O programa Mais Médicos, uma das principais bandeiras do primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), vai passar por uma grande reformulação no governo de Jair Bolsonaro (PSL). O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou recentemente que planeja enviar ainda no primeiro semestre ao Congresso Nacional um projeto de lei sobre para restruturar o programa.
A transformação do Mais Médicos foi anunciada no programa de governo de Bolsonaro, apresentado durante a campanha eleitoral. No documento apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o então candidato prometia a criação da carreira de médicos de Estado e também defendia a “libertação” dos “nossos irmãos cubanos”, numa referência à maior força de trabalho do programa.
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Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Mandetta disse que busca a implantação de um novo Mais Médicos que seja “mais técnico e menos político”. Segundo o ministro, a politização tem interferido na escolha das localidades que são contempladas com os profissionais. Outra sugestão aventada por Mandetta é restringir o número de médicos nas cidades “intermediárias” – as que não figuram entre as que têm os piores indicadores sociais.
O ministério fala também na expansão do Mais Médicos, que poderia se tornar o “Mais Saúde”, iniciativa que contemplaria outras carreiras ligadas ao atendimento à população.
Mudanças atendem a necessidade emergencial
Mais do que o atendimento a diretrizes eleitorais, as mudanças no Mais Médicos respondem a uma necessidade emergencial, por causa do rompimento do governo cubano com o brasileiro, em novembro. A medida levou à saída de 8 mil médicos do país caribenho, e as vagas ainda não foram plenamente preenchidas.
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Hoje, apenas 23 médicos cubanos ainda estão atuando no programa. Eles estão distribuídos por 10 estados (Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, São Paulo, Tocantins e Roraima), e permanecem vinculados ao governo brasileiro por causa de decisões judiciais.
Embora a medida seja celebrada por aliados de Bolsonaro – o deputado federal Luiz Ovando (PSL-MS), que é médico, chamou as falas do presidente de “golpe de mestre” – o problema permanece, pois os novos profissionais integrados pelo ministério devem começar a trabalhar apenas no fim do mês. Recentemente, o ministério anunciou um edital para renovação do contrato de 352 médicos integrados ao Mais Médicos, que atuam em regiões de extrema pobreza.
Inscrições de médicos tem sido positivas, mas há ressalvas
Após o rompimento com Cuba, o governo brasileiro lançou editais para a reposição das vagas. E o resultado foi positivo: segundo o Ministério da Saúde, todos os 8.517 postos que estavam sem os titulares foram preenchidos. Na última convocação, em 13 de fevereiro, as 1.397 vagas foram selecionadas em 40 minutos. Os escolhidos são, majoritariamente, médicos brasileiros formados no país ou no exterior. As novas contratações de profissionais acabaram por dispensar a revalidação dos diplomas dos formados no exterior – algo que figurava entre as principais diretrizes dos críticos do programa.O planejamento é para que a Região Norte receba 45% dos novos profissionais. O Nordeste será a segunda região mais contemplada, com 23%.
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Ex-ministro da Saúde quando o Mais Médicos foi criado, o hoje deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP) vê os números com ressalvas. “Em todas as ocasiões em que lançávamos editais de convocação para o Mais Médicos, o número de inscritos superava o de vagas. Mas isso não representava, na prática, o preenchimento das vagas. No computador as vagas estavam sempre preenchidas. Mas, meses depois, quando íamos verificar a presença dos médicos nas unidades básicas de saúde, constatávamos uma saída de parte dos profissionais. Por isso acabamos tendo que recorrer aos médicos estrangeiros”, diz Padilha.
Primeiras medidas tímidas
O pediatra Donizetti Dimer Giamberardino Filho, membro do Conselho Federal de Medicina (CFM), diz que as primeiras alterações do Mais Médicos promovidas pela gestão Bolsonaro foram tímidas. “Não houve mudanças significativas. A contratação dos médicos prossegue sendo pelo sistema de bolsa, que é um vínculo provisório. Não é o que precisamos para o país.” Para ele, o Mais Médicos não correspondeu a alterações estruturantes para a saúde pública nacional.
