Para Dallagnol, a Justiça Eleitoral é eficaz no combate a crimes eleitorais , mas não tem estrutura e não poderá priorizar casos de corrupção e lavagem de dinheiro.| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Um dos alvos do inquérito instaurado por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar ataques a seus ministros, o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, em Curitiba, diz que sua percepção é de que “o Supremo talvez esteja se sentindo desconfortável”. Dallagnol fala que há um “clamor social” por transparência e cita os pedidos de impeachment contra o ministro do STF Gilmar Mendes e de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso para apurar supostos desvios na magistratura – batizada de “CPI da Lava Toga”. “A preocupação do Supremo deveria ser de prestar contas à sociedade de suas decisões e não buscar de modo indireto desincentivar agentes públicos de prestar contas e exercerem com a liberdade que a Constituição os assegura o seu direito de manifestação e de crítica.”

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Ainda contabilizando os estragos, Dallagnol afirmou que sentenças do escândalo do petrolão podem ser anuladas e investigações em andamento podem ser inviabilizadas com a decisão da maioria do STF na quinta-feira, que estabelece que todo processo de crimes comuns, como corrupção e lavagem de dinheiro, que tiver relação também com crime eleitoral de caixa 2 deve ser enviado à Justiça Eleitoral para julgamento, pelo princípio da competência absoluta.

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No julgamento, Dallagnol foi alvo de duros ataques de Gilmar Mendes. Em entrevista, ele afirmou não se importar em ser xingado pelo ministro, mas sim temer pelo futuro da Lava Jato. Disse ainda ter ficado surpreso com a iniciativa da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que entrou com ação contra acordo da força-tarefa com a Petrobras para reverter para o Brasil 80% da multa a ser paga pela estatal a autoridades dos Estados Unidos, e sobre a possibilidade de mais uma derrota a ser enfrentada no dia 10 de abril – quando o Supremo votará a possibilidade de prisão para condenados em segunda instância.

A decisão do Supremo sobre caixa 2 foi o mais duro golpe sofrido pela Lava Jato nos seus cinco anos?

O que aconteceu no Supremo foi uma decisão que, na nossa perspectiva, desfavorece as investigações e os processos que vinham alcançando bons resultados, dentro das regras que existiam. A partir dessa decisão, casos em que, além do crime de corrupção, houve também um crime de caixa 2 eleitoral – o que é muito comum na Lava Jato – serão enviados para a Justiça Eleitoral. Precisamos lembrar que a Lava Jato identificou que o dinheiro era desviado por meio de contratos públicos a fim de alimentar o bolso dos envolvidos e campanhas eleitorais. Ou seja, praticar também crimes eleitorais.

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A ida dos casos para a Justiça Eleitoral é negativa, sem qualquer demérito para ela, que tem um trabalho de excelência no tocante a casos eleitorais. O problema é que a Justiça Eleitoral não é vocacionada para apurar esse tipo de crime (corrupção, lavagem de dinheiro etc). Os juízes e promotores atuam em sistema de rodízio, mudando a cada dois anos, o que prejudica o conhecimento mais profundo de um caso como a Lava Jato. Em segundo ponto, eles atuam parte do tempo do seu dia na Justiça Eleitoral. Ela não tem estrutura própria, ela tem estrutura emprestada. Ou seja, um promotor que atua na área de família vai dedicar algumas horas por dia a questões eleitorais. Um caso como a Lava Jato exige dedicação integral. O terceiro ponto é que esses promotores e juízes são obrigados por lei a dar preferência a casos que envolvam as eleições. Deixam as investigações de corrupção em segundo plano, quando para a sociedade elas são prioridade. E, por fim, não é uma Justiça especialidade em lavagem de dinheiro. A minha conclusão é que não tem como dar certo.

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Vocês já fizeram um balanço de quantos casos podem sair da Lava Jato e ir para a Eleitoral?

