Juiz federal por mais de 20 anos e especializado no combate à corrupção, Sergio Moro nem bem se acomodou na cadeira de ministro da Justiça e Segurança Pública e já experimentou o que vem pela frente. Poucas horas após ter tomado posse, o novo titular da pasta teve que determinar, na quinta-feira (3), providências urgentes por parte da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária e do Departamento Penitenciário Nacional para auxiliar o governo do Ceará no combate aos atos de violência que explodiram no estado.
O estopim da crise de segurança no Ceará foi a primeira medida do recém-empossado secretário da Segurança Penitenciária do estado, Mauro Albuquerque, que prometeu acabar com a entrada de celulares em presídios e com a divisão de presos de acordo com a facção a que pertencem. Os ataques a estabelecimentos públicos, comércio e sistema de transporte, atribuídos a membros desses agrupamentos criminosos, já somam quase duas centenas de registros.
Como a medida inicial foi insuficiente, na sexta-feira (4) Moro decidiu autorizar o envio de 300 homens da Força Nacional para enfrentar os criminosos. Moro ainda viabilizou a transferência de 20 detentos em presídios cearenses para Mossoró, no Rio Grande do Norte, e anunciou que novas vagas poderão ser criadas se houver necessidade.
Além do Ceará, mais dois estados pediram ajuda a Moro. O Pará, no dia 4, solicitou pelo menos 500 homens da força federal para conter ações de criminosos no estado. Na última quarta-feira (9), foi a vez de o Espírito Santo. Em reunião com o ministro, o governador Renato Casagrande pediu a construção de presídios federais no estado, que tem um déficit prisional de 8 mil vagas.
Combate ao crime organizado é uma das duas prioridades de Moro
A onda de violência no Ceará e a fila de governadores na porta de Moro mostram apenas a ponta do iceberg do problema do crime organizado no país. Não por menos, ao assumir o Ministério da Justiça, Moro colocou como uma das prioridades de sua gestão o combate às facções criminosas, que tomaram conta dos presídios e até de comunidades de bairros da periferia de grandes cidades brasileiras.
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Desde que pediu exoneração do cargo de juiz, deixou o comando da Lava Jato e foi integrado à equipe de transição do presidente Jair Bolsonaro (PSL), em meados de novembro do ano passado, Moro tem se debruçado na elaboração de uma série de medidas contra o crime organizado. Essas ações aparecem no topo das prioridades do novo ministro, ao lado do combate aos crimes de colarinho branco (corrupção e outros desvios relacionados a políticos e agentes públicos). Em resposta a questionamento da reportagem, a assessoria do Ministério da Justiça informou que “as medidas ainda estão em estudo e serão divulgadas oportunamente”.
O que Moro pretende fazer para combater o crime
Entre os pontos já abordados por Moro em discursos e entrevistas, destacam-se a intensificação do trabalho das forças de segurança nos estados para prender os membros das facções criminosas, isolamento carcerário das lideranças, identificação da estrutura e confisco dos bens de seus integrantes. O ministro também defende a construção de mais presídios e propõe um amplo programa para equipar as penitenciárias federais com a finalidade de ter o controle absoluto das comunicações de líderes criminosos com o mundo exterior.
Para levar em frente essas medidas serão necessárias, na avaliação de Moro, outras medidas as quais capacitarão e darão mais eficiência às polícias. Entram aí o reforço na inteligência e realização de operações coordenadas entre as diversas instituições policiais – Polícia Militar, Polícia Rodoviária, Polícia Civil, Guarda Municipal, Polícia Federal. Integra ainda esse pacote a inclusão do perfil genético de todos os condenados por crimes dolosos no Banco Nacional de Perfis Genéticos para que sejam usados na elucidação dos crimes.
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Quando fala em “reforço na inteligência”, Moro está se referindo, entre outras coisas, à conexão da área de inteligência do Departamento Penitenciário Federal (Depen) com a Polícia Federal (PF). Já o aperto ao cerco aos criminosos inclui a adoção de monitoramento de presos envolvidos em organizações. Nesse ponto ele defende regras mais restritivas para visitas a condenados e aumento do uso do parlatório para conversas com os advogados (sala em que defensores e presidiários podem conversar, mas que impede o contato direto entre eles).
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Especialistas dizem que propostas de Moro podem funcionar
Apesar de algumas críticas às propostas defendidas por Moro, grande parte dos especialistas em segurança pública – e de gente que atuou diretamente na área auxiliando governos estaduais – considera tais medidas plausíveis. As principais observações, no entanto, dizem respeito ao tempo de implantação do programa e a necessidade de investimentos.
