Chega no WhatsApp um vídeo de um político sendo confrontado publicamente por um cidadão, que o constrange. Há troca de agressões verbais e o homem público se exalta. Pouca gente se dá ao trabalho de verificar a veracidade do que está sendo dito no vídeo e entender qual o objetivo de quem decidiu gravá-lo. Mas muitos compartilham esse conteúdo, tornando-se parte de um linchamento online, sem direito de defesa, que pode acabar em crime.
Com tantas notícias diárias sobre investigações de políticos e escândalos, os chamados escrachos (vídeos com confronto verbal e até físico a um político ou pessoa famosa, colocando-os em posição de fragilidade) acabam atendendo ao desejo humano por justiçamento e satisfazem a vontade de punir criminosos e corruptos. Mas crimes como calúnia (falar que alguém cometeu um crime que não cometeu), difamação (imputar fato ofensivo à reputação) e injúria (ofender a dignidade de alguém) podem estar presentes nessa prática.
Compartilhar esses vídeos coloca inocentes nessa roda de linchamento, injustificada mesmo para pessoas que estão sob investigação. Ao não pesquisar sobre o autor do vídeo e com qual motivação ele decidiu abordar um político de forma agressiva, espalham-se informações de pessoas que têm interesse político – ou mesmo eleitoral – por trás do ato, que a princípio parece merecido e até uma espécie de catarse.
“Por mais que você discorde [da conduta da pessoa] e exista uma suspeita concreta sobre ela, isso não dá o direito a ninguém de sair fazendo justiça com as próprias mãos e ofendendo em vídeos. Isso tem consequências. O Direito existe para proteger a todos, inclusive os criminosos”, afirmou o advogado Juliano Rebelo Marques, da sócio da LRI Advogados.
Vale tudo para “lacrar ou mitar”?
A checagem de dados recebidos nas redes sociais e em grupos é um cuidado essencial antes de apertar o botão de “compartilhar” e passar para frente um conteúdo, alerta Tai Nalon, diretora da plataforma de checagem de dados Aos Fatos.
“É necessário estar atento para saber se as informações que constam em uma crítica, em uma sátira, são amparadas em base de dados legítimas e se são corretas. É a mesma lógica de qualquer tipo de informação que corre na internet. Não é uma questão do escracho ser válido ou não, se a ‘lacrada’ é válida ou não. Mas sim, se existe amparo factual para aquilo. E se existe, qual é? De onde você tirou aquelas informações? Se não existe, a pessoa tem de responder por isso, pois pode se descambar, no limite, para a difamação e ofensa, que pode ser até judicializada”, avalia Tai.
A liberdade de expressão de quem grava o escracho também não pode ser colocada acima dos direitos de quem sofre o ataque. O advogado Juliano Rebelo Marques relembra que há limites no que podemos falar e como nos expressamos. “Pode-se incorrer em crimes de calúnia ao se imputar crimes a alguém inocente, porque isso precisa ser demonstrado. Ao dizer ‘você é bandido’, isso precisa ser comprovado. Mesmo quem está sendo investigado, se não houve condenação, a pessoa permanece com a preservação do princípio da inocência, que recai a todos como garantia constitucional”, afirmou.
Mesmo se a informação contida naquele conteúdo informativo for verídica, os responsáveis por produzi-lo ou simplesmente por passar para frente o conteúdo podem ser punidos nas regras da lei. A captura de imagens de uma pessoa, até em ambiente público, precisa ser autorizada, mesmo em ambiente público. “A liberdade de expressão permite muito, mas não permite tudo. É um caro princípio, valor, e garantia constitucional, mas ela também é limitada por outras garantias”, disse Marques.
Ao se expressar livremente, o escrachador também tem de se responsabilizar caso fira outros pontos sensíveis e acabe até incorrendo em preconceitos. “É necessário ter esse tipo de cuidado, pois na internet o território é muito pantanoso. É possível cruzar a linha da legalidade de maneira muito fácil, e descambar para questões de preconceito, racismo e outros tipos de discriminação que podem gerar malefícios para quem decide por esse tipo de manifestação nas redes sociais”, avalia Tai.
