A farra das liminares no Poder Judiciário atingiu um novo patamar nesta quarta-feira (19), e por obra de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). No último dia antes do recesso, às 14 horas, Marco Aurélio Mello concedeu uma liminar suspendendo a execução das penas antes do trânsito em julgado, em todos os processos no Brasil. O caso é mais um a se somar aos exemplos de juízes que tentaram, em 2018, fazer prevalecer sua posição pessoal em detrimento das decisões institucionais.
“Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República! Que cada qual faça a sua parte, com desassombro, com pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas, presente a busca da segurança jurídica”, escreveu o ministro Marco Aurélio em sua decisão original, aparentemente sem ver nenhuma validade nas decisões que o STF já tomou sobre o tema. “Em época de crise, impõe-se observar princípios, impõe-se a resistência democrática, a resistência republicana”, escreveu ainda, sem explicitar a que se deve resistir.
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De acordo com o ministro, sua decisão garante o cumprimento dos artigos 5º, inciso LVII, da Constituição Federal e 283 do Código de Processo Penal, segundo os quais a execução penal só pode começar após o trânsito em julgado do processo (quando não cabem mais recursos). Após a decisão, a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a entrar com um pedido de alvará de soltura endereçado à juíza Carolina Moura Lebbos, da 12ª Vara Federal de Curitiba.
A responsável pela execução penal pediu esclarecimentos ao Ministério Público Federal (MPF), mas por fim não teve de decidir nada. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, agiu rápido e apresentou ao presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, um pedido de suspensão de liminar. No recurso, a PGR enfatizou a dimensão institucional do problema, ao lembrar que o Supremo já decidiu contrariamente à posição de Marco Aurélio diversas vezes. “A liminar fere o princípio da colegialidade, a Constituição e deve ser prontamente cassada”, escreveu Dodge.
O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, atendeu ao pedido da PGR pouco antes das 20 horas. Toffoli ressaltou que o julgamento sobre a prisão em 2ª instância já está marcado para ocorrer em 19 de abril do próximo ano, que o tribunal já decidiu anteriormente sobre o tema e ponderou ainda que a decisão de Marco Aurélio era muito ampla, podendo soltar até 240 mil presos, segundo cálculos da força-tarefa da Lava Jato no Paraná. Segundo dados do CNJ de agosto de 2018, são cerca de 148 mil presos em execução provisória. “A decisão já tomada pela maioria dos membros da Corte deve ser prestigiada pela Presidência”, escreveu Toffoli.
Vaivém
Marco Aurélio só foi capaz de conceder a liminar em razão do vaivém que marca a discussão da prisão em segunda instância. Em 2009, no julgamento do habeas corpus (HC) 84.078, o STF modificou seu entendimento tradicional sobre o tema ao decidir, por 7 votos a 4, que o princípio constitucional da presunção de inocência vedava o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado.
Em 2011, para adequar a legislação ao novo entendimento do tribunal, o Congresso aprovou uma lei modificando o artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP), que passou a prever que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. É justamente essa mudança que abriu as portas para as sucessivas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) relatadas pelo ministro Marco Aurélio.
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Ocorre que, em fevereiro de 2016, quase dois anos após o início da Operação Lava Jato, no julgamento do HC 126.292, o Supremo reverteu sua interpretação de 2009. Seguindo o voto do relator, Teori Zavascki, os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes decidiram que o início do cumprimento da pena após confirmação da sentença em segunda instância não ofende a presunção de inocência.
Em maio daquele ano, o Partido Ecológico Nacional (PEN) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizaram duas ADCs, as de número 43 e 44, pedindo que o Supremo declarasse a constitucionalidade do artigo 283 do CPP e retomasse sua posição de 2009. As ações foram distribuídas, por sorteio, para o ministro Marco Aurélio Mello, que se tornaria relator de todas as ações posteriores sobre o assunto.
Em outubro de 2016, o plenário julgou as liminares das ADCs 43 e 44 e manteve a execução da pena depois da confirmação da condenação em segunda instância. Mais uma vez, Marco Aurélio foi voto vencido pela maioria composta pelos ministros Teori Zavascki, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes.
Nessa ocasião, o ministro Gilmar Mendes chegou a sugerir que o mérito fosse logo votado, para que não houvesse dúvidas sobre a eficácia da decisão, mas o próprio Marco Aurélio recusou a sugestão, argumentando que a ação não estava pronta para julgamento definitiva.
Em novembro, para encerrar a discussão, o STF votou, no plenário virtual, a repercussão geral do Agravo em Recurso Extraordinário (AGE) 964.246, de relatoria do ministro Teori Zavascki. Isso permitiu que o tribunal “reafirmasse a jurisprudência” de fevereiro de 2016. O ministro Marco Aurélio, no entanto, sentiu-se ludibriado. “E agora o tribunal atropelou aquelas declaratórias [ADCs 43 e 44]”, declarou à época, comentando a reafirmação de jurisprudência no AGE 964.246.
Mesmo assim, durante o ano de 2017, conforme avançava a Operação Lava Jato, e depois de o ministro Gilmar Mendes declarar ter mudado sua opinião sobre o tema, aumentou a pressão para que a então presidente da corte, ministra Cármen Lúcia, colocasse em pauta as ações para que o plenário pudesse decidir o mérito. A ministra sempre negou a possibilidade, relembrando que a mudança de jurisprudência do tribunal era recente e que não se “submeteria a pressões”.
