O Brasil tem 566 áreas indígenas, que ocupam um território de 1,17 milhão de quilômetros quadrados – o equivalente aos estados do Mato Grosso e Tocantins juntos. Segundo dados do Censo de 2010, o último realizado pelo IBGE, nessas reservas vivem 517,4 mil dos 817,9 mil índios brasileiros. A escassa presença humana numa área tão grande – em média, um índio para pouco mais de dois quilômetros quadrados – vira arma no discurso de quem acredita que há terras indígenas demais no Brasil. Mas será isso mesmo? Há argumentos favoráveis a ambos os lados, inclusive de quem defende que eles ocupem grandes extensões territoriais.
VEJA INFOGRÁFICO: Em qual fase de demarcação estão as terras indígenas do Brasil
E a discussão sobre a necessidade da demarcação de terras indígenas tende a se acirrar nos próximos anos porque o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) recentemente disse que há uma “enormidade de terras” para índios no país, que não fará nenhuma demarcação em seu governo e que pode até diminuir o tamanho de algumas reservas.
Futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, a quem a Fundação Nacional do Índio (Funai) vai estar subordinada, contemporizou a declaração de Bolsonaro e deixou em aberto a possibilidade de não barrar todas as delimitações de territórios indígenas. “Eu questiono, particularmente, algumas áreas indígenas (...), mas isso é um assunto que vamos falar muito e vamos discutir”, disse Damares em 6 de dezembro. Ainda assim, a postura de revisar a política indigenista preocupa índios e entidades que os apoiam.
LEIA TAMBÉM: Associação dos Produtores de Soja pediu a Bolsonaro que não amplie reservas indígenas
ARGUMENTOS A FAVOR DAS DEMARCAÇÕES
Os defensores das demarcações costumam recorrer ao argumento da dívida histórica como uma das justificativas para a criação de áreas destinadas exclusivamente a eles. Estima-se que em 1500, ano da chegada dos portugueses à América do Sul, havia 3 milhões de índios no atual território brasileiro – que era integralmente deles até então. O processo de colonização e o contato com a civilização europeia levou à extinção de muitos povos. A população indígena caiu para cerca de 70 mil na década de 1950. Em função de políticas indigenistas, voltou a crescer.
A Constituição de 1988, nesse sentido, manteve a tradição dos textos constitucionais que, desde 1934, procurar quitar a dívida histórica garantindo-lhes a posse de suas terras. O artigo 231 prevê o direito à demarcação das terras que eles tradicionalmente ocupam. Também obrigou a União a fazer isso em cinco anos; prazo que não foi cumprido.
Saiba mais: Equipe de transição de Bolsonaro conta com uma índia; e a história dela é incrível
O texto constitucional é usado como um forte argumento a favor das demarcações: elas são obrigação do Estado. E também assegura que novos territórios indígenas só será demarcados se comprovadamente já são usados pelos índios por meio de estudos detalhados (críticos das demarcações costumam ver em parte desses estudos um viés de reconhecimento, como indígena, de qualquer comunidade que assim se declare; e que não necessariamente é formada por índios).
Além disso, os indigenistas argumentam que grandes extensões de terra se justificam para que os índios mantenham seu modo de vida tradicional – baseado sobretudo na caça, pesca, coleta de frutos e sementes e agricultura de subsistência. Essas são atividades exigem áreas maiores.
Há também uma justificativa ecológica para as demarcações: os índios ajudam a preservar o meio ambiente – suas reservas estão dentre as áreas mais bem conservadas do país.
Outro argumento é que as reservas garantem a preservação de culturas que, de outro modo, poderiam ser extintas (no país, são 305 etnias indígenas que falam 274 idiomas, segundo o IBGE). Uma eventual extinção de uma dessas culturas poderia sepultar saberes tradicionais sobre plantas e animais com potencial de serem úteis no desenvolvimento de medicamentos, por exemplo.
Há ainda quem diga que o país terá mais problemas sociais se não houver demarcações de áreas já ocupadas por índios. Indígenas que migram de forma forçada para cidades costumam viver em situação de miséria e enfrentam o drama do alcoolismo.
Relembre: Vice de Bolsonaro disse que Brasil herdou a preguiça dos índios
ARGUMENTOS CONTRA AS DEMARCAÇÕES
Do outro lado dessa discussão, há motivos de todo tipo para embasar os argumentos de quem é contra a ampliação das terras indígenas. Militares veem isso como uma ameaça à soberania nacional, sobretudo na Amazônia – onde estão concentradas maiores extensões de área destinadas aos índios. Há também razões de ordem econômica: o país estaria perdendo oportunidades de exploração agropecuária, mineral e hidrelétrica. Obviamente, ainda existe a disputa pura e simples pela posse da terra. E até mesmo questionamentos ao entendimento antropológico dominante na atualidade, que tem severas restrições à ideia de assimilação das comunidades indígenas pela civilização.
Saiba mais: Bolsonaro é réu no STF por acusação de ser preconceituoso com 5 minorias, incluindo índios
Bolsonaro já deu declaração em que concorda com vários desses argumentos. “Sobre o acordo de Paris [acordo climático mundial], nos últimos 20 anos, eu sempre notei uma pressão externa – e que foi acolhida no Brasil – no tocante, por exemplo, a cada vez mais demarcar terra para índio, demarcar terra para reservas ambientais, entre outros acordos que no meu entender foram nocivos para o Brasil. Ninguém quer maltratar o índio. Agora, veja, na Bolívia temos um índio que é presidente [Evo Morales]. Por que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos?”, disse o presidente eleito em 30 de novembro.
“O índio é um ser humano igualzinho a nós”, afirmou Bolsonaro na mesma ocasião. “Quer o que nós queremos, e não podemos usar o índio, que ainda está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras, que no meu entender poderão ser, sim, de acordo com a determinação da ONU, novos países no futuro. Justifica, por exemplo, ter a reserva ianomâmi de duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro para, talvez, 9 mil índios? Não se justifica isso aí.”
O temor de que exista uma ameaça de desmembramento do território brasileiro, criando países indígenas na faixa de fronteira da Amazônia, encontra eco nas Forças Armadas. O temor se baseia na Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, elaborada pela ONU e ratificada pelo Brasil em 2007. O documento estabeleceu que os indígenas têm direito ao autogoverno. Para militares, como povos indígenas são considerados nações e são donos de um território, com um autogoverno poderiam vir a ser considerado um país. Para setores do Exército, o Brasil pode vir a ser forçado a reconhecer, no futuro, a independência dessas nações por potências estrangeiras que têm interesse em explorar as riquezas amazônicas.
O argumento é rebatido por gente de peso. Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), da Justiça e da Defesa, Nelson Jobim já afirmou entender que a possibilidade de desmembramento do Brasil não existe porque a Constituição é clara ao estabelecer que as terras indígenas são bens inalienáveis da União. Ou seja, juridicamente os índios não são donos de suas terras; só detêm a posse e o usufruto delas. A propriedade continua a ser da União. Esse detalhe da Constituição, aliás, impede inclusive que uma das ideias de Bolsonaro, apresentada ainda durante a pré-campanha, seja tirada do papel (a menos que haja uma emenda constitucional): a proposta de que os índios possam vender suas terras.
Há também quem alegue que reservas indígenas em áreas de fronteira são ameaças à segurança pública porque facilitariam a atuação do crime organizado. Ou seja, as áreas de índios seriam uma espécie de território livre para o crime. Esse argumento costuma ser rebatido com a informação de que o Decreto 4.412, de 7 de outubro de 2002, expressamente garante às Forças Armadas e à Polícia Federal livre trânsito e atuação em terras de índios – inclusive com a possibilidade de instalar infraestrutura dentro delas. É verdade, contudo, que dentre indigenistas há críticas ao decreto por justamente colocar comunidades de índios em potencial conflito com forças de segurança.
O desenvolvimento econômico também é motivo para defender que não haja novas demarcações. Há pressão para a abertura de áreas para plantações e pecuária, bem como para a exploração de madeira, minérios e energia hidrelétrica nas reservas indígenas. A criação de mais reservas, nesse sentido, é vista como um entrave para o crescimento econômico.
A construção de hidrelétricas e a mineração em terras indígenas, contudo, não é vedada. Os artigos 49 e 231 da Constituição estabelecem que o Congresso deve autorizar essas atividades econômicas nas reservas dos índios, que as comunidades indígenas obrigatoriamente tem de ser ouvidas sobre isso e que, caso aceitem, que recebam parte do lucro. A aprovação desses projetos, contudo, nunca é fácil e rotineiramente ocorrem conflitos entre as partes envolvidas.
Os conflitos não acontecem, contudo, apenas nessas circunstâncias. Muitas vezes as demarcações, por si só, opõem índios e brancos ocupantes dessas áreas – alguns deles, meros grileiros; outros, trabalhadores que ocuparam a áreas de boa fé.
LEIA TAMBÉM: Bolsonaro aprovará leis, mas terá dificuldade para mexer na Constituição
Um caso emblemático foi a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Uma das maiores reservas do país, com 17,4 mil quilômetros quadrados (7,8% do território do estado), foi alvo de intensa disputa judicial entre índios e arrozeiros que ocuparam parte dela a partir da década de 1970 – e que chegaram a produzir dentro do território indígenas 160 mil toneladas de grãos por ano. Em 2009, o STF deu ganhou de causa aos índios. Mas a demarcação ainda hoje é motivo de reclamação em Roraima: o estado estaria sendo “engessado” com a criação de reservas indígenas e ambientais tão extensas, que ocupam mais de 60% de sua área.
E equipe de transição de Bolsonaro inclusive está estudando a possibilidade de rever a extensão da reserva Raposa Serra do Sol. “É a área mais rica do mundo. Você tem como explorar de forma racional, e no lado dos índios dando royalties e integrando o índio à sociedade”, disse Bolsonaro, sem dar detalhes.
A ideia de Bolsonaro de integrar o índio à sociedade é recorrente no discurso do presidente eleito, e sinaliza uma nova orientação na política indigenista. O presidente eleito partilha do entendimento de que os índios têm de ser assimilados à civilização para poder aproveitar os seus benefícios. Para isso, eles devem ter permissão, por exemplo, para explorar economicamente suas terras.
A concepção da integração era vigente até meados do século 20, quando se consagrou o conceito de assimilação gradual ou da não assimilação (no caso de povos isolados). A futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, concordou com Bolsonaro ao admitir que pode sim rever a “política do isolamento” de índios.
As declarações de Bolsonaro e de Damares levaram indigenistas da Funai a assinaram uma carta aberta em que criticam a posição do futuro governo sobre os índios isolados. Para o grupo, mantê-los afastados da civilização é uma medida para garantir a vida deles – dado o histórico de extinção de povos indígenas após o contato com a civilização. Os indigenistas também defendem que a Funai continue vinculada ao Ministério da Justiça, como é hoje.
A revisão da atual política indigenista, buscando a integração do índio à sociedade, contudo, pode vir a ser questionada judicialmente. A Constituição prevê, no artigo 215, que é papel do Estado proteger a cultura indígena.
Deixe sua opinião