Parlamentares e políticos no cargo podem cruzar limites
É cada vez mais comum vermos parlamentares, na tribuna ou no plenário da Câmara e do Senado, trocando ofensas como “ladrão”. Porém, é preciso lembrar que não é porque o parlamentar pode se exaltar e usar tais palavras que esse tipo de agressão pode ser usada contra o parlamentar.
“Tem situações que são exercidas dentro de funções e ficam preservadas por isso. Parlamentares, durante o exercício parlamentar, podem se exacerbar, usar uma expressão que pode vir a ofender alguém. Mas ele está dentro do exercício parlamentar”, afirma Rebelo Marques.
Célia Regina Nilander de Sousa, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito de São Bernardo com Campo e mestre e doutoranda pela PUC- SP, avalia que pode ser legítima a manifestação de pedidos, cobranças e questionamentos aos políticos, mas sem incorrer em injúria ou difamação. “Se eu reclamar questões políticas, eu estou dentro do meu direito. Mas se eu ofendo de modo pessoal, muitos dos especialistas entendem que eu estou cometendo uma injúria”, afirma.
Mesmo que traga informações corretas, Tai Nalon questiona se a melhor forma de trazer tais fatos ao público é o escracho. “Essa é a maneira mais correta de trazer informação ou a gente precisa se fiar em preceitos jornalísticos sérios, objetividade, uma narrativa isenta? É muito mais difícil você diferenciar se a informação é verdadeira ou falsa se quem a está emitindo prefere travestir aquela informação ou desinformação em um escracho”, afirmou.
Relembre cinco escrachos que ganharam a internet
A opção pelo escracho foi adotada, em diversos momentos, por interlocutores que também estavam defendendo um ponto de vista político. Em outros casos, cidadãos que não se identificaram lançaram as agressões. Listamos abaixo alguns episódios de escrachos:
No mês passado, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), líder do governo Temer no Senado, foi vítima de escracho durante um voo comercial de Brasília para São Paulo. Uma mulher, percebendo que ele estava no voo, ligou o celular e começou a desafiá-lo. Jucá tentou impedi-la dando um tapa na sua mão, mas não obteve sucesso. As pessoas que estavam no voo apoiaram a atitude da passageira.
No final de novembro, o deputado Paulo Pimenta (PT- RS) foi interpelado no Congresso Federal por Carla Zambelli, que o acusou de “estar roubando”. Carla é uma das representantes do Movimento NasRuas, que foi favorável ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Pimenta deu ordem de prisão à manifestante, que teve de dar esclarecimentos na delegacia.
Em 2015, quando o Congresso se preparava para votar a lei que alterou a regra do regime de exploração do petróleo do pré-sal, o senador tucano Aloysio Nunes Ferreira (atual ministro das Relações Exteriores) foi abordado no aeroporto de Brasília e atacado verbalmente. Os manifestantes, que gritavam “entreguista” e impediam a passagem do senado, faziam parte da Federação Única dos Petroleiros (FUP), entidade sindical ligada à CUT.
A jornalista Miriam Leitão contou em texto na sua coluna que foi hostilizada por militantes ligados ao PT num voo comercial. Em junho deste ano, a jornalista afirmou que foi recebida no voo com gritos de “terrorista”. “Houve um gesto de tão baixo nível que prefiro nem relatar aqui. Calculavam que eu perderia o autocontrole. Não filmei porque isso seria visto como provocação. Permaneci em silêncio. Alguns, ao andarem no corredor, empurravam minha cadeira, entre outras grosserias”, relatou a jornalista, em texto na sua coluna no jornal “O Globo”.
O ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, passou por pelo menos três escrachos, em restaurantes e até mesmo no hospital. Em junho de 2015, em um restaurante em São Paulo, um comensal se levantou e gritou contra o ex-ministro, chamando-o de “ladrão” e afirmando que ele “quebrou a Petrobras”. Em outro episódio, em fevereiro de 2015, o economista visitava um amigo no hospital Albert Einstein (São Paulo) e foi hostilizado por outros pacientes e familiares, que disseram para ele “ir para o SUS”.
Deixe sua opinião