Já não é segredo para ninguém que a relação com os Estados Unidos é prioridade para o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Fortalecer o relacionamento do Brasil com países que possam agregar valor econômico e tecnológico, em detrimento às “ditaduras assassinas”, é plano antigo do capitão do exército. E as afinidades entre ele e o presidente americano, Donald Trump, facilitam essa reaproximação.
Ainda antes de tomar posse, a família Bolsonaro já trabalha na construção dessa relação. O presidente eleito recebeu em sua casa, no Rio de Janeiro, John Bolton, assessor do presidente americano, que tem ideias semelhantes às do brasileiro.
Bolton fez uma escala no Brasil apenas para tomar café com Bolsonaro nesta quinta-feira (29), antes de seguir para a Argentina, onde acontece a reunião do G-20. No encontro, o assessor reforçou um convite de Trump para que o presidente brasileiro vá aos Estados Unidos.
Nesta semana, o filho Eduardo Bolsonaro, reeleito deputado federal por São Paulo, se reuniu com figuras importantes que orbitam em torno de Trump em viagem aos Estados Unidos, além de investidores e empresários estrangeiros. Na turnê americana, a agenda dele está concorrida.
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O deputado se encontrou com Kimberly Breier, secretária-assistente do Departamento de Estado; David Malpass, secretário-adjunto do Tesouro; Luís Almagro, secretário-geral da OEA; Jared Kushner, genro e assistente-sênior de Trump; os senadores Ted Cruz e Marco Rubio; o ex-estrategista de Trump, Steve Bannon; e o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani.
Relação em construção
A reaproximação com os Estados Unidos é importante, porque o país é um parceiro fundamental para o Brasil. As relações com os americanos sofreram abalos ao longo do governo de Dilma Rousseff, após o site WikiLeaks revelar que a presidente, ministros, diplomatas e assessores foram espionados pela Agência Nacional de Segurança americana (NSA, na sigla em inglês).
O processo de impeachment, as fragilidades do governo de Michel Temer e a crise econômica que assolou o país não facilitaram em nada a interlocução do país com parceiros no exterior.
Brasil e Estados Unidos possuem relações tradicionais e estabelecidas, e a aproximação entre Bolsonaro e Trump é uma relação em construção, aponta Alberto Pfeifer, coordenador geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP. A relação entre os países é sólida, orientada principalmente por interesses privados empresariais.
Pfeifer avalia que há uma convergência de visões quanto ao estado do mundo hoje: as ameaças que a situação global implica aos países e quais seriam as possíveis reações para preservar os interesses nacionais sem se deixar submeter a normas, tendências e ideias que viriam de fora para dentro. “Essa é a ideia de globalização e globalismo. Globalização como a organização das trocas ou das relações econômicas internacionais. E globalismo como esse ideário que sufoca e, no limite, leva ao enfraquecimento da soberania nacional”, explica.
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Para ele, esse pensamento está bastante claro na retórica de Bolsonaro e de alguns de seus assessores. Mas não é tão óbvio assim na retórica de Trump: é um pensamento mais comum aos seus assessores.
A formação do governo de Bolsonaro também vai influenciar na construção dessa relação. O professor de relações internacionais da FGV Oliver Stuenkel observa que há três grupos que disputam influência e poder no novo governo. O primeiro é mais pró-Trump e anti-globalista, e inclui Jair Bolsonaro, seu filho e o futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.
Os outros dois grupos são os dos militares e dos economistas, capitaneados pelo liberal Paulo Guedes, ministro da Economia. “Qualquer atuação brasileira ocorrerá no contexto de disputa desses três grupos. Vai depender de quem vai se impor mais”, avalia.
Reflexos nas relações exteriores
A atuação desses grupos já mostra indícios do que pode acontecer no futuro governo. O filho Eduardo, por exemplo, é um dos que defende a importância da transferência da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém a exemplo do que fez Trump.
Essa medida não é tão bem quista nos grupos de militares – que temem problemas de segurança, com o Brasil se tornando alvo de terroristas, dentro do próprio território e nas embaixadas – e economistas – que reconhecem a importância da parceria comercial com os mercados muçulmanos e mundo árabe.
“Essa batalha [entre os grupos de poder de Bolsonaro] acabou de começar e vai depender muito de quem consegue convencer o presidente na hora de fato de tomar decisão”, analisa Oliver Stuenkel, da FGV.
