A ideia de uma reforma na previdência dos militares, que no governo Temer chegou a ser prometida mas nunca virou uma proposta concreta, voltou à tona neste início da gestão Bolsonaro.
As regras para as Forças Armadas, justificadas pelas peculiaridades da profissão, são diferentes das aplicadas aos servidores civis e aos empregados do setor privado. Elas permitem que o militar passe à inatividade mais cedo que os demais trabalhadores, na maioria dos casos com no máximo 50 anos de idade, o que gera um custo elevado para os cofres públicos, bem maior que o das aposentadorias convencionais.
Uma pesquisa recente indica que a maioria da população apoia mudanças nesse quadro. Segundo o Instituto Paraná Pesquisas, que ouviu 2.006 pessoas entre 12 e 15 de dezembro, 58% dos entrevistados pensam que os militares não devem ter um regime especial de previdência.
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Mas não há consenso no governo sobre eventuais alterações na legislação. Ao mesmo tempo em que apoia novas regras de aposentadoria para o INSS e servidores públicos civis, o presidente Jair Bolsonaro, que foi capitão do Exército, defende tratamento especial para as Forças Armadas.
Generais com postos de destaque no governo se dividem. O vice-presidente, Hamilton Mourão, e o ministro da Secretaria de Governo, Santos Cruz, reconhecem a necessidade de regras mais duras. Mourão defende um aumento no tempo de serviço, de 30 para 35 anos. “Não podemos mais aceitar que um cara vá para a reserva com 48, 49 anos de idade”, declarou meses atrás. Na mesma linha, Santos Cruz avalia ser “inadmissível no mundo de hoje” que trabalhadores se aposentem com “40 e poucos, 50 anos” de idade tanto na área militar quanto em outras carreiras.
Por outro lado, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, disse nesta terça (8) que “os militares estão excluídos dessa” e que não gosta de discutir o assunto porque, a seu ver, eles não têm previdência e sim um “sistema de proteção social”.
Uma tese comum dos que se opõem à reforma é que os militares “não se aposentam”, pois podem ser mobilizados a qualquer momento após passar à inatividade – o que é verdade só até certo ponto. Ao sustentar que não existe aposentadoria, o Ministério da Defesa não admite que os gastos com inativos sejam contabilizados como despesa previdenciária e, portanto, rejeita avaliações que apontem déficit no balanço de contribuições e benefícios.
Outros argumentos usados para defender a legislação atual são que os membros das Forças Armadas não têm direitos garantidos a outros trabalhadores, como greve, sindicalização e filiação a partidos políticos. E não recebem hora extra, adicional noturno ou de periculosidade, o que, pelas contas da Defesa, gera uma economia de mais de R$ 20 bilhões por ano à União.
Muitos especialistas em previdência concordam que, pelas exigências de seu trabalho, os militares merecem tratamento diferente. Porém, veem espaço para regras mais rígidas, que sejam compatíveis com o aumento da longevidade da população e pelo menos se aproximem das aplicadas em países como os Estados Unidos e Reino Unido.
As regras atuais da aposentadoria dos militares
Hoje o militar contribui com no mínimo 7,5% de sua remuneração. Uma vez que ele em tese não se aposenta, tal desconto serve para custear o pagamento da pensão para a família. A polêmica pensão vitalícia para as filhas só vale para quem ingressou na carreira até 2000 e aceitou pagar uma contribuição adicional de 1,5%.
Os servidores civis, por sua vez, contribuem à Previdência com 11% do salário. Uma das sugestões apresentadas ao governo Bolsonaro pela equipe econômica de Michel Temer era justamente a de equiparar as alíquotas dos militares às dos civis, passando a cobrar 11% de ambos. A arrecadação extra estimada com a medida seria de R$ 1,7 bilhão no primeiro ano de cobrança.
Pelas regras atuais, os militares das Forças Armadas passam à inatividade após 30 anos de serviço, independentemente da idade, com salário integral e paridade – isto é, direito aos mesmos reajustes concedidos ao pessoal da ativa. Parte do tempo de serviço pode ser fictícia, pois cada ano trabalhado em postos de fronteira dá direito a quatro meses adicionais na contagem. Além disso, há limites de idade para alcançar determinados postos. Se não for promovido a tempo, o militar vai obrigatoriamente para a reserva.
