A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, rechaçou a ideia de que o fantasma da intervenção militar esteja à espreita diante de um Judiciário incapaz de lidar com a corrupção da classe política.
A ministra foi questionada neste sábado (7), no Festival Piauí GloboNews de Jornalismo, sobre a fala de Antonio Hamilton Mourão. Em setembro, o general da ativa no Exército apontou a tomada do poder como saída possível para a avalanche de denúncias que soterra Brasília, isso se o Judiciário “não solucionar o problema político”.
Em palestra promovida pela maçonaria em Brasília, Mourão disse que a causa não era só dele: tinha simpatia de “companheiros do Alto Comando do Exército”.
A declaração sem dúvida “é grave”, ainda que exposta “teoricamente para um pequeno grupo”, disse aquela à frente da mais alta corte do país.
Mas, para Cármen Lúcia, o Judiciário está, sim, “cumprindo seu papel”. Fora que “não há justiça sem democracia, e o brasileiro não aguenta mais ser injustiçado”, continuou a ministra.
Sede democrática
Disse ver demonstração dessa sede democrática em todos os lugares que vai, “desde a sala de aula, onde tenho alunos de 22 anos, até pessoas muito mais velhas com as quais eu convivo e que já experimentaram períodos ditatoriais no Brasil”. O país, para ela, hoje vive “um momento de responsabilidade, serenidade e certeza”.
Se o Judiciário dá conta do recado, o que dizer do Executivo — estaria o governo Michel Temer respondendo “frouxamente” à prosa militarista de Mourão?
A ministra preferiu se esquivar da pergunta feita pela repórter da Piauí, Consuelo Dieguez, que mediou o bate-papo. “Sou presidente [do STF], já tenho problemas de sobra para me meter [em outro Poder]”, disse em tom bem-humorado.
Não foi o único atalho diplomático que pegou para se desviar de indagações espinhosas sobre assuntos que fervem no noticiário nacional, das suspeitas sobre a negociação entre a Procuradoria-Geral da República com os delatores da JBS até o controverso afastamento do senador Aécio Neves (PSDB-MG) pelo Supremo.
Incêndios
Dieguez abriu a conversa com um trecho do perfil de Cármen Lúcia que escreveu para a edição de junho da revista.
“Desde que assumiu o comando da mais alta corte de Justiça do país, em setembro do ano passado, ela não tem feito outra coisa senão apagar incêndios. A maioria deles provocada pelos ocupantes dos prédios do outro lado da praça: o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto”, relatou então.
A jornalista reconheceu que o texto já caducou, pois novas chamas beiram a presidência de sua entrevistada.
Mourão foi um dos focos de incêndio. Outro: o colega no STF Gilmar Mendes, colecionador de polêmicas. Uma das mais vistosas se deu quando o magistrado concedeu habeas corpus a Jacob Barata Filho, conhecido como “rei do ônibus” e atual investigado por suspeita de corrupção no Rio. Barata Filho fora preso em desdobramento da Operação Lava Jato.
O homem que mandou soltá-lo não era exatamente um estranho. Segundo a Procuradoria, fora padrinho de casamento da filha do investigado, uma festa no Copacabana Palace, em 2013, que entrou na mira de manifestantes, que se aglomeraram na frente do hotel e da igreja munidos de cartazes onde se lia “dona Baratinha” e “pego ônibus lotado, me dá um bem casado!”.
Cármen Lúcia afirmou que cabe a cada magistrado se declarar suspeito ou não para julgar um caso, sempre “um dado subjetivo”.
Deu um exemplo pessoal: muito antes de ela entrar no Supremo, seu pai processou um banco “no qual tinha uma pequena conta”, por acreditar que tinha “direito à correção [monetária]”, na época dos planos econômicos falidos.
Já ministra do STF, o tema chegou ao plenário. Ela preferiu não julgar o caso. “Se eu votasse contra os poupadores, iam dizer que foi só para mostrar independência. Se votasse a favor, iam dizer: ‘Ah, mas o pai dela tem ação’.”
Mesmo quando o pai, já velhinho, disse que renunciaria ao processo só para a filha poder julgá-lo, ela manteve a posição. “Ainda não expulsei a madre superiora de dentro de mim — e fui muito criticada [por ficar de fora mesmo com a renúncia do pai]. ‘Bobagem, não está querendo julgar’.”
“O cidadão brasileiro tem que ir dormir sem ter que desconfiar sequer do que o juiz está fazendo. Por isso me declarei suspeita”, afirmou à plateia.
Há, no entanto, certa ânsia em querer encontrar juízes “suspeitos” só quando suas decisões não agradam. Ela se disse preocupada com uma reação popular típica quando um ministro mandar soltar um preso, por exemplo — se isso acontece, aí é um alvoroço. “Mas, se houver manutenção [da prisão], não questionam.”
Ou seja: “Não está a se questionar a postura do ministro, mas o resultado. E não existe direito de resultado.” E se hoje o alvo “é a pessoa que a gente não gosta, amanhã pode ser qualquer pessoa nesta sala”, afirmou, para depois sair em defesa de um “direito objetivo e impessoal”.
Ela se esquivou de ataques diretos a Gilmar Mendes, que “tem um estilo todo apropriado de falar, com a ênfase que lhe é própria”. Só disse “a hora de tanta virulência” no país “será superada quanto melhores forem os exemplos daqueles servidores que ocupam” posições de destaque em órgãos “ tão vistosos”.
Fleuma
A fleuma de Cármen Lúcia só foi abalada quando a mediadora leu uma pergunta da plateia que mencionava o caos no sistema penitenciário, em parte explicado pela inaptidão do Judiciário em conter o excesso de prisões provisórias.
Como ela, “do conforto da sua poltrona”, lidava com esse tipo de angústia que afeta diretamente o cidadão?
“Vem, vem para o meu lugar”, rebateu, lembrando que sua posição não era das mais fáceis. A Suprema Corte dos EUA, por exemplo, julga dezenas de casos por ano. O Supremo Tribunal brasileiro, dezenas de milhares.
Citou Jesus Cristo e Carlos Drummond de Andrade para dizer que o STF, afinal, não é a cura para todos os males sociais.
“Cristo fez dez mandamentos que até hoje não foram cumpridos, que dirá nós?”
Já as palavras do poeta mineiro evocadas foram as dos poema Nosso Tempo: “Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra”.
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