Cena comum nos seriados de investigação criminal nos Estados Unidos, a comparação de DNA recolhido em cenas de crimes a partir de um banco de dados com perfil genético humano pode virar uma realidade mais comum no Brasil em breve. Pelo menos é o que promete o ministro da Justiça, o ex-juiz federal Sergio Moro. O Brasil já possui um Banco Nacional de Perfis Genéticos, alimentado desde 2013, mas com poucos perfis de condenados cadastrados.
Em seu discurso de posse, o ministro prometeu cadastrar no sistema o perfil genético de todos os condenados por crimes dolosos no Brasil no prazo de quatro anos e o compromisso foi reforçado durante a coletiva de imprensa realizada nesta segunda-feira (4) para apresentação do projeto anticrime elaborado pelo ministro.
O último relatório da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos mostra que, até maio do ano passado, foram cadastrados 13.197 perfis genéticos no banco de dados. A maior parte dos registros (6,8 mil) ocorreu a partir de vestígios em cenas de crimes. Outros 3,6 mil registros eram de perfis genéticos de condenados.
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Essa rede foi criada em 2013 com a finalidade de manter, compartilhar e comparar perfis genéticos para ajudar na apuração criminal e na instrução de processos. Os perfis armazenados no banco de dados são confrontados em busca de coincidências que permitam relacionar suspeitos a locais de crimes, por exemplo. A legislação brasileira prevê que podem ser cadastrados no banco o perfil genético de condenados por crimes hediondos ou por crime doloso e violento contra a pessoa.
O funcionamento no Brasil, porém, ainda é muito tímido. O último relatório sobre o banco disponível no Ministério da Justiça mostra que 561 investigações foram auxiliadas com informações disponíveis no sistema desde a criação do Banco Nacional de Perfis Genéticos. Esse número poderia ser maior, mas falta regulamentação sobre o assunto, de acordo com especialistas.
“Pretendo que o Banco Nacional de Perfis Genéticos, um instrumento de vanguarda para a elucidação de crimes, especialmente crimes de sangue, e igualmente um inibidor da reincidência criminosa, deixe de ser apenas uma miragem legal”, disse Moro ao tomar posse como ministro da Justiça, no início do ano.
Mudanças na lei
Moro parece disposto a cumprir a promessa. Seu projeto anticrime prevê alterações na legislação que tratam do banco. Uma das mudanças propostas pelo ministro é que os condenados por crimes dolosos, mesmo sem o processo com trânsito em julgado, possam ter o material genético recolhido quando ingressarem no sistema prisional para início do cumprimento de pena – o que Moro pretende que seja iniciado a partir de condenação em primeira ou segunda instância, a depender do caso. O projeto do ministro prevê que o preso que se recusar a fornecer material genético estará cometendo “falta grave”.
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O ex-juiz também prevê que, em caso de absolvição em instâncias superiores, o perfil genético será excluído do banco de dados. O mesmo vai acontecer depois de 20 anos após o cumprimento da pena.
“Nós temos que pensar no futuro, não só resolver problemas do passado. É um instrumento muito importante para a resolução de crimes”, disse Moro ao detalhar a proposta. “A taxa de resolução de crimes no Brasil, especialmente crimes violentos, como homicídio, é muito baixa. Aquilo que nós vemos nos filmes, da prova do DNA, é um instrumento de investigação muito importante”, completou.
Lei é restritiva
Um membro da Academia Brasileira de Ciências Forenses (ABCF), que não quis se identificar, reclama que atualmente a legislação é muito restritiva em relação a quem pode ter os dados genéticos coletados para integrar o banco.
“A lei prevê condenados por crimes dolosos com violência contra a pessoa e crimes hediondos. Mesmo o tráfico de drogas hoje não está incluído na lei”, diz o representante da ABCF. Para ele, é importante alterar a legislação para aumentar o rol de crimes pelos quais a coleta do perfil genético seja obrigatória.
Para ele, o projeto de lei proposto por Moro é um avanço em termos de investigação criminal. “A possibilidade de encontrar os autores de crimes violentos com mais rapidez e evitar que pessoas inocentes sejam investigadas, processadas e eventualmente condenadas vai ser bastante potencializada”, diz.
Para o advogado criminalista e professor de Direito Penal na Unicuritiba, Gustavo Scandelari, o que falta para que o Banco Nacional seja efetivo na elucidação de crimes é uma regulamentação pelo Poder Executivo.
