Pelo menos dois pontos do projeto anticrime apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança, Sergio Moro, nesta semana, têm inspiração direta no direito norte-americano. Entre as alterações previstas em 14 leis em vigor, o ex-juiz da Lava Jato propôs a implementação de um sistema de soluções negociadas para processos judiciais, uma inspiração no plea bargain norte-americano. Outro ponto é a introdução do “informante do bem”, conhecido nos Estados Unidos como whistleblower.
Moro já vinha falando nas duas medidas desde que anunciou que iria apresentar ao Congresso um conjunto de medidas para combater a corrupção e o crime organizado. A influência norte-americana na construção do pensamento de Moro, inclusive, não é uma novidade. O ex-juiz da Lava Jato usou como exemplo decisões de Cortes americanas em diversas sentenças que proferiu ao longo dos quatro anos em que esteve à frente da operação.
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Na sentença em que condenou o ex-senador Gim Agello, por exemplo, Moro defendeu a colaboração premiada usando como exemplo uma decisão de um juiz da Corte Federal de Apelações do Nono Circuito dos Estados Unidos. Ele também cita o direito anglo-saxão ao tratar do repasse de propinas como doação eleitoral.
A formação acadêmica de Moro também explica parte dessa influência.O ministro cursou o programa de instrução de advogados da Harvard Law School, em 1998. Além disso, participou de programas de estudos sobre lavagem de dinheiro promovidos pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos.
Barganha de pena
A principal proposta de Moro para desafogar o sistema judiciário é a negociação de penas entre acusação e defesa – inspiração do direito americano, onde cerca de 90% dos casos são resolvidos antes de chegar a julgamento.
O projeto apresentado pelo ministro prevê que em casos onde não haja crimes violentos e de grave ameaça, e que a pena máxima seja inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor um acordo à defesa do acusado. Caberia à Justiça, nesse caso, apenas homologar o acordo.
“Esse talvez seja o ponto mais delicado do projeto”, aponta o professor de Direito Penal Marcelo Lebre. Para o professor, importar exemplos da Justiça dos EUA para o Brasil não é uma missão tão simples, já que os sistemas jurídicos são diferentes.
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“Nossa tradição jurídica é romano-germânica, que a gente chama de civil law. O direito americano, assim como o direito inglês, tem na tradição jurídica bases completamente distintas, que é a famosa base anglo-saxã, conhecida como common law”, explica Lebre.
“A gente importa uma série de institutos de outros países, mas que tem uma tradição jurídica idêntica à nossa. Fica fácil adaptar esses institutos ao nosso ordenamento jurídico”, completa o professor. No caso de institutos americanos, é mais complicado fazer uma adaptação.
Controvérsias
Lebre acrescenta que mesmo nos Estados Unidos o instituto do plea bargain é alvo de críticas por causar algumas distorções. “Nas décadas de 1960, 1970, o número de casos que chegava ao judiciário americano era absurdo, a ponto de o judiciário para. Ele não conseguia mais vencer os casos penais. Foi nesse período que o sistema da plea ganhou fôlego, foi a pílula mágica para reduzir o número de processos naquele país”, diz Lebre.
O problema, segundo ele, é que o plea bargain acabou “engolindo” o processo judicial. “O sistema do plea ganhou tanta força que engoliu o sistema tradicional de processo americano, que é um bom processo. As pessoas, com medo de serem processadas, com o custo do processo e com a demora do processo, acabam optando por fazer um acordo, muitas vezes desvantajoso”, explica.
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Segundo o professor, a doutrina norte-americana está cheia de críticas ao instituto, por violação de garantias e até cumprimento de pena em casos em que, se houvesse processo judicial, o resultado seria de absolvição.
Essa é mais uma dificuldade em implementar o sistema no Brasil. “No Brasil nosso processo penal não funciona direito. Como eu vou incorporar um novo modelo jurídico se o processo tradicional não funciona de forma correta”, questiona Lebre.
Para o professor, é cedo demais para tratar o plea bargain em um projeto de lei no país. “No Brasil, essa discussão nem nasceu. Se a gente incorpora esse sistema agora, sem que haja um efetivo debate doutrinário e acadêmico prévio, certamente vai gerar prejuízo para os acusados”, garante.
Informante do bem
Outro ponto que o projeto de Moro traz com influência norte-americana é a introdução do “informante do bem”. O projeto prevê que agentes públicos poderão relatar, de maneira anônima, suspeitas de irregularidades.