O deputado Luiz Ovando apresenta crítica semelhante ao Mais Médicos. “O programa foi pensado na gestão Dilma pela ótica de que espalhar médicos pelo país resolveria o problema da saúde, o que não é verdade. Como está montado, o Mais Médicos é um quebra-galho”, declarou.
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Alexandre Padilha contesta a análise. Para o ex-ministro, o Mais Médicos considerou ações diferentes da recrutação de profissionais de outros países, que colaboraram para novos critérios na formação de médicos. “Há uma face do Mais Médicos que é pouco comentada, que é a da reestruturação dos cursos de medicina. O programa exigia a avaliação periódica dos cursos no segundo, no quarto e no sexto ano e criou também uma reestruturação na residência médica”, diz. Padilha disse ainda que a redação original do Mais Médicos indicava que os recém-formados deveriam atuar em unidades básicas de saúde. Segundo o deputado, as gestões de Michel Temer e de Jair Bolsonaro não deram continuidade a esses braços do programa.
Carreira de Estado em estudo
O ministro Mandetta, em declarações recentes sobre o Mais Médicos, voltou a considerar a possibilidade da implantação da carreira de médicos de Estado. Essa iniciativa consiste na implantação de um plano de carreira federal para médicos, aos moldes dos advogados e promotores federais, que assim teriam vínculos mais definitivos com o poder público e poderiam ser alocados de forma definitiva em áreas mais carentes.
A proposta, que também esteve no programa de governo de Jair Bolsonaro, é elogiada por Giamberardino. “Nós queremos que todos esses cargos do Mais Médicos se transformassem numa carreira pública médica, com direitos sociais, como qualquer trabalhador”, diz. Além da fixação dos profissionais em áreas necessitadas, segundo o integrante do CFM, outro ganho seria o de desonerar os estados e municípios, porque as despesas com a remuneração dos médicos federais ficariam a cargo da União. “Os prefeitos gostaram do Mais Médicos principalmente porque isso passou a despesa ao governo federal”, afirma.
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Para o deputado Padilha, as propostas não são excludentes. “Eu defendo a carreira de Estado não apenas para médicos, mas para outros profissionais de saúde que atuam também nas áreas de comunidade e família. Mas isso não exclui uma estratégia como a do Mais Médicos. O povo brasileiro precisa de um médico perto de casa, atendendo, acompanhando. As duas ações têm que atuar de forma complementar, para dar conta de um país desigual como o Brasil.”
Viés ideológico e cavalo de batalha
Desde sua criação, o Mais Médicos entrou no debate político não apenas por questionamentos quanto à sua eficiência e seus custos, mas também por um viés ideológico. Afinal, como o programa possibilitou a grande presença de médicos cubanos – que tiveram parte significativa dos seus salários confiscados pela ditadura de seu país – não foram poucos os adversários do PT que qualificaram o projeto como uma tentativa brasileira de contribuir com o regime cubano.
O assunto permeou os debates eleitorais em 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita, e também esteve entre os principais pontos abordados em 2018 – principalmente por Jair Bolsonaro e seus aliados, que mencionam o “combate ao comunismo” como uma de suas bandeiras.
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O fato de os cubanos serem dispensados de fazer o Revalida, exame que promoveria a comparação a formação deles com a recebida pelos médicos graduados no Brasil, acentuou a preocupação. “Eles dizem que são médicos, mas não têm o diploma revalidado, então não dá para sabermos exatamente de onde estão vindo. É algo que gera uma insegurança grande”, afirma Giamberardino. “E há quem diga que, além de médicos, esse pessoal é espião”, diz o deputado Ovando.
Padilha chama as análises desse perfil de “bobagem ideológica”. Segundo o ex-ministro, o Mais Médicos tem, em sua linha programática inicial, mecanismos que levariam o Brasil a depender cada vez menos de profissionais estrangeiros, como o estímulo à residência em unidades básicas de saúde. “Quem diz isso está mais preocupado em uma briga ideológica do que com o sofrimento dos brasileiros que precisam de atendimento de saúde.”
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