“Esse regulamento vai determinar, por exemplo, a forma como será feita essa coleta, onde será feita, qual o prazo. Esses detalhes é que estão faltando, mas não é falta de lei, é falta de ato normativo, a lei já existe”, defende o advogado. Para ele, um decreto do presidente Jair Bolsonaro (PSL) poderia resolver parte do problema, sem a necessidade de a discussão passar pelo Congresso.
“A lei já determina hoje que em casos de crimes dolosos praticados contra a pessoa, como lesão corporal, homicídio ou qualquer dos crimes hediondos, já devem ser submetidos obrigatoriamente a identificação do perfil genético mediante extração de DNA. Isso já está na lei, a questão de como fazer isso é que está encontrando alguma resistência”, explica Scandelari.
Vantagens para investigação
Se conseguir levar o projeto adiante, a expectativa é que o número de perfis genéticos de condenados cadastrados no banco nacional aumente consideravelmente. “Isso é o uso de tecnologia de inteligência para elucidação de crimes, especialmente crimes violentos”, diz o representante da ABCF. “Você tem um potencial muito grande de resolução desses crimes. Hoje certamente o recurso tecnológico mais usado no mundo”, completa.
Para Scandelari, só há vantagens na ampliação do banco nacional. “Se a gente levar em conta que existe uma parcela relevante de reincidência, pelo menos aqueles crimes que foram praticados por pessoas que já tiveram passagem pela polícia serão solucionados de maneira muito rápida”, explica o advogado.
Defensor público em Minas Gerais, Flávio Lelles chama a atenção para um ponto importante na implementação da lei. Para ele, é preciso uma discussão séria em torno do tema para evitar erros judiciais por causa de falhas na cadeia de custódia das provas, uma vez que o DNA é considerado uma prova praticamente indiscutível.
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“Existe todo um procedimento que a gente chama de cadeia de custódia, que é desde o momento em que você vai para a cena do crime e coleta material genético, até o armazenamento desse material genético. Tudo isso tem uma série de cuidados que precisam ser observados para que você não corra o maior risco que se pode cometer contra alguém, que é um erro judiciário baseado em material genético, porque aí é dificílimo de você provar. Porque o exame DNA tem 99,9999% de certeza, mas e se tiver coletado o material genético de uma pessoa errada na cena do crime? Como essa pessoa vai fazer para provar isso”, questiona Lelles.
O defensor público também aponta outro ponto que não é tratado na lei. “Como vai se dar essa coleta de material genético se essa pessoa não se dispuser a fornecer?”
Supremo pode se posicionar sobre o tema
A coleta de material genético de condenados já foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). A Defensoria Pública de Minas Gerais é parte do processo, que chegou ao Supremo depois que um juiz da Vara de Execuções Penais de Belo Horizonte negou a coleta de perfil genético de um condenado por considerar a lei inconstitucional.
O caso é de relatoria do ministro Gilmar Mendes e ganhou repercussão geral na Corte – o que for decidido neste caso, vale para todos os outros envolvendo a coleta de perfil genético no país.
Para Lelles, que participou de audiências públicas promovidas pelo STF para discutir o tema, a lei que permite a coleta de perfil genético de presos é claramente inconstitucional.
“Isto é uma interpretação do direito ao silêncio que está expresso na Constituição. Desse direito ao silêncio extrai-se, não só no Brasil, mas em vários países do mundo ocidental, que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo”, argumenta.
Moro rebateu o argumento na coletiva de imprensa dessa segunda-feira (4). “O que o princípio da vedação da autoincriminação estabelece é que você não pode extorquir confissões e não que você não pode colher um fio de cabelo ou passar um cotonete na boca do condenado”, defendeu o ministro.
Para o representante da ABCF, não há inconstitucionalidade na lei. “Esse argumento de não doar provas contra si mesmo não poderia valer porque ele já é condenado. A legislação prevê que condenados por crimes violentos vão ser identificados no banco de dados e isso não difere em nada do cadastro de impressão digital e fotografia”, argumenta.
Banco Nacional e os perfis genéticos arquivados
Até maio de 2018, 20 laboratórios espalhados pelo país participavam efetivamente da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos e outros três tinham um projeto de integração a médio prazo, no Acre, Rondônia e Alagoas. Apenas cinco estados ainda não estavam integrados à rede na metade do ano passado: Roraima, Tocantins, Piauí, Rio Grande dos Norte e Sergipe.
Uma estimativa feita pelos laboratórios que compõem a rede mostra que os perfis oriundos de vestígios coletados em crimes sexuais corresponde à maior contribuição quantitativa (56%) para o banco nacional, seguido por crimes contra o patrimônio (19%) e crimes contra a vida (10%).
