Um julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre irregularidades na campanha municipal de 2016 em Valença do Piauí (PI) pode indicar um caminho para os casos envolvendo candidaturas laranjas de mulheres descoberto no PSL em 2018 e que pode ter repercussões em diversos partidos.
Os ministros da Corte estão julgando se seis dos 11 vereadores eleitos na cidade podem perder os mandatos por causa do registro de candidatas laranjas para alcançar a cota de 30% de participação feminina nas eleições. O resultado do julgamento pode abrir um precedente para futuros julgamentos de casos parecidos em todo o país.
Um estudo estima que em 2018 pelo menos 300 mulheres foram lançadas como candidatas de fachada pelos partidos políticos apenas para cumprir a exigência de 30% das vagas reservadas em lei. Partido do presidente Jair Bolsonaro, o PSL é investigado por uso de laranjas em supostos casos de Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco.
Candidatas laranjas de Valença do Piauí
O processo em julgamento no TSE é um recurso de uma decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí, que cassou e tornou inelegíveis seis vereadores de Valença do Piauí, acusados de se beneficiarem de candidaturas fictícias de mulheres, que não chegaram a fazer campanha eleitoral.
O ministro Jorge Mussi é o relator do caso e encaminhou seu voto no sentido de determinar a cassação do registro dos seis políticos e do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) das duas coligações pelas quais eles concorreram e que também estavam ligadas as candidatas laranjas.
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Ao todo, entre eleitos e não eleitos, 29 candidatos registrados pelas duas coligações tiveram o registro indeferido pelo mesmo motivo. “A fraude da cota de gênero implica a cassação de todos os candidatos registrados pelas duas coligações proporcionais”, afirmou o relator.
Para a advogada eleitoral Carolina Clève, essa é uma das consequências possíveis quando há comprovação de registro de candidaturas laranjas por parte dos partidos políticos. “Há tempos notamos um descompromisso dos partidos políticos com a participação política das mulheres. Uma vez provada a fraude, a consequência pode ser a cassação de toda a chapa. Todos aqueles eleitos por aquela coligação podem ter seus mandatos cassados”, diz Clève.
Cassar todos os eleitos é punição exagerada, diz advogada
Apesar de essa ser uma possibilidade, para Clève, a cassação de todos os eleitos pela coligação que registrou candidaturas laranjas é uma punição muito grave. “Sou um pouco resistente a essa consequência. Invalidar os votos de todos é uma consequência muito drástica”, opina a especialista. “Você interfere na vontade popular”, argumenta. No caso em julgamento no TSE, metade da Câmara de Vereadores de Valença do Piauí seria cassada se o voto do relator for o vencedor.
Clève ressalta que a punição pode ter ainda o efeito inverso, de cassar o mandato de mulheres eleitas pelas chapas. “É possível que você invalidade o mandato inclusive da mulher. A pretexto de fazer com que haja mais participação feminina na política você acaba dando um tiro no pé, acaba retirando mais uma mulher do jogo nesse cenário que é tão deficitário de presença feminina”, argumenta.
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O relator abordou esse argumento em seu voto, ao iniciar o julgamento no TSE. “O percentual mínimo de 30% é de gênero. Manter o registro apenas das candidatas mulheres culminaria em última análise em igual desrespeito à norma, dessa vez em sentido contrário ao que usualmente acontece”, disse ele.
O vice-procurador-geral eleitoral, Humberto Jacques de Medeiros, que representa o Ministério Público Federal no julgamento, defende a cassação do mandato de todos os eleitos e a inelegibilidade de todos os beneficiados pelas candidaturas laranjas.
Inelegibilidade
A ação no TSE também vai julgar se os candidatos pelas coligações que registraram mulheres laranjas para concorrer às eleições devem ficar inelegíveis. Para Clève, só devem ficar inelegíveis os responsáveis diretos por esse tipo de fraude.
“A inelegibilidade eu discordo radicalmente. Até entendo os fundamentos de quem advoga a cassação da chapa, agora a consequência da inelegibilidade para mim só é possível mediante comprovação de dolo”, diz a advogada eleitoral.
Em relação ao pedido de inelegibilidade, Mussi destacou em seu voto que esta é uma sanção de cunho personalíssimo e só pode ser aplicada a quem, de fato, se beneficiou da medida fraudulenta. Para o ministro, é “incabível impor tal sanção baseada apenas em presunção, conjecturas e ilações”.
Nesse ponto, o relator reconheceu que devem ser considerados inelegíveis dois candidatos específicos, que tiveram, respectivamente, sua esposa e mãe registradas como candidatas.
No primeiro caso, a esposa recebeu apenas um voto e, apesar de se manter como candidata, fez propaganda pedindo votos para o marido em suas redes sociais. No segundo caso, a candidata também apoiou publicamente a candidatura do filho, que concorreu pelo mesmo partido e pela mesma coligação. Ela não teve qualquer gasto com sua campanha e obteve apenas um voto nas urnas enquanto o filho recebeu 827 votos.
Mussi ressaltou que, nesses dois casos específicos, é possível reconhecer a participação ou, no mínimo, a anuência dos envolvidos para com a fraude.
Caso vai servir de precedente
O julgamento no TSE foi paralisado por um pedido de vista do ministro Edson Fachin e pode ser retomado nas próximas semanas. O resultado vai servir de baliza para outros casos envolvendo candidaturas laranjas no país.
“A cultura está mudando, o contexto é outro. Cada vez mais o Judiciário vai tentar achar mecanismos para o respeito a participação das mulheres na política”, diz Clève. “O TSE vai querer formar um precedente para assustar mesmo: ‘a lei não está aqui apenas para bonito, está aqui para ser respeitada’”, aposta a advogada.