“Esse problema que afeta toda a sociedade brasileira, agora, só se consegue resolver a médio e longo prazo. Não terá vitória rápida”, diz Leandro Piquet Carneiro, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP). “Há questões, como a criação de novas vagas nos presídios, que precisam de investimentos e também requerem tempo para a construção. Construir presídios demora. Foram décadas de falta de investimento, então é preciso ter uma agenda muito forte de treinamento das forças de segurança pública. Há muitas assimetrias entre as polícias, com polícias muito boas em certos estados, e outras péssimas. No Rio de Janeiro, por exemplo, é um destaque negativo, fora da curva do resto do Brasil. Falta investimento, falta preparo.”
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Em seus estudos, Piquet faz um histórico das causas que levaram o país a chegar à situação em que se encontra hoje com relação ao crime organizado. “As instituições de segurança e justiça sofreram muito nas últimas décadas e os investimentos sempre foram aquém do necessário. Além disso, o debate sempre pegou pelo lado negativo da questão da criminalidade, relacionando-a com resquícios da ditadura militar. Esse foi o grande vilão desse processo, porque não houve o investimento necessário em termos de treinamento e melhorias do sistema de segurança. A área de segurança sempre ficou um passo atrás de outras áreas, como saúde, educação”, pontua Piquet.
Juarez Dietrich, advogado e especialista em segurança do Instituto Millenium, vê possibilidade de resultados a curto prazo e defende um endurecimento das ações contra o crime. “Não se combate septicemia com remédio para a febre causada pela septicemia. Tem que ser antibiótico muito forte, administrado com muita disciplina e muito rigor. O combate ao crime se faz com inteligência – expertise policial, tecnologia e informação, e harmonização das atividades policiais em todos os níveis. É preciso plena autoridade policial e bons salários”, avalia.
Além do tempo que a implementação de algumas medidas vai demandar, outra preocupação é a necessidade de muitas das propostas terem de passar pelo Congresso Nacional. No entanto, apesar da dependência de votação na Câmara e no Senado – casas que trocarão de comando em fevereiro – existem possibilidades de obter avanços significativos com outras ações.
“O Congresso é importante, mas o pacote básico de leis nós já temos. Dá para fazer muita coisa, conseguir ampliar o combate ao crime, até que os congressistas aprovem novas leis que serão propostas pelo governo”, pondera Piquet.
“A certeza da impunidade tornou o crime uma alternativa de vida”
Para analisar as causas da atual crise de segurança no país e as perspectivas de Moro enfrentá-la com sucesso, a Gazeta do Povo também ouviu o advogado Juarez Dietrich, integrante do grupo especialista em segurança do Instituto Millenium. Confira a entrevista:
O ataque de criminosos no Ceará, nos últimos dias, mostra que o crime organizado se espalhou por todas as regiões brasileiras. Quais os principais motivos que levaram o país a chegar nessa situação?
Há um colapso porque o mal está prevalecendo sobre o bem. O Brasil negligenciou nos costumes a tal ponto que a sociedade foi induzida a não discernir bandido de vítima, por causa de narrativas ideológicas que induziram em erro, a tal ponto que acabaram engolfando também a aplicação da lei. Ao fragilizar a autoridade e a ação policial – com a audiência de custódia, por exemplo –, o crime e a punição acabaram relativizados. E o aumento da criminalidade se deve à certeza da impunidade. Por outro lado, a profusão dos crimes cometidos por gangues – desde aquelas de roubo de celulares em plena luz do dia nas grandes cidades, até o roubo de cargas, passando pelas autoridades que nos últimos anos nos brindaram com bilhões roubados dos cofres públicos – isto tudo vulgarizou o ato criminoso. Praticamente legitimou o que deveria ser exceção; “normalizou” o crime como uma alternativa de vida, pois pode compensar.
O ministro Sergio Moro deve anunciar nos próximos dias um pacote de medidas para combater os criminosos, mas várias das propostas já são conhecidas. Essas medidas trarão resultado a curto prazo?
É preciso aguardar para saber como isso será. Porém, já dá para dizer que não se combate septicemia com remédio para a febre causada pela septicemia. Tem que ser antibiótico muito forte, administrado com muita disciplina e muito rigor. O combate ao crime se faz com inteligência – expertise policial, tecnologia e informação, e harmonização das atividades policiais em todos os níveis. É preciso plena autoridade policial e bons salários. É necessário, por exemplo, o enfrentar as questões do uso da arma pelo policial e das operações estratégicas sigilosas. Creio que haverá repercussão positiva de curto prazo. Mas, com as alterações legislativas “anticrime” que o ministro está propondo ao novo Congresso, haverá uma mudança afirmativa na cultura das relações entre a sociedade e a polícia.
Quais deveriam ser as prioridades do novo governo no combate ao crime organizado?
