Olhar para trás revela muita coisa sobre por que o Brasil está do jeito como está. Ao se debruçar sobre a história monetária do país no período entre 1933 e 2013 para escrever o livro A Moeda e a Lei, o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e um dos responsáveis pelo Plano Real, experimentou a sensação do déjà vu das tentativas e erros econômicos, que ajudam a explicar o ponto em que estamos.
“O Brasil experimentou todas as variações do almanaque sobre isso ao longo desses 80 anos. Eu acho que não tem nenhum outro país nesse planeta que tenha tido nove moedas em 80 anos. Não se tem notícia de nada parecido com isso em nenhum outro lugar, mesmo nos lugares que tiveram muita inflação”, diz ele.
Na visão de Franco, o ano de 1994 foi um divisor de águas, com a criação do Real, quando o país caminhou para adotar novas práticas de política monetária, inclusive com respeito ao Banco Central e seu relacionamento com o Tesouro Nacional. “Ainda não chegamos à melhor prática internacional. E, antes de 94, estávamos em uma situação lamentável”, afirma. Mas nem tudo avançou como poderia.
Por que encerrar o livro em 2013?
A opção por encerrar o livro nos acontecimentos de 2013 não foi por acaso. “Se você entra na recessão Dilma Rousseff, o tema é tão polêmico e atual que domina todo o resto. Terminar em 2013 é uma maneira de não se meter nas coisas que ainda estão nos jornais. Mas é claro que é possível ver em 2013 as nuvens se adensando e os ataques à sabedoria que demorou tanto tempo para se adotar em 94.”
E os erros cometidos na gestão da petista não são acidentais, o que os torna mais irritantes, argumenta Franco. Eles fazem parte de uma história inacabada e que ainda está em andamento. Embora o Brasil esteja trilhando um caminho melhor na economia, a situação política ainda é preocupante. A guinada do governo de Michel Temer (PMDB) é limitada e a eleição de 2018 pode ser a chave para a virada e renovação.
O próprio Franco optou por uma virada no campo político. Depois de 28 anos no PSDB, trocou de partido e ingressou no Novo. O motivo? Desconforto com os tucanos – da forma como apoiaram o governo Temer e trataram o caso Aécio Neves até as disputas entre economistas de esquerda “que parecem ter vergonha de não estar no PT” e o grupo dos tucanos liberais, do qual fazia parte. “Pessoalmente, eu me sinto especialmente confortável em um partido em que eu não sou uma dissidência”, afirma.
De passagem por Curitiba, Franco conversou com a Gazeta do Povo sobre seu livro, a crise econômica, sua troca de partido, as reformas e o que esperar das eleições de 2018.
Seu livro A Moeda e a Lei cobre um período de 80 anos da história recente do Brasil. Qual balanço o senhor faz de erros e acertos desse período?
O drama de voltar 80 anos no tempo é que você está constantemente com a sensação de que já viu esse filme. Sim, a gente insistiu em muitos erros, os mesmos erros. E, diversas vezes, eles reaparecem em diversos momentos. Um exemplo é o congelamento de preços como ferramenta de combate à inflação, que aparece a certa altura como consequência da teoria de que a inflação é de caráter inercial e que então bastaria interromper isso que ela estava resolvida. E não tem nenhum outro caso de país que tenha feito cinco congelamentos de preços em cinco anos. É um exemplo estapafúrdio de insistência no mesmo erro.
Mas, menos evidente e menos bizarro do que isso, tem a discussão recorrente sobre Banco Central que começa nos anos 30. Nos anos 40 e anos 50, tem-se meio que uma dúvida se o Banco Central, uma vez que ele é o banco dos bancos, se ele vai ser o limitador, disciplinador da moeda ou, contrariamente, se ele vai ser a instituição que vai ajudar o desenvolvimento com a moeda. São papéis quase que contraditórios, e que refletem diferenças de percepção sobre o desenvolvimento econômico e o papel da moeda no desenvolvimento econômico.
