Na noite de 27 de junho, a Polícia Federal avisou que interromperia a confecção de passaportes por tempo indeterminado. O motivo: falta de dinheiro. Antes da medida drástica, o órgão havia pedido mais verba em dez comunicados formais, mas só foi ouvido quando finalmente paralisou o serviço, deixando de emitir cerca de 10 mil documentos de viagem por dia.
Para resolver o problema, o governo decidiu repassar à PF cerca de R$ 102 milhões que pertenciam ao Ministério da Educação. Pegou mal. A solução foi tirar essa verba de contribuições destinadas a organismos internacionais, como a ONU, a quem o país deve mais de R$ 1,7 bilhão.
Foi pouco perto do que veio em seguida. Na última quarta-feira (5), a Polícia Rodoviária Federal suspendeu os serviços aéreos de policiamento e resgate de feridos e diminuiu o patrulhamento nas estradas, entre outras restrições. Culpa do congelamento de uma verba de R$ 183 milhões, que limitou gastos com combustível, manutenção e diárias.
Os dois episódios dizem muito sobre a situação desastrosa das contas do governo. A aflição da badalada equipe econômica montada pelo presidente Michel Temer é tal que ela tem assumido o risco de prejudicar milhares de pessoas — tirando dinheiro do passaporte, da educação, da segurança ou, vá lá, da ONU — por causa de ninharias. Os R$ 285 milhões que causaram tanto transtorno nas polícias equivalem a 0,008% do Orçamento Geral da União.
A ruína das finanças públicas — quer dizer, das finanças do público, do dinheiro arrecadado dos brasileiros — está na origem da recessão e ao mesmo tempo dificulta a superação da crise. Da forma que tem sido feita, a própria tentativa de reequilibrar receitas e despesas ajuda a prolongar o drama da economia. E deixa estragos pelo caminho.
“Chegamos ao ponto em que, não tendo de onde mais tirar recursos, o governo precisa remanejar na boca do caixa, e acontecem coisas absurdas como essas. A questão agora é: onde dá para cortar fazendo o menor estrago? Ou então: onde o barulho será menor?”, diz a doutora em Economia Juliana Inhasz, professora da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap).
Podemos esperar mais barbaridades. Apesar dos tímidos sinais de reação da atividade econômica, a arrecadação de impostos continua frustrando expectativas, o que dá a qualquer trocado o status de decisivo para cumprir a meta fiscal do ano. Não custa lembrar: o esforço que a equipe econômica está fazendo não é para fechar as contas no azul, mas sim para evitar que o saldo negativo seja ainda pior que o programado. O objetivo é garantir que, ao fim de 2017, o chamado déficit primário não passe de R$ 139 bilhões.
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O resultado primário é a diferença entre a arrecadação do governo e as despesas primárias (ou seja, não financeiras, aquelas que não têm nada a ver com a dívida pública): Previdência, salários de servidores, manutenção da máquina pública, investimentos, transferências a estados e municípios. Quando há superávit, o excedente é usado para pagar juros da dívida. Quando há déficit, como agora, o serviço da dívida é todo coberto com mais endividamento, e o governo ainda precisa pegar um tanto a mais de dinheiro emprestado para dar conta de despesas que antes eram bancadas pela arrecadação de tributos.
Das pedaladas à explosão da dívida
A penúria não é exatamente uma novidade. Na gestão de Dilma Rousseff, o governo passou alguns anos recorrendo a malabarismos contábeis para camuflar a verdadeira situação das contas públicas, prática que acabou servindo de pretexto para o impeachment da ex-presidente. Com ou sem pedaladas, as contas da União entraram no cheque especial em 2014 e seguem no vermelho desde então.
A dívida pública, é claro, disparou. No fim de 2013, o governo federal devia o equivalente a 51,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Agora, deve 72,5% do PIB, segundo o dado mais recente, de maio. Colaboraram para isso não apenas a rolagem da dívida, mas também a forte alta de índices que remuneram os títulos públicos, como a inflação e a taxa básica de juros (Selic).
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Inflação e Selic recuaram de 2016 para cá, o que reduziu a velocidade da bola de neve. Mas ela segue avançando. A Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, estima que o endividamento público federal vai romper a barreira de 80% do PIB no ano que vem e alcançar quase 90% em 2021.
Como há tempos o governo não usa nem um centavo da arrecadação para pagar a dívida, nem mesmo o radicalismo de um calote — sugestão que volta e meia aparece em discussões sobre o assunto — aliviaria o quadro das contas públicas.
“Algumas pessoas pensam que se dermos o calote na dívida estaremos ricos. Mas hoje toda a dívida é financiada com operações financeiras. Mesmo com um calote, continuaremos com dificuldade para cobrir as despesas primárias”, diz Juliana Inhasz, da Fecap, que em 2013 defendeu uma tese de doutorado sobre a dinâmica da dívida pública.
Um cidadão que passe anos a fio pegando dinheiro emprestado para pagar suas dívidas vai acabar numa enrascada. Ficará com o nome sujo na praça, terá bens penhorados. Mesmo uma empresa robusta não consegue ficar muito tempo nessa ciranda. Com o governo é diferente.
“O governo não vai à falência porque tem mecanismos próprios de financiamento. Se fosse uma empresa, teria baixado as portas pelo menos um ano atrás”, diz Juliana.
Além de se financiar emitindo mais e mais títulos de dívida, o governo pode aumentar impostos, o que fica mais provável à medida que o ajuste fiscal concentrado em corte de gastos vai fazendo água.
Remenda que o cobertor é curto
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, admite abertamente que, se preciso, vai elevar a carga tributária. Meses atrás ele anunciou a reversão da desoneração da folha de pagamento, medida que renderia R$ 2 bilhões extras para os cofres federais entre julho e dezembro. A comissão que avalia o assunto no Congresso aprovou um parecer que adia a cobrança para o início de 2018, para não impor um custo alto e inesperado às empresas no meio do ano, mas o Executivo ainda batalha para garantir que esse dinheiro venha já. Os motoristas também podem ser convidados a colaborar com a caixinha: o governo voltou a cogitar um aumento na tributação dos combustíveis, via reajuste na Cide ou no PIS/Cofins.
Como aumentar imposto é sempre problemático, o governo conta com outros tipos de remendos para encompridar o cobertor: repatriação de recursos enviados ao exterior; refinanciamento de tributos vencidos, débitos não tributários e dívidas com a Previdência Social; venda de participações na BR Distribuidora e na resseguradora IRB RE; privatização das raspadinhas da Caixa; e outras receitas que parecem cada vez menos prováveis.
Exemplo disso é a expectativa de arrecadar cerca de R$ 28 bilhões com concessões de infraestrutura. Até agora só R$ 2,4 bilhões entraram nos cofres, e os analistas dizem que a crise política não facilita as próximas operações. Também tem pouca chance de ir para frente a abertura de capital da Caixa Seguridade.
A lista tem itens mais insólitos. O governo estuda pegar para si mais de R$ 8,5 bilhões em recursos de precatórios – dívidas antigas com empresas e pessoas físicas – que estão disponíveis há mais de dois anos e não foram resgatados pelos beneficiários. E cogitou reter o seguro-desemprego dos trabalhadores dispensados.
A própria crise dos passaportes é fruto de uma artimanha governamental. A emissão do documento é superavitária, mas a maior parte do dinheiro acaba sendo usada para outros fins. Os R$ 578 milhões arrecadados no ano passado com a cobrança da taxa de confecção foram encaminhados ao fundo de aparelhamento da Polícia Federal, e dali para o Tesouro. Quando a Polícia Federal solicitou R$ 248 milhões para despesas de controle migratório e emissão de passaportes de 2017, recebeu de volta um orçamento de apenas R$ 121 milhões.
Um reajuste benéfico ao contribuinte, a atualização da tabela do Imposto de Renda, estava prevista no Orçamento, mas não virá. Outro aumento, o do Bolsa Família, chegou a ser autorizado por Temer em maio, mas provavelmente será cancelado, muito embora o Ministério do Desenvolvimento Social tenha garantido que havia recursos para isso.
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Se a tabela do IR e o Bolsa Família não acompanham a inflação, o governo está se financiando à custa da perda do poder de compra de famílias de diferentes classes sociais. É um dinheiro que, na carteira do cidadão, não seria capaz de promover um espetáculo do crescimento. Mas eventualmente ajudaria a quitar dívidas, incrementar a compra do mês. Num país com quase 14 milhões de desempregados e onde a renda média dos ocupados é hoje menor do que há dois anos, qualquer trocado faz diferença também para as pessoas.
A penúria “do governo” bate à porta
Contas públicas nunca foram um tema popular. Em parte porque costumam ser apresentadas como assunto de especialistas, com um vocabulário que naturalmente afasta o grande público. Mas também porque, por ignorância ou pouco caso, muitas pessoas enxergam os recursos públicos como dinheiro “do governo”, que não lhes diz respeito.
É nos momentos mais dramáticos que a questão bate à porta do brasileiro comum.
“O que vale para uma pessoa, uma família, uma empresa, vale também para um país. Nenhum pode dar certo se gastar mais do que arrecada. O descontrole das contas públicas tem relação direta com o mau funcionamento da economia e tem efeitos perversos sobre a vida de todos”, diz o doutor em Ciência Política José Matias-Pereira, professor da Universidade de Brasília (UnB).
Para ele, a população que hoje é vítima do descalabro também tem sua parcela de culpa.
“A situação a que o governo e o país chegaram tem a ver com as escolhas que a sociedade fez ao eleger seus representantes. Assinou um cheque em branco e agora eles estão mandando a fatura.”
As finanças públicas têm problemas estruturais antigos que foram se agravando ao longo do tempo. Desde a Constituição de 1988 o setor público vem sendo sobrecarregado com despesas obrigatórias que só podem ser cobertas com um crescimento forte e ininterrupto da arrecadação de impostos. Não por acaso, a carga tributária avançou de pouco mais de 20% do PIB nos anos 1980 até chegar ao pico de quase 35% do PIB em 2008.
Os períodos de bonança na economia ajudaram a piorar o quadro fiscal.
“Na década passada, quando tivemos um crescimento econômico acima da média e a arrecadação de tributos respondeu a esse dinamismo, o governo também aumentou as despesas permanentes”, lembra o economista Alexandre Porsse, que coordena a pós-graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
O cofre foi escancarado a partir do fim de 2008.
“Depois da crise financeira internacional, o governo afrouxou mais o controle da política fiscal, abrindo mão de receitas com um extenso cardápio de benefícios fiscais”, diz Porsse.
O que era para ser medida temporária, “anticíclica”, para combater a recessão, virou política permanente. Mesmo com a geração de riquezas crescendo quase 4% em 2011, primeiro ano da gestão Dilma Rousseff, o governo continuou elevando gastos e abrindo mão de arrecadação. As renúncias fiscais, equivalentes a pouco mais de 3% do PIB em meados da década passada, chegaram a 4,6% do PIB em 2015, segundo a Receita Federal.
Quando o então ministro da Fazenda Joaquim Levy começou a desmontar esse arranjo, revendo parte dos benefícios e articulando um programa de ajuste fiscal, a economia já estava em recessão. Hoje cabe ao “dream team” econômico de Temer a tarefa de administrar um Orçamento engessado, em que cerca de 90% das despesas são obrigatórias e não podem ser cortadas, com o dinheiro de uma arrecadação que ainda não parou de cair.
Sem reformas, o teto vai desabar
De acordo com estimativas do economista José Roberto Afonso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), a carga tributária está em queda desde 2011 e chegou a 32,7% do PIB no ano passado, nível semelhante ao do início dos anos 2000. A retração, segundo ele, tem a ver não apenas com a crise profunda e prolongada, mas principalmente com uma mudança estrutural da economia brasileira: o setor industrial, que paga impostos mais altos, perdeu espaço na geração de riquezas, ao passo que os serviços, menos taxados, estão ganhando terreno.
Para Afonso, será difícil normalizar a arrecadação sem uma reforma tributária que redistribua o peso dos impostos de forma a acompanhar as transformações mais profundas da economia. Pelo lado das despesas, está claro que não haverá uma melhora substancial sem mudanças nas regras da Previdência. De janeiro a maio, o pagamento de benefícios previdenciários respondeu por 43% de todas as despesas do governo federal. Essa fração tende a subir nos próximos anos, à medida que a população envelhece.
A folha de pagamento do setor público é outro problema que cedo ou tarde terá de ser enfrentado. Nos cinco primeiros meses deste ano, 23% dos gastos federais foram destinados ao pagamento de servidores e encargos sociais, uma conta inflada pelos reajustes que Temer concedeu a dezenas de categorias do funcionalismo.
Com o aumento nas despesas com servidores, aposentadorias e pensões, o desabamento do recém-implantado teto para os gastos públicos é uma questão de tempo. Para não superar a variação da inflação, as despesas federais sujeitas ao teto terão de subir no máximo R$ 40 bilhões no ano que vem, mas as projeções de técnicos do governo indicam que apenas as despesas com Previdência e funcionalismo vão aumentar cerca de R$ 61 bilhões. Isso tudo, é claro, sem contar as benesses que o presidente promete distribuir na luta para se manter no cargo.
O que nos espera
Quem observa o resumo das receitas e despesas deste ano pode argumentar que, apesar de todas as dificuldades, a União conseguiu reduzir seus gastos em 1% de janeiro a maio. Trata-se, no entanto, de um ajuste de péssima qualidade. Já que não consegue mexer nos gastos obrigatórios, o governo tem feito cortes como os citados no início deste texto e reduções brutais no gasto mais nobre de todos, o investimento público.
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De janeiro a maio, o governo investiu R$ 12 bilhões, 48% menos que no mesmo período de 2016. No Ministério da Saúde, o corte foi de 19%. No de Transportes, de 29%. O Ministério da Educação investiu 42% menos. A pasta da Integração Nacional, que toca programas de desenvolvimento regional, diminuiu o desembolso em 43%. No Ministério das Cidades, responsável por obras de infraestrutura urbana, a tesourada foi de 54%.
Em queda desde o início da recessão, o investimento federal encolheu mais de 70% em apenas três anos. Uma vez que esse tipo de despesa é fundamental para garantir a qualidade dos serviços públicos no longo prazo, podemos ter ao menos uma certeza: mesmo que a crise econômica acabe neste ano, sentiremos seus efeitos por muito tempo.
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