Não dá para desfocar das caixas-pretas ainda fechadas, correlatas à corrupção e à lavagem de dinheiro decorrente. E tem que endurecer as leis, impedindo progressão de regime aos condenados, além de manter a prisão depois do julgamento em segunda instância. Porém, o enfrentamento da questão das drogas é o grande desafio. A fronteira continental do Brasil impõe que o foco da segurança compreenda cuidar rigorosamente destas fronteiras e das organizações criminosas que administram a entrada das drogas no país.
É possível adotar medidas eficazes de combate à ação dos criminosos sem ter que passar pelo Congresso?
Com inteligência – tecnologia, informação, autoridade e pulso firme – é possível desmanchar muitos focos de atividades criminosas organizadas. Os Estados Unidos e Israel, só para mencionar dois exemplos, detêm soluções nesse sentido. Aliás, outra questão fundamental para entrar neste enfrentamento é a integração com as inteligências policiais dos países amigos. Estamos globalizados e precisamos nos habilitar para trabalhar em conjunto com estes países. Mas é necessário rever a legislação atual e os mecanismos processuais. O pacote anticrime do ministro deverá ser aprovado rapidamente pelo Congresso Nacional e surtirá efeitos positivos extraordinários.
Números de facções criminosas são divergentes
Quantas facções criminosas existem no Brasil? Não há um levantamento oficial e é difícil estimar um número exato. Isso é o que mostra reportagem da jornalista Fernanda Trisotto, da Gazeta do Povo, publicada em 30 de dezembro passado. De acordo com o levantamento, o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou em setembro que o Brasil possui aproximadamente 70 facções criminosas. No entanto, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública sinalizou a ação de ao menos 37 diferentes facções.
A reportagem cita dados apresentados por Jungmann em um evento que debatia questões relativas ao sistema penitenciário federal. Na época, o ministro afirmou que cerca de 50% dos presos detidos em unidades federais fazem parte do Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV) – o sistema federal possui menos presos: são 422 no total, submetidos a um regime mais rígido. As duas facções mais conhecidas do país são seguidas por estruturas regionais do Norte e Nordeste, como a Família do Norte (FDN) e a Okaida.
Mais difícil que mapear as facções e obter o número de integrantes de cada uma delas. Levantamento de procuradores do Ministério Público Estadual de São Paulo aponta que o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa do país, tem mais de 30 mil membros, sendo cerca de 22 mil deles fora de São Paulo. A facção está presente ainda na Bolívia e no Paraguai. O Comando Vermelho (CV), que disputa a liderança com o PCC e tem quase o mesmo número de integrantes, também atua em outros países da América do Sul.
Segundo informações das forças de segurança do Ceará, os últimos ataques no estado tiveram participação da Família do Norte, do Comando Vermelho e, principalmente, de Os Guardiões do Estado, organização que teve sua origem na periferia de Fortaleza.
Saiba tudo o que prevê o pacote de segurança de Moro
O Ministério da Justiça diz que medidas desenhadas por Sergio Moro ainda estão em estudo, mas várias propostas já são conhecidas:
- Inteligência e operações coordenadas entre as diversas instituições policiais.
- Regulamentação de operações policiais disfarçadas para combater o crime.
- Imunidade para militares e policiais em situação de confronto (excludente de ilicitude).
- Equipar as penitenciárias federais para o absoluto controle das comunicações das lideranças criminosas com o mundo exterior.
- Monitoramento e prisão dos membros do crime organizado, isolamento carcerário das lideranças, identificação da estrutura, confisco dos bens de criminosos e uso dos recursos oriundos desses bens no financiamento da segurança pública.
- Auxiliarestados, Distrito Federal e municípios na construção de presídios.
- Inclusão do perfil genético de todos os condenados por crimes dolosos no Banco Nacional de Perfis Genéticos para que sejam usados na elucidação dos crimes.
- Proibição de progressão de regime de pena – a passagem de fechado para semiaberto e aberto – para membros de organizações criminosas armadas.
- Transformação da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) em uma agência encarregada da gestão e alienação do produto de crimes de tráfico de drogas.
- Execução imediata dos veredictos condenatórios dos tribunais do júri.
- Criação de um instrumento que permite o Ministério Público fazer acordos para definir a pena de criminosos confessos, encurtando um processo judicial.
- Reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos.
- Fazer com que a Secretaria Nacional de Segurança Pública atue na padronização de procedimentos, gestão e estrutura das policias estaduais
- Adoção do plea bargain – acordo penal entre réu e Ministério Público que possibilita o encerramento mais rápido dos processos quando os acusados confessam o crime em troca de pena menor.
- Consolidação em lei da regra da execução da condenação criminal após o julgamento da segunda instância.
- Aprofundamento da cooperação jurídica internacional para que o refúgio do criminoso no exterior seja uma alternativa cada vez mais arriscada.
- Facilitar a compra e o porte de armas por meio da revisão do estatuto do desarmamento.
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