Vamos usar os melhores argumentos técnicos jurídicos para defender nosso trabalho. Mas, a partir desta quinta-feira, saiu do nosso controle. Essa decisão traz uma nuvem cinzenta de incerteza jurídica, porque vai gerar uma série de discussões que vão acontecer em um sem-número de processos da Lava Jato. Discussões essas que serão travadas em habeas corpus, não amanhã, mas ao longo de dois, três, cinco anos, ou mais. E, ainda que a questão tenha sido sedimentada em matéria de habeas corpus nas três instâncias, ela vai ser rediscutida depois da sentença.

O maior prejuízo esperado será para os processos já com sentença ou para as investigações em aberto?

A decisão do Supremo vai ter um efeito nos casos presentes, nos casos futuros e até mesmo nos casos passados, que podem vir a ser anulados, inclusive condenações. Ela disse que crime de corrupção e crimes de caixa 2 devem ser julgados em conjunto na Justiça Eleitoral. Se em um caso do passado descumprimos essa regra que o Supremo estabeleceu nesta quinta, a partir de uma interpretação do Direito que existe há muito tempo, os casos são anulados. Porque essa interpretação do Supremo é sobre uma regra que sempre existiu, mas nunca foi tornada clara. Tanto era discutível que a decisão foi por seis (votos) a cinco. Isso faz com que casos da Lava Jato em que havia caixa 2 associado à corrupção, o que foi bastante comum, sejam passíveis de serem anulados. Quando a Justiça errada julga o caso, o caso é passível de anulação e não tem salvação – é o que em Direito chamamos de nulidade absoluta.

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A Lava Jato conseguiu romper a barreira das discussões de nulidade para tratar do mérito, das provas e fatos. Com a decisão do Supremo, a barreira das nulidades está sendo restabelecida. Não sabemos nem podemos assegurar qual vai ser o resultado, de fato.

Os votos dos ministros foram uma surpresa?

Tínhamos uma leitura de que a decisão se daria por maioria de votos. Mas não acreditava que o Supremo fosse endossar uma tese que tem por efeito, como bem colocou o ministro Luís Roberto Barroso, mudar algo que vinha funcionando no Brasil, que consiste em uma grande investigação que conseguiu, com apoio da sociedade, abalar os alicerces da grande corrupção e da impunidade dos poderosos brasileiros.

É o caso de a Lava Jato acabar, como chegaram a ameaçar em 2016, quando se falou em anistia a crimes investigados?

Não pensamos nisso, vamos lutar até o fim. A situação no fim de 2016, em que cogitamos abandonar a Lava Jato, decorreu de um risco que existia de a Lava Jato ser ferida de morte. Risco que foi afastado em decorrência do apoio da sociedade brasileira. Agora, o que temos é um grande risco e um potencial de esvaziamento da Lava Jato. Mas vamos usar os melhores argumentos técnicos e jurídicos para defender nosso trabalho e buscar o melhor resultado para a sociedade. Contudo, com a mudança das regras, estamos longe de poder garantir que conseguiremos manter uma sequência de resultados como tivemos até aqui. Já acusamos mais de 450 pessoas, e 130 foram condenadas por crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Alcançamos a recuperação de mais de R$ 13 bilhões, algo inédito na história brasileira.

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A Lava Jato terá mais um revés no Supremo na votação do dia 10 de abril sobre a possibilidade de execução provisória das penas em segundo grau?

Essa decisão nos preocupa há muito tempo. O efeito de uma decisão que impeça a execução da pena em segunda instância é a impunidade nos casos de réus de colarinho branco, que conseguem estender e protelar os seus processos por mais de décadas, quando não existem réus presos. E ainda por cima ela pode afetar as perspectivas de investigação porque, quando não existe risco concreto de punição, os réus não têm interesse de colaborar com a Justiça, justamente porque têm uma larga avenida de impunidade à sua frente. Isso acaba minando o principal motor do sucesso da Lava Jato, que foi a realização de acordos de colaboração premiada e de leniência, em um ritmo vertiginoso, como estratégia de descobrir novas linhas de investigação.