Isso faz com que os membros das Forças Armadas passam à inatividade mais cedo que os demais trabalhadores. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), 62% dos militares entram para a reserva com no máximo 50 anos de idade. Outros 33% passam à inatividade entre os 50 e 55 e apenas 5% deixam a farda dos 55 anos em diante.
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Enquanto isso, os servidores civis têm de contribuir por 30 anos (mulheres) ou 35 anos (homens), e só se aposentam a partir dos 60 ou 65 anos de idade, respectivamente. Não há contagem de tempo de contribuição fictício. Aposentadoria integral, só para quem ingressou no serviço público até 2003.
Outros países
Nas forças armadas dos EUA e do Reino Unido, o valor da aposentadoria dos militares é proporcional ao tempo de serviço. Um norte-americano que tenha servido por 30 anos, por exemplo, recebe na inatividade o equivalente a 60% do salário. Para um britânico, o mesmo tempo dá direito a 64% do soldo. Em ambos os casos, a contribuição a uma previdência complementar pode elevar o valor do benefício.
Enquanto nos EUA a aposentadoria é permitida após 20 anos de serviço, no Reino Unido o militar precisa ter no mínimo 60 anos de idade. Nos dois países, ao contrário do que ocorre no Brasil, as pensões para viúvos e viúvas não são integrais.
Aposentadoria integral “turbinada”
Até 2001, o militar brasileiro era promovido para o posto acima no momento em que passava para a reserva, o que fazia o valor do benefício na inatividade ser maior que a última remuneração da ativa. A vantagem não existe mais, mas o pagamento dessa espécie de aposentadoria integral “turbinada” aos que a conquistaram ainda terá impacto sobre os cofres federais por muitas décadas. O mesmo ocorre com a pensão vitalícia para filhas.
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Como resultado desse conjunto de regras, o militar inativo ou pensionista recebe, em média, mais que o dobro do pessoal da ativa. Em 2017 os valores médios mensais foram de R$ 10.539 e R$ 4.771, respectivamente, segundo o Ministério do Planejamento.
Primeiro a reserva, depois a reforma
Quando deixa a ativa, o militar vai para a chamada reserva. É ali que pode ser mobilizado a qualquer momento, em caso de necessidade. Em tempos de paz, esse tipo de convocação não é muito comum. O país tem hoje 158 mil militares inativos, mas só 250 são reconvocados por ano, em média, segundo dados do Ministério da Defesa relativos ao período 2012-2016.
Mas essa condição de sobreaviso não dura a vida toda. Após determinada idade, que varia de 56 anos para praças a 68 anos para oficiais-generais, o militar é reformado e dispensado definitivamente. Isto é, aposentado.
O custo da previdência dos militares
Ainda que possa ser justificada pelas características da profissão, a inatividade precoce e com salário integral dos militares, aliada aos benefícios pagos aos pensionistas, tem um custo elevado para os cofres públicos – que, na prática, bancam quase toda essa despesa.
A arrecadação de contribuições dos militares foi de R$ 3,3 bilhões em 2017. Ela cobriu apenas 8% da despesa de R$ 41 bilhões do chamado sistema de proteção social das Forças Armadas.
Desses R$ 41 bilhões, R$ 19 bilhões se referem ao pagamento de 223 mil pensionistas – destino oficial da contribuição de 7,5% ou 9% que os militares recolhem mensalmente. Os outros R$ 22 bilhões bancaram a remuneração de 158 mil inativos.
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A comparação entre receita de contribuições e gasto com benefícios – a mesma que é feita para apurar os resultados do INSS e do regime próprio dos servidores civis federais – aponta para um déficit de R$ 38 bilhões na área militar em 2017. Esse é o valor que foi bancado pelo Tesouro Nacional, isto é, pelo conjunto dos contribuintes.
O rombo do regime dos servidores civis foi maior, de R$ 49 bilhões, mas para um total de beneficiários que também é mais alto, de 737 mil aposentados e pensionistas. No INSS, o saldo negativo no mesmo ano foi de R$ 182 bilhões, para um total de pouco mais de 34 milhões de segurados.
Na divisão do déficit total pelo número de beneficiários, a área militar tem – de longe – o maior rombo. Foram R$ 99 mil por pessoa em 2017, 50% mais que entre os servidores civis (R$ 66 mil). E ambos são muito maiores que o rombo por segurado do INSS, de pouco mais de R$ 5,3 mil no ano.