Outros debates são recorrentes e que se repetem todo tempo ao longo desses 80 anos. Talvez uma batalha importante foi o Plano Real. E, a partir dali, a organização institucional da moeda adquiriu um caráter bastante mais harmônico ao cânone internacional. Mas teve outra batalha recente, que foi a Nova Matriz [política econômica de Dilma Rousseff que culminou na crise do país], que foi uma contrarrevolução, uma tentativa de derrubar a sabedoria que o Plano Real trouxe sobre moedas e contas fiscais. O resultado dessa batalha foi horrível para o país – eles perderam, mas arrasaram o país.
Por que não tratar da pior recessão da história do Brasil no livro?
Se você entra na recessão Dilma Rousseff, o tema é tão polêmico e atual que domina todo o resto. Terminar em 2013 é uma maneira de não se meter nas coisas que ainda estão nos jornais. Mas é claro que é possível ver em 2013 as nuvens se adensando e os ataques à sabedoria que demorou tanto tempo para se adotar em 94. A história começa em 1933 e os erros que você resolve em 1994 são os mesmos problemas que você tinha em 33. São 60 anos de tentativas e erros, muito mais erros que acertos. E, finalmente quando você arruma a casa em 94, parece que você não vai voltar de novo a práticas que o tempo mostrou que são nocivas. Mas não, nós conseguimos retroagir, o que é uma pena.
Insistimos em muitos erros do passado?
O erro não é acidental. Ele é o mesmo problema, o mesmo erro do passado, que nós vimos já tantas vezes. É a mesma concepção e só muda um pouco a vestimenta. Não tem nada de original – e isso que é o mais irritante, sobretudo quando você olha em comparação a coisas que já vivemos no passado. Como é que pudemos permitir as mesmas coisas? O fato é que as instituições já estavam fortalecidas, não a ponto de evitar que acontecesse, mas de punir o acontecido. E, depois da punição, eu duvido que outro presidente da República vá propor qualquer coisa semelhante. Funcionou. Quando a Justiça funciona, você intimida o candidato a criminoso.
A crise que estamos superando vem da insistência do PT em uma política econômica de esquerda?
Não tenho a menor dúvida. O ponto de vista petista sobre a economia está alinhado com uma longa tradição de pensadores errados, que deram errado no passado e deram errado de novo agora.
O senhor já comentou em outras ocasiões que condena o crony capitalism (que pode ser traduzido como capitalismos de quadrilha). Vê isso no PT?
Vejo. O que acontece no Brasil é parecido com o que acontece na Rússia e na China, embora não tenha havido nenhum contato, ou com o que aconteceu na Venezuela e Argentina. Mas, se alguma coisa tem em comum, é que eles quiseram reinventar o jeito, a relação entre o público e o privado, insatisfeitos com a ideia de que isso fosse regido de forma impessoal através de mercados. Quiseram inventar um outro jeito. Isso adquire diferentes feições em diferentes países. E no nosso caso virou isso. Teve a Petrobras como principal campo de provas dessa nova visão de relação entre o Estado e o setor privado. E a Petrobras mostra com muita clareza o resultado da coisa. Foi uma explosão de corrupção, despesas desnecessárias, que conseguiu a proeza de quase quebrar uma empresa que valia US$ 270 bilhões em seu melhor momento, depois da descoberta do pré-sal. Como foi possível cinco anos depois quase quebrar a empresa? É inacreditável. Isso mostra o tamanho do equívoco em matéria de ideias econômicas.
Com a saída de Dilma, a economia vem dando sinais de recuperação. O senhor acredita que o governo de Michel Temer está recolocando o país nos trilhos?
É um governo de transição, formado pelo vice-presidente de Dilma Rousseff e nós temos um parlamento que foi eleito junto com Dilma Rousseff. A guinada na direção oposta à que vinha sendo seguida tem seus limites, porque, enfim, é o mesmo governo. É louvável que tenha havido a mudança, mas do ponto de vista de reformas e mudanças, é muito modesto em relação ao que pode ser. Eu espero em 2018 ver sim reformas de verdade, mais profundas, mais paradigmáticas do que isso que a gente está vendo agora. A direção é correta e paramos de fazer coisas prejudiciais a nossa saúde, mas ainda dá para ser melhor.