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Como a liminar das duas ADCs nas mãos de Marco Aurélio já tinham sido julgadas em plenário, mesmo se sentindo ludibriado, o ministro não tinha meios para reagir com uma decisão solitária. Mas a situação mudou em abril de 2018, quando o tribunal negou o HC 152.752, que poderia beneficiar o ex-presidente Lula.
Embora Gilmar Mendes tivesse mudado de lado, o que poderia inverter o placar geral, a ministra Rosa Weber votou contra a concessão de HC para o ex-presidente. Segundo a ministra, como o julgamento tratava de um caso concreto, ela deveria, em respeito ao “princípio da colegialidade”, respeitar a jurisprudência assentada pelo tribunal. Por 6 a 5, o tribunal negou o recurso de Lula.
Dez dias depois, no entanto, o PCdoB ajuizou uma nova ADC, a de número 54, distribuída por conexão temática ao ministro Marco Aurélio, pedindo mais uma vez para o tribunal declarar constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal e, assim, proibir o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado. Um dia depois, em 19 de abril, o ministro relator pediu a inclusão da ação na pauta do tribunal, mas, somente nesta terça-feira (18), o presidente Dias Toffoli marcou o julgamento da ação, para 19 de abril de 2018.
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Foi aí o pulo do gato de Marco Aurélio. Enquanto o plenário podia se reunir, Marco Aurélio diz ter se contido, em respeito à regra geral de que cabe ao plenário se manifestar sobre liminares de ações em abstrato. Mas, como a última reunião do plenário em 2018 aconteceu justamente nesta quarta-feira (19), o ministro argumentou estar liberado para conceder a liminar em razão “da urgência da causa de pedir lançada pelo requerente na petição inicial desta ação e o risco decorrente da persistência do estado de insegurança em torno da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal”.
Marco Aurélio afirmou ainda, em uma provocação ao presidente Dias Toffoli, que submetia a decisão ao plenário do tribunal, “declarando-me habilitado a relatar e votar quando da abertura do primeiro Semestre Judiciário de 2019”, isto é, em fevereiro, e não em abril.
Não é a primeira vez
Tampouco é a primeira vez que o presidente do STF é chamado a intervir em uma farra das liminares. No dia 28 de setembro, a pouco mais de uma semana do primeiro turno das eleições, o ministro Ricardo Lewandowski autorizou liminarmente que o ex-presidente Lula concedesse uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo. Lewandowski argumentou que a proibição, determinada pelo juízo de Execução Penal, configurava censura prévia.
No mesmo dia, atendendo a um pedido do partido Novo, o ministro Luiz Fux, que exercia interinamente a Presidência do tribunal, acolheu uma suspensão de liminar e determinou que o ex-presidente continuasse proibido de conceder entrevistas até que o plenário se manifestasse sobre o caso.
“Há elevado risco de que a divulgação de entrevista com o requerido Luiz Inácio Lula da Silva, que teve seu registro de candidatura indeferido, cause desinformação na véspera do sufrágio, considerando a proximidade do primeiro turno das eleições presidenciais”, escreveu Fux.
Diante do impasse, no dia 1º de outubro, Lewandowski contestou Fux. “Reafirmo a autoridade da decisão que se busca preservar na presente reclamação, no sentido de garantir aos reclamantes (jornalistas) o direito constitucional de exercer a plenitude da liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia, bem como o direito do próprio custodiado de conceder entrevistas a veículos de comunicação”, escreveu.
O cabo de guerra só terminou com a intervenção do ministro Dias Toffoli que, de volta ao exercício da Presidência, deu razão a Fux e manteve a proibição da entrevista até que o plenário decidisse sobre o caso, o que nunca aconteceu.
Mau exemplo
A farra das liminares se espalha também pelas instâncias inferiores. No dia 8 de julho, um domingo, o plantonista do TRF-4, desembargador Rogério Favretto, concedeu um habeas corpus (HC) ao ex-presidente Lula, às 9h08 da manhã, argumentando que a “pré-candidatura” de Lula à Presidência era um fato novo que autorizava sua decisão. A ação havia sido protocolada na noite de sexta-feira, pelos deputados petistas Paulo Teixeira, Wadih Damous e Paulo Pimenta, 30 minutos após o início do recesso.
A decisão de Favretto caiu como uma bomba. Pouco após o meio dia, o então juiz Sergio Moro soltou um despacho recomendando cautela às autoridades policiais, uma vez que a decisão de Favretto contrariaria, em tese, a decisão do TRF-4, que havia confirmado a condenação do ex-presidente Lula em abril. Quarenta minutos depois, Favretto reiterou sua liminar.
O relator da Lava Jato no tribunal, desembargador João Pedro Gebran Neto, entrou no jogo pouco depois das 14 horas e publicou um despacho determinando que a Polícia Federal não soltasse o ex-presidente. Favretto então se manifestou pela terceira vez, contrariando Gebran Neto. A disputa só terminou com a intervenção do presidente do TRF-4, desembargador Thompson Flores, que, no início da noite, deu razão a Gebran Neto e argumentou que a decisão sobre o habeas corpus não poderia ter sido dada em plantão judiciário.
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