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Os perfis oriundos de condenados e cadastrados na rede estão vinculados, comumente, a crimes contra a vida (37%) e crimes sexuais (28%), segundo estimativa dos laboratórios.
Outros bancos de dados
O projeto de Moro prevê ainda a criação de dois outros bancos de dados para ajudar na elucidação de crimes. O primeiro é o Banco Nacional de Perfis Balísticos, que terá como objetivo “cadastrar armas de fogo, armazenando características de classe e individualizadoras de projéteis e de estojos de munição deflagrados por armas de fogo”.
Para o presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, Marcos Camargo, para ser efetivo, o banco vai precisar ser bastante objetivo. “Como as armas sofrem modificações ao longo do tempo, não é um exame de DNA em que você sempre vai ter um resultado que é infalível”, explica. “No nosso entendimento, não adianta sair cadastrando armas de todo mundo”, completa.
Além disso, o ministro pretende criar o Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais. O objetivo, nesse caso, é “armazenar dados de registros biométricos, de impressões digitais e, quando possível, de íris, face e voz, para subsidiar investigações criminais”, segundo o projeto.
Esse banco será integrado por registros colhidos em investigações criminais e por dados de presos provisórios e definitivos. O projeto também prevê que o banco poderá ser abastecido com dados registrados por órgãos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, como institutos de identificação civil dos estados e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Até hoje nós não temos um Banco Nacional de Impressões Digitais, o que explica, muitas vezes, a baixa resolução de crimes violentos pela nossa polícia judiciária. É preciso habilitar a polícia judiciária a utilizar esses elementos modernos para descoberta desses crimes”, defendeu Moro.
“Esse [banco de dados] a gente tem que estudar um pouco mais. Diferentemente do banco de DNA e do banco balístico, que já têm previsão de ser gerenciado por unidade de perícia oficial, o banco multibiométrico não está com essa previsão”, alerta Camargo. “Não resta dúvida que banco de dados é avanço, mas tem que ver como será implementado”, completa.
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“O objetivo é valorizar a polícia científica e mecanismos de provas que podem auxiliar nas investigações criminais, em crimes comuns, crimes patrimoniais, crimes sexuais, crimes contra a pessoa. Nesse tocante, ponto positivo para o projeto”, opina o professor de Direito Penal Marcelo Lebre.
Mas, segundo o professor, o Banco Nacional Multibiométrico ainda vai gerar polêmica. “O debate que ainda vai surgir em relação a isso vai ser bastante aprofundado”, explica. “Uma coisa é ser facultado a participar de um banco de dados. Outra coisa é ser compelido. Onde fica meu direito de não produzir provas contra mim mesmo? Um segundo problema é que é uma violação do corpo do indivíduo. Como fica a questão da intimidade?”, questiona o professor.
Lebre faz uma analogia com o uso do bafômetro. Ele lembra que o STF já decidiu que nenhum motorista pode ser obrigado a fazer o teste, se não quiser, por exemplo.
Dificuldades na implementação
Tanto o representante da ABCF, quanto Scandelari apontam a necessidade de concentrar recursos para a implementação eficiente do Banco Nacional de Perfis Genéticos. “Com esse foco que o ministro está dando, as dificuldades diminuem muito. O que precisa são recursos financeiros e humanos e colaboração entre as instituições”, diz o perito.
“Após a regulamentação vai ser necessário um investimento público”, explica Scandelari. “Terão que ser comprados materiais, terão que ser feitos concursos públicos para novos servidores, terão que ser firmados convênios com laboratórios e credenciamentos de laboratórios com o estado”, completa.
Moro disse, no início do ano, que pretende contar com a ajuda do Conselho Nacional de Justiça para cadastrar os perfis genéticos no banco. “Quero contar, para esse projeto, com o apoio do Conselho Nacional de Justiça, uma vez que já há um projeto em andamento de coleta de dados biométricos dos presos”, disse o ministro.
Ao apresentar o projeto anticrime, Moro garantiu que haverá recursos necessários tanto para o Banco Nacional de Perfis Genéticos, quanto para os outros dois que ele pretende criar.
“Foi feita uma estimativa do orçamento necessário para implementação desses bancos e não é uma coisa assim tão expressiva. Claro que demanda investimentos, mas não é algo formidável. De todo modo, a lei autoriza a criação e em um segundo momento se trabalha para a implementação desses bancos”, disse o ministro. “Claro que em um cenário de crise fiscal os recursos são limitados, mas existem recursos para segurança pública. Se existem esses recursos, vamos focaliza-los da forma que possam gerar melhores resultados do ponto de vista da prevenção e repressão a essa criminalidade”, completou.