Na votação de quinta ministros do Supremo, como Gilmar Mendes, fizeram duras críticas ao senhor e outros membros da Lava Jato. Como vocês receberam esses ataques?

Não me preocupo em ser xingado pelo ministro Gilmar Mendes. Eu me preocupo, sim, com o resultado desse julgamento, sobre o caso Lava Jato e as investigações de corrupção política no nosso país.

Vejo essa reação exacerbada com certo espanto, porque ela decorreu de algo que já temos feito há cinco anos, que é prestar conta à sociedade do nosso trabalho. Inclusive no tocante a julgamentos no STF que podem impactar no nosso trabalho. Isso faz parte do nosso dever de prestação de contas e transparência. Um exercício legítimo da liberdade de expressão.

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OPINIÃO DA GAZETA:Deltan Dallagnol e a liberdade para criticar o STF

É importante ressaltar que a crítica, ainda que dura, feita por autoridade pública contra a atividade de outras autoridades públicas, em matéria de interesse público, é um núcleo essencial da liberdade de expressão. Se a liberdade de expressão fosse para proteger pessoas que fazem elogios ou afirmações neutras, ela não precisaria existir.

O senhor e colegas procuradores da Lava Jato viraram alvos de investigação aberta por decisão do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, para apurar supostas fake news e manifestações abusivas. Como recebeu essa notícia ?

A instauração desse inquérito também nos causa espanto. Porque foi instaurado de forma direcionada a um ministro, ferindo a regra de que processos na Justiça devem ser submetidos à livre distribuição, o que se relaciona com um princípio básico do nosso Direito, que é o do juiz natural. Em segundo lugar, o inquérito foi instaurado de ofício, quando a regra no nosso sistema é que ele seja instaurado a partir de uma atividade da polícia ou do Ministério Público, enquanto a Justiça deve desempenhar um papel imparcial. Em terceiro, porque, segundo as notícias, ele se destinaria a investigar atividade de pessoas que não têm prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, inexistindo uma razão jurídica para que esse inquérito tramite lá. Por fim, nos pareceu que esse inquérito pode tratar de matérias que estão resguardadas pela liberdade de expressão, quando o Supremo deveria ser o maior guardião desse direito.

Fazendo uma análise um pouco mais ampla, a percepção que tenho é de que o Supremo talvez esteja se sentindo desconfortável em razão do pedido de impeachment e da CPI que foi instaurada no Congresso Nacional, que por sua vez é resultado de um clamor social. Talvez eles entendam que a opinião da sociedade pode ser impactada pelas informações que levamos até ela. Agora, na minha percepção, a preocupação do Supremo deveria ser de prestar contas à sociedade de suas decisões e não buscar de modo indireto desincentivar agentes públicos de prestar contas e exercerem, com a liberdade que a Constituição lhes assegura, o seu direito de manifestação e de crítica.

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Junto com essa “derrota” no Supremo, há a criação de fundo bilionário com recursos oriundos de 80% da multa a ser paga pela Petrobras a autoridades norte-americanas, devido a acordo entre o MPF e as duas outras partes, e que suscitou críticas à força-tarefa. Foi um erro?

A Petrobras foi multada nos Estados Unidos devido à falha de controles internos, simultaneamente à existência de um esquema de corrupção descoberto. A força-tarefa da Lava Jato não teve nenhuma interferência no acordo que existiu entre a Petrobras e as autoridades norte-americanas. Contudo, sabendo da existência desse acordo, a Lava Jato interveio junto às autoridades dos Estados Unidos para buscar autorização para que esses recursos ficassem no Brasil. Em geral, em casos de punições internacionais, apenas 3% dos recursos voltam para o país de origem, segundo dados do Banco Mundial e da ONU. A Lava Jato conseguiu autorização para que 80% desse valor ficasse no Brasil.