Apesar de denúncias e escândalos de corrupção, Temer conseguiu aprovar a reforma trabalhista e agora tentar a votação da Previdência. O senhor acredita que é viável aprovar essa reforma neste contexto político?
Pode ser, não é uma reforma tão ambiciosa. E seguramente vamos ter que revisitar o tema no ano que vem. E a cada ano novamente. É uma pauta permanente. A longevidade estará conosco de forma cada vez mais presente e o assunto previdenciário, portanto, vai ficar amais sério no decorrer do tempo, essa reforma na verdade continua as reformas feitas nos governos recentes e está longe de encerrar o assunto. Vamos ter de voltar a esse assunto brevemente.
O senhor trocou o PSDB recentemente pelo Novo. Por quê?
Troquei satisfeito. Tem duas histórias. Uma é desconforto com o PSDB e a outra, que é mais importante, é a simpatia pelo projeto político representado pelo Novo, que procura duas coisas.
Procura, num ângulo político, práticas novas, diferentes dos partidos tradicionais. Estabeleceu diversas restrições, tem processo seletivo para candidato, separação entre a direção e o portador do mandato e uma disciplina que não se vê em outros partidos; é vontade de fazer diferente de outros partidos. Nesse capítulo também há de se louvar que, assim como muitas organizações da sociedade civil irritadas com o mundo da política, o Novo tem uma coisa de diferente. Ele resolveu enfrentar o desafio de se tornar partido político. Muitas organizações legais e não partidárias querem fazer político – é bem-vindo e maravilhoso. Mas ocorre que o jogo parlamentar é um jogo de partidos. Se não tiver um partido, com essa mesma vontade de mudar a política, não vai acontecer nada.
Na economia, o Novo também chega para se tornar o lugar no sistema partidário onde as ideias pró-mercado podem estacionar com segurança. Não tem nenhum outro partido que se sinta confortável com ideias liberais, ideias pró-mercado. O que é curioso, não haver nenhum partido no Brasil que abertamente abrace ideias relativas a liberdade econômica. Nem o PSDB, e isso eu posso falar porque eu conheço bem o PSDB. Pessoalmente, eu me sinto especialmente confortável em um partido em que eu não sou uma dissidência. Eu estou completamente alinhado com os ideais econômicos do partido.
O que causou tanto desconforto no PSDB para motivar a saída?
Tem o problema do apoio do PSDB ao governo, da forma como foi feito. Tem o problema de não lidar com o senador Aécio Neves do jeito que eu acho que o partido deveria ter lidado, muito diferente do que cobrou do PT quando o PT teve seus dirigentes acusados de diversas coisas. E tem um assunto histórico que é essa convivência dentro do PSDB de economistas de esquerda, que permanentemente parecem que têm vergonha de não estarem no PT, e os economistas liberais, que ficam sofrendo bullying dos seus colegas e se comportando como se fossem uma minoria culpada. No entanto, foi esse grupo que fez o Plano Real, sem o que o PSDB não teria ido muito longe na sua vida partidária. Foi o nosso grupo que fez e o nosso grupo se sente sempre encolhido num canto, em um partido em que predomina uma cabeça meio estatista, meio de esquerda. Em algum momento esse grupo teria de sair do PSDB e buscar outros caminhos. E, se há um partido que se propõe a abraçar abertamente as ideias da liberdade, por que não?
Há uma crise que atinge a maioria dos partidos políticos – PSDB ,PT, PMDB. O que o Novo precisa fazer para não incorrer nos mesmos erros desses partidos?
Em uma palavra, integridade. Claro que muitos desses partidos, sobretudo o PSDB, começam a enfrentar os problemas quando se tornam grandes, já depois de uma experiência no governo federal. O Novo está muito longe disso ainda. O que se quer é desde o começo estabelecer bases muito sólidas para integridade, coerência, ter um sistema absolutamente sólido de reprodução coerente, expansão organizada, sem que o partido tenha que vender um centímetro da sua coerência para a sua expansão.
A eleição de 2018 pode ser um divisor de águas para o Brasil, após tantos escândalos de corrupção?
Eu espero que sim, mas não posso ter certeza disso. Eu torço para que seja isso – que o voto assegure uma renovação política profunda. Espero que opções de renovação, como o Novo, se apresentem ao eleitor e que o eleitor demonstre a sua vontade de renovar a política. Não tem outra maneira de fazer. Aliás, por isso o Novo é um partido: ele vai procurar o eleitor para convencê-lo a renovar as coisas. Mas vamos ver em que medida a velha política está realmente entranhada, se existem mesmo currais eleitorais, grotões, se as máquinas dos partidos e do governo têm esse poder todo. Ou se o cidadão, por causa da internet, do celular, já adquiriu tirocínio suficiente para escapar dos cabos eleitorais, dos esquemas tradicionais da política. Não dá para saber o quanto esses velhos esquemas estão abalados por tudo que aconteceu. Mas eu torço para que tenham sido abalados sim. E bastante.
A internet terá um papel decisivo?
Tem muita gente jovem que não vê televisão, só tem internet. Portanto, o tempo de televisão que os partidos atribuem tanto valor não é mais tão importante como era em outra época. É um game change, algo que pode mudar.
Na sua opinião, o que o Brasil precisa para 2018? Qual a proposta do Novo?
Na prática, a gente tem medidas em duas áreas, dois grandes programas de desenvolvimento: reduzir o custo do capital e aumentar a produtividade.
O primeiro, reduzir os juros, em uma maneira simplificada de dizer, é mais que isso. Na verdade, envolve toda a agenda fiscal, de sustentabilidade econômica e financeira do Estado, e a Previdência. Estamos falando dos termos de troca entre o presente e futuro, que é o que a taxa de juros de custo capital efetivamente são. É uma pauta cheia de programas difíceis de implementar.
A outra é a produtividade. Eu gostaria que uma hora de trabalho no Brasil produzisse mais valor, porque essa é a única maneira de fazer com que as pessoas ganhem mais. Tem muitas formas de promover aumento de produtividade. Aí está envolvido, por exemplo, a pauta da abertura, uma vez que competição é muito importante para fazer com que as empresas se organizem de uma forma produtiva melhor. Sendo mais produtiva, a empresa pode pagar melhor, lucrar melhor. A única maneira que faz o consumidor, o trabalhador e o empresário ficarem felizes ao mesmo tempo é você produzir mais por hora de trabalho: pode vender mais barato, pagar melhor e ter mais lucro. Sim, existe esse milagre e chama-se produtividade.
Outra pauta relevante para isso é a pauta da reforma trabalhista – em que, ao invés de ter uma Justiça do Trabalho que fomente a luta de classes e a hostilidade entre o trabalho e o capital, você talvez devesse ter um sistema de relações de trabalho que fosse promotor de arranjos de trabalho que levassem a mais produtividade e mais empregos. E não assumir que tem uma luta e assumir o lado de um dos contentores da luta. Tem aí uma bela reforma a fazer.
Mas, e a reforma trabalhista que já foi aprovada neste ano?
É o começo do começo. Foi importante, porque muita coisa relevante foi feita por lei ordinária e as pessoas então atinaram que a CLT nada mais é do que uma lei ordinária, que na verdade foi feita por um ditador. Por que esse negócio não pode mudar e se ajustar a uma lógica diferente das relações de trabalho que existem hoje? Tantos outros países modernizaram completamente as suas legislações. É uma reforma muito quente, e é lei ordinária, não é necessariamente constitucional. Tem coisas da Constituição que você pode perfeitamente alterar, e não vejo por que não. A Constituição pode dizer a você que você não tem o direito de tirar a própria vida, é um direito indisponível como se diz. Mas não é a mesma coisa com o 13.º, com as suas férias. Se você quiser vender o seu 13.º e as suas férias, você deveria poder. E por que não pode?