Uma situação que está beneficiando o Brasil de forma direta é a guerra comercial entre Estados Unidos e China – e ela também mostra algumas indicações do que pode ocorrer nas relações com os dois países. A série de retaliações entre os dois países acabou ajudando o Brasil, que está exportando mais para ambos. Mas não porque as decisões foram tomadas pensando no Brasil: são apenas reflexo da disputa entre chineses e americanos.
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“Parece haver uma crença, sobretudo do primeiro grupo [pró-Trump], de que a proximidade do Brasil com países como a China é uma escolha ideológica e que de alguma maneira os Estados Unidos podem substituir a China como principal parceiro brasileiro. A grande maioria dos analistas discorda dessa postura. A maioria dos países ao redor do mundo hoje tem a China como maior parceiro comercial. O Brasil tem superávit comercial com a China e isso teria ocorrido em qualquer governo brasileiro”, aponta Stuenkel.
Além disso, é preciso lembrar que o Brasil tem uma certa vulnerabilidade no comércio exterior. “Muito da nossa pauta comercial hoje é de commodities, produtos agrícolas, minério, produtos energéticos. E países compradores, principalmente China e Estados Unidos, podem mudar de produtor rapidamente”, observa Alberto Pfeifer, da USP.
“O Brasil de alguma maneira se recolheu e encolheu [nas conversas externas]. Agora volta com um governo legítimo, democrático, eleito pela maioria da população brasileira e com essas ideias que têm afinidade ideológica com o Trump ou mais com alguns assessores dele. E que tem uma ideia de atitude, de conduta, no cenário global, aí sim, bastante próxima do que o Trump preconiza. Primeiro o meu interesse; segundo, o meu interesse e terceiro, o meu interesse”, avalia.
Nesse caso, a opção preferencial é o unilateral, seguido do bilateral e o multilateral, que é onde há a diluição da soberania, para o fim da fila. E é nesse ponto que vemos Trump criticando a ONU, o acordo de Paris e a OMC.
“O presidente Bolsonaro entende que o Brasil tenha elementos para seguir essa trajetória. Não sei se é o caso. Os Estados Unidos têm um peso específico no mundo. Representam mais de 20% da economia global. Se eles agem unilateralmente, tem cacife para agir e para fazer isso. O Brasil não tem esse cacife, pelo contrário, é um país vulnerável quando vai para uma conversa bilateral com parceiros maiores”, analisa Pfeifer.
Por ora, o futuro presidente já segue nessa direção. A decisão de o país não sediar a Conferência do Clima (COP-25) no ano que vem foi tomada por ele e causou mal-estar na ONU. Também expôs as divergências entre Bolsonaro e alguns ministros do futuro governo.
O que o Brasil quer
Para essa nova aliança dar certo não bastam apenas as afinidades entre os presidentes. É propício aproveitar essa agenda comum dos presidentes para retomar o contato. Mas, para ser efetivamente produtivo, é o Brasil quem precisa gerar uma agenda estratégica, que respalde os interesses nacionais brasileiros, e que tenha clareza sobre o que o país quer.
“Uma questão fundamental e que não está clara até agora é o que o Brasil quer mesmo dos Estados Unidos. Parece claro que o Brasil busca alinhamento, mas não há um projeto explícito sobre o que o Brasil está pedindo para os Estados Unidos. A crença de que o Brasil pode convencer Trump a abrir o mercado americano é pouco provável”, argumenta Stuenkel. Ele também pondera que o Brasil não é um ator relevante em Washington: não é um país prioritário para os americanos e é discutido com pouca frequência.
Alberto Pfeifer concorda com essa visão. “Não adianta o Brasil dizer somos parecidos com vocês, admiramos o governo americano atual e queremos atuar em conjunto. É preciso que haja uma estratégia. Conduzir a política externa, a aproximação bilateral com os Estados Unidos por meio de impulso vai de encontro ao que é uma visão estratégica pode definição. Os militares sabem muito bem disso, o Paulo Guedes sabe muito bem disso”, observa.
A aproximação entre os dois países tem potencial enorme. Pode provocar ganhos no plano bilateral, aumentar o comércio, investimento e peso político do Brasil, além de benefícios no plano global. A cooperação entre os dois países pode impulsionar várias áreas, da segurança à tecnologia, mas é preciso usar de estratégia para ver as limitações e extrair o melhor dessa relação.
“Se não, se torna uma relação subserviente, em que nós oferecemos uma série de possibilidades para os Estados Unidos e eles vão extrair o que for possível, mas sem darem nada ou darem muito pouco em troca”, analisa Pfeifer. Crucial agora é acompanhar o jogo de poderes entre os grupos que formarão o governo bolsonarista.
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