A premissa equivocada de que muitas pessoas partiram, inclusive a procuradora-geral da República, na ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental], é de que essa autorização implicava a permanência do dinheiro no Brasil por si só. Isso decorrente do desconhecimento da política norte-americana, segundo a qual esse dinheiro só pode ficar no Brasil se a empresa que fez o acordo com os Estados Unidos for obrigada a pagar, no Brasil, valores a título de punição, de perdimento, de confisco ou de acordo relacionados à mesma infração pela qual a empresa foi punida nos Estados Unidos. Ou seja, a Petrobras não poderia ficar com esse dinheiro, não poderia transferir o dinheiro para a União, mas ele só poderia ficar no Brasil se houvesse a atuação de um órgão oficial brasileiro de cobrança desses valores em relação a Petrobras.

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Tendo ciência disso, e existindo na Lava Jato em Curitiba um inquérito civil que dizia respeito à potencial lesão ao direito de acionistas minoritários da Petrobras em razão do esquema de corrupção, e havendo atribuição da Lava Jato em Curitiba para analisar um potencial dano causado à sociedade em razão do grande esquema de corrupção e de falhas no sistema de compliance, a Lava Jato realizou um acordo com a Petrobras, que permitiu que esses recursos ficassem no país. A Lava Jato não entrou para ficar com os recursos para ela ou para o Ministério Público, mas sim para que ele pudesse ficar no Brasil e na maior medida possível.

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Outro questionamento foi sobre o controle que a Lava Jato terá sobre o uso do dinheiro do fundo.

Nossa preocupação não é que esses recursos tenham destino X ou Y, mas que fiquem no Brasil e revertam em favor da sociedade brasileira. Mas a destinação dos valores tem de guardar uma relação com a causa do pagamento. E a causa do pagamento é uma potencial lesão a acionistas da Petrobras e à sociedade brasileira. Por isso 50% dos recursos ficaram reservados para pagar eventuais condenações em favor dos acionistas minoritários, e a outra metade foi destinada à sociedade.

A razão maior da polêmica surgiu exatamente nesse ponto, porque o modo desenhado de destinar os recursos para a sociedade brasileira foi a criação de uma fundação. Qual era a alternativa? A destinação para o Fundo Federal dos Direitos Difusos, que funciona no mesmo molde que funcionaria a fundação. Ele destina recursos para entidades que protocolassem projetos voltados à educação, saúde, cidadania, controle da corrupção e por aí vai. O problema desse fundo é que nos últimos anos quase todo o dinheiro tem sido contingenciado, e não chega à sociedade. De 2016 a 2018, dos recursos arrecadados 99,5% foram contingenciados para pagar juros da União e gerar superávit. Não chegaram à sociedade.

Por isso, com base na melhor experiência internacional, de casos como da Siemens e da Alstom, e com base em previsões do nosso ordenamento jurídico, a solução encontrada foi a criação de uma fundação que pudesse gerar esses recursos, como o Fundo [Federal de Direitos Difusos] faria, mas de modo a fazer com que eles cheguem à sociedade. É importante esclarecer que jamais o Ministério Público ou a Lava Jato foram colocados como destinatários desses recursos, nem como gestores. Quem faria a gestão seria a sociedade civil por meio dessa fundação.

É uma questão complexa, mas que tem amplo embasamento legal e nas melhores táticas internacionais. Para explicar essa questão complexa, a Lava Jato fez tanto uma relação de perguntas e respostas, disponível em seu site na internet, e fez um ofício dirigido ao Supremo prestando informações sobre todo o processo de negociação da vinda desses valores ao Brasil e de estudo dos possíveis encaminhamentos para que esses valores fossem revertidos efetivamente em favor da sociedade brasileira.

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Não fazemos questão da destinação desses recursos, fazemos questão de que os recursos fiquem no Brasil e sejam destinados à sociedade. Por isso foram suspensos, por iniciativa da própria Lava Jato, os procedimentos de criação da fundação. Não foi suspenso o acordo por iniciativa do Ministério Público, foi suspenso o procedimento de criação da fundação para discutir e buscar um consenso junto à Advocacia Geral da União (AGU), a Controladoria Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU) