos sociais, e se afastar da roda de conversas mais sérias “falando como um vovô babão, apaixonado”.
O estilo é o homem
Entrar no gabinete de Gilmar Mendes, no TSE, lembra a sensação de estar em um clube de futebol. Tudo começou quando o ministro, que torce pelo Santos, ganhou uma camisa autografada do craque Pelé, que na política foi ministro do Esporte e já confidenciou trocar ideias também do ponto de vista profissional com o amigo-ministro. Não à toa, Gilmar Mendes se diz um “pelezista”. Pelé prestigiou importantes posses da carreira do ministro. A partir disso, vários juristas, juízes, advogados passaram a presentear Gilmar Mendes da mesma forma: com uma camisa de futebol. Ele já acumula as de grandes times nacionais como Grêmio e Palmeiras, lembrança inclusive do ex-técnico Luiz Felipe Scolari, passando por Cruzeiro e Coritiba até chegar também ao Paraná Clube, presente de um juiz paranaense, claro.
Desde a juventude, Gilmar Mendes integra um seleto trio de amigos: ele, Boni e Ives. José Bonifácio Borges de Andrada, o Boni, foi advogado-geral do governo de Aécio Neves em Minas Gerais e hoje é vice de Rodrigo Janot na Procuradoria Geral da República (PGR). Já Ives Gandra Filho é presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST). O “pai” desse trio, como ele mesmo se intitula, é um dos mais respeitados juristas do país, o advogado Ives Gandra Martins. “Gilmar sempre foi um cidadão ambicioso, legitimamente ambicioso. O fato de fazer doutorado na Alemanha, aprender alemão, numa época que fazíamos apenas inglês e francês, diz muito dele. É um cidadão que cresceu, sabe o que quer, vai em frente com suas ideias e tem um estilo incisivo”, ressalta Martins.
Pra falar de Gilmar, o amigo recorre a uma memorável frase do pensador francês Buffon, do século 19: o estilo é o homem. “O que eu dizia para o meu filho, o Boni e o Gilmar era que quase sempre quando se tem uma posição de destaque, o maior inimigo da pessoa é a própria pessoa. Para os três, eu dizia que na vida a gente tem que defender ideias e não atacar pessoas. É evidente que cada um tem seu estilo”, pondera.
Eles se conheceram em um almoço no aeroporto de Brasília no início da carreira de Gilmar Mendes. “Eu vi nele, desde o primeiro encontro, um talento excepcional no campo do Direito Constitucional. Gilmar é um dos maiores constitucionalistas da história do país. Ele sempre teve esse tipo de temperamento, defendendo as posições dele e sempre ousado. Pela veemência de suas convicções, ele cria amigos e inimigos. Tem muitos adversários e também muitos admiradores porque diz o que pensa e às vezes de uma forma mais incisiva”, afirma Ives Gandra Martins. O amigo diz que Gilmar é poucas vezes fotografado sorrindo, apesar de considerá-lo um homem divertido.
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Amigos e inimigos
Ciente das polêmicas, o jurista trata logo de separar o que é relação pessoal da avaliação técnica sobre o perfil de Gilmar Mendes. “Quando eu falo, falo com tranquilidade e imparcialidade porque já divergimos em alguns processos, ele votando contra. As divergências que eu tenho com o Gilmar não modificam em nada a minha admiração por ele. Eu tenho uma posição mais conservadora, talvez pela idade, sou contrário a essa corrente do neoconstitucionalismo, porque não cabe ao Poder Judiciário preencher o vácuo Legislativo, não pode legislar”, observa.
Durante o impeachment de Collor, portanto quando ainda não era ministro do STF, Gilmar não abandonou o barco, chegou a ironizar publicamente o advogado Miguel Reale Júnior quando disse “Miguelzinho foi convidado para ser advogado do presidente e aceitou. Não foi contratado porque o Planalto descobriu que ele é apenas homônimo de advogado”, provocou Gilmar Mendes se referindo ao pai de Reale Jr. O advogado revidou e igualou Mendes a um porta-voz ou assessor “de beca” de Collor.
Procurado pela Gazeta do Povo, como experiente jurista, para comentar sobre a personalidade de Gilmar Mendes, Reale Jr. foi direto, disse mais de uma vez “eu não falo sobre pessoas”, e preferiu não comentar sobre o ministro. Ele foi um dos autores do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e mais recentemente pediu para sair do PSDB.
Conhecido por “sólidas convicções”, na visão dos admiradores ou por “surtos verbais destemperados”, na opinião dos críticos, Gilmar Mendes costuma reunir seus auxiliares numa espécie de “brainstorm” para que todos opinem nos mais diferentes assuntos. Dificilmente, ele deixa o tribunal antes de 22 horas. Com tanto tempo na vida pública, o magistrado também já se arrependeu de algumas decisões, como o fim da cláusula de barreira, que havia sido aprovada pelo Congresso para restringir a atuação de partidos menores. Mas, em 2006, o STF derrubou a regra por unanimidade. Hoje o ministro avalia que isso facilitou a fragmentação do Congresso em inúmeros partidos e defende que a barreira esteja na reforma política atualmente em discussão ainda que isso signifique o fim de legendas menores.
A mudança de entendimento mais recente tem impacto direto na Lava Jato. O ministro que somou voto a favor da prisão de quem for condenado em segunda instância começa a caminhar para outra direção em que a prisão dependeria ainda de uma “terceira instância”, o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Neste caso, a mudança de um voto altera tudo porque a decisão foi apertada. Agora, há chances de o STF rever a própria jurisprudência.
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