Em casos em que as informações prestadas pelos informantes resultarem na recuperação de dinheiro público desviado, o informante ainda receberá uma recompensa de até 5% do valor recuperado. Ele também será ressarcido em dobro se sofrer retaliações por fornecer informações que auxiliem em investigações.
Essa previsão já estava no pacote de 10 Medidas Contra a Corrupção apresentado pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2016, como projeto de iniciativa popular. O projeto, no entanto, acabou desfigurado no Congresso Nacional.
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Operações disfarçadas e CSI Brasil
A inspiração norte-americana no pacote apresentado por Moro também aparece na proposta de regulamentação das operações policiais disfarçadas, apesar dessa previsão já existir no ordenamento jurídico brasileiro – e da prática já ter sido usada, inclusive na Lava Jato. Moro propôs alterações nas leis de drogas, de lavagem e de armas para detalhar os limites dessa atuação.
“Nos EUA se utiliza com muita frequência um policial que vai à rua comprar droga, comprar arma, participar de uma operação de lavagem, seja em relação a pequenas transações, seja em relação a grandes transações. É colocar o policial em contato com a atividade criminal para que ele atue para descobrir esses crimes de uma maneira mais eficiente”, explicou Moro, na coletiva de imprensa em que apresentou as propostas.
Moro também usou os filmes de Hollywood para explicar as mudanças que pretende fazer no Banco Nacional de Perfis Genéticos e a criação de outros dois bancos de dados para auxiliar nas investigações criminais: o Banco Nacional de Perfis Balísticos e o Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais. “Aquilo que nós vemos nos filmes, da prova do DNA, é um instrumento de investigação muito importante”, explicou.
Mãos Limpas
A influência italiana também é recorrente em decisões de Moro – tanto na Lava Jato quanto agora, no ministério. Na Lava Jato, o ex-juiz também citava em suas sentenças membros da equipe que deflagrou a operação Mãos Limpas. O contexto também era de defesa da colaboração premiada.
Agora, o ministro confirmou, em entrevista coletiva, que a inspiração para a alteração da lei que trata do conceito de organização criminosa é uma influência italiana.
Ao conceituar esses grupos, Moro citou nominalmente no projeto facções criminosas que atuam em presídios. Pela proposta, será considerada uma organização criminosa o grupo que “se valha da violência ou da intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas”.
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“Nós nos baseamos em uma construção do Código Penal Italiano, que descreve associação criminosa do tipo mafioso, em que eles basicamente descrevem o que é a Cosa Nostra e nomina especificamente algumas organizações criminosas que se enquadram no dispositivo”, explicou Moro aos jornalistas.
Na própria coletiva, porém, o ministro admitiu que a iniciativa brasileira de nomear no projeto de lei as facções criminosas pode ser alvo de polêmica. “Os senhores e senhoras vão ouvir críticas de advogados, de juristas, que essa técnica legislativa não é a melhor, nominar as associações. Bem, nós temos um bom álibi, que é o exemplo italiano”, disse. “Nós fazemos a lei buscando efeitos práticos, não para agradar, necessariamente, professores de processo de direito penal”, completou.
A lição da Constituição de Weimar
Moro estava certo. Muitos juristas já criticaram publicamente a medida. Para Lebre, essa não é a solução mais adequada para lidar com o combate ao crime. “Eu acho que é casuístico e toda vez que a legislação é casuística, é feita para uma situação, é preocupante porque ela cria aquilo que a gente chama de direito penal do inimigo. A base que criou direito penal do inimigo já propiciou na história da nossa civilização situações bem nefastas”, alertou o professor.
Ele cita como exemplo a Constituição de Weimar, que legitimava o fuzilamento, o envio a campos de concentração e matança de judeus. “Se partia de uma premissa que havia algumas pessoas que deviam ser tratadas com mais rigor do que outras”, explicou.
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“A humanidade, historicamente, sempre escolheu pessoas e grupos para serem tratados como inimigos e o peso da lei caiu sobre elas. Geralmente isso é feito ao custo de mitigação de garantias. A partir do momento que eu mitigo a garantia de alguém, estou abdicando da minha própria garantia”, alerta Lebre.
“Hoje o alvo é o PCC, daqui a pouco pode virar o CPP [Código de Processo Penal], daqui a pouco pode virar os jornalistas, daqui a pouco pode virar os advogados, só muda a sigla”, ressalta o professor.