A história da expansão e retração das estatais no Brasil passou por três períodos distintos. Depois de um longo ciclo de multiplicação das companhias controladas pela União nos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e em todos os cinco presidentes do regime militar, entre 1940 e 1980, com a redemocratização e a eleição de Fernando Collor, em 1989, iniciou-se um processo de desestatização.
A venda de estatais iniciada por Collor foi acelerada nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Ao todo, foram privatizadas mais de 100 empresas em 20 anos, incluindo estaduais e municipais. Com a chegada de Lula ao poder, a partir de 2005 o país viveu um novo ciclo de criação e fortalecimento de estatais.
Agora, com o crescimento do déficit nas contas do governo, o futuro presidente, Jair Bolsonaro (PSL), colocou em sua agenda de prioridades a retomada da venda de empresas estatais. Apesar de ter usado o tema das privatizações durante a campanha eleitoral, como forma de reduzir o rombo nas contas do governo, o que realmente Bolsonaro pretende fazer com as estatais é uma grande incógnita. Até hoje a equipe do futuro governo não apresentou um plano claro do que será feito com as empresas sob controle do Estado. Paulo Guedes, futuro ministro da Economia, chegou a falar em arrecadar de R$ 700 bilhões a R$ 800 bilhões com a negociação das empresas públicas. No entanto, o patrimônio líquido das estatais do governo federal em dezembro de 2017 era menor, de R$ 582 bilhões.
Atualmente o país tem 138 estatais federais, muitas delas envolvidas nos principais escândalos de corrupção dos últimos governos, como o Mensalão e o Petrolão. Em que pese ter havido redução do número de empresas nos últimos três anos – em 2016 eram 151 estatais – e também do quadro de pessoal – de 189 mil funcionários em 2013 para 158 mil em 2018 –, ainda há muito o que fazer em termos de ajustes.
LEIA TAMBÉM: A estatal criada por Dilma que virou dor de cabeça para o governo Bolsonaro
As dificuldades que o futuro governo terá, segundo analistas, residem no fato de que o universo das estatais é diverso e muito complexo. As empresas de grande valor de mercado, com maior potencial para atrair compradores, são lucrativas e rendem dividendos ao governo. Por outro lado, as companhias que são dependentes de recursos do Tesouro Nacional e contribuem para aumentar o déficit das contas públicas não despertam interesse do mercado em caso de privatização.
Um panorama das estatais federais é atualizado diariamente pelo governo na internet. Das 138 empresas existentes, 18 são dependentes do Tesouro e 120 são consideradas não dependentes. Mas nem todas as “independentes” conseguem superávit. Até a Petrobras, que durante vários anos obteve lucros acima de R$ 20 bilhões, chegando a R$ 35 bilhões em 2010, passou a amargar prejuízos a partir de 2014 e durante quatro anos seguidos, até 2017, ficou no vermelho. Outro agravante é que muitas empresas estão excessivamente endividadas, a tal ponto de valerem menos do que devem.
Até setembro deste ano, as estatais dependentes do Tesouro haviam consumido dos cofres públicos mais de R$ 12 bilhões, com previsão de chegar a R$ 21 bilhões até o fim do ano. A situação já foi pior: de 2014 a 2016 o rombo das dependentes superou os R$ 70 bilhões. Em contrapartida, no grupo das não dependentes, só os grupos Caixa e Banco do Brasil haviam registrado um lucro líquido de cerca de R$ 23 bilhões. A Petrobras também deverá em 2018, finalmente, dar uma contribuição para o aumento do superávit das não dependentes.
Agenda de prioridades
“A questão das privatizações é importante e deve estar na agenda do próximo governo, mas tem outras prioridades, como a reforma da Previdência. E há ainda o fato de que o pessoal está superestimando o valor que pode ser arrecadado com as privatizações. Se tirar as grandes empresas, superavitárias, como Banco do Brasil, Caixa e Petrobras, sobra muito pouco”, avalia Sergio Lazzarini, professor do Insper e autor do livro “Capitalismo de Laços”.
LEIA TAMBÉM: Guru de Bolsonaro fala em zerar a dívida ‘privatizando tudo’. É possível?
O pesquisador Ivan Beck Ckagnazaroff, da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alerta para o risco de o resultado das privatizações ser nulo. “As privatizações podem ser interessantes desde que estejam em um contexto maior de reformas sérias a serem tomadas. Se as privatizações correrem sozinhas, sem nenhuma outra medida, não vão servir para nada. O dinheiro arrecadado será gasto em pouco tempo para cobrir rombos crescentes”, diz ao apontar medidas recentes do Congresso, como a aprovação do aumento salarial para o Judiciário, como fatores que podem anular os efeitos das privatizações.
Apesar de concordar que o problema das estatais não deve ser resolvido “a toque de caixa”, o economista Gil Castelo Branco, fundador do site Contas Abertas, defende a necessidade de uma solução o mais rápido possível. “As estatais foram, até muito recentemente, uma espécie de Disneylândia dos corruptos. Elas viraram um ambiente ideal para a corrupção prosperar, já que havia muito dinheiro, muita ingerência política e pouca transparência.”
Dificuldades
Ao contrário do que foi pregado durante a campanha eleitoral, a privatização de estatais deverá ser um processo complicado para o governo. O exemplo foi o recente processo de venda da Eletrobras, que parou no Congresso.
ANÁLISE: Paulo Guedes quer meter a faca. Mas está levando facadas pelas costas
“O capital político que um presidente tem quando assume vai se esvaindo com os embates durante o mandato. Cada privatização que ele propuser é uma briga. A privatização da Eletrobras era menos polêmica que a de outras estatais que se cogita vender. Se fosse uma ditadura você poderia dizer ‘faz, vende, fecha’, mas na democracia tem que passar pelo Congresso”, observa Lazzarini.
Gil Castelo Branco tem avaliação semelhante. “As privatizações não se resolvem de uma hora para outra porque vai depender do Congresso”, diz.
Questões estratégicas
Além das negociações com o Congresso, o governo terá de resolver a questão dos interesses estratégicos do país. Nem todas as estatais dependentes do Tesouro, as quais contribuem para aumentar os gastos do governo, devem ser incluídas no rol das companhias a serem privatizadas.
Um exemplo recorrentemente citado por especialistas é a Embrapa, empresa criada em 1973 e que teve importante papel no salto que o país deu no desenvolvimento da agricultura e pecuária nas últimas décadas. A Embrapa é a segunda estatal com maior déficit do governo federal.
SAIBA MAIS: Paulo Guedes cogita fusão do BB com banco americano. É possível?
“A questão é ‘privatizar o que e por quê?’. Será que a Embrapa, por exemplo, tem um papel decisivo para que o Brasil tenha um papel de ponta no agronegócio?, questiona o professor Ivan Beck.
“Cada caso é um caso. Não há uma receita do bolo pronta. O que funciona para a Petrobras não vai funcionar para a Embrapa ou a Conab. Em alguns casos pode-se extinguir a empresa e as funções dela passarem a ser desenvolvidas dentro do Ministério. Aí você reduz funcionários, número de conselheiros, salários, que, em muitos casos hoje, são exorbitantes”, acrescenta Castelo Branco.
“O caso da Embrapa é um bom exemplo. Se o governo decidir que precisa de uma empresa de pesquisa desse nível, tem que bancar”, resume Lazzarini ao ressaltar, entretanto, que há espaço para novas privatizações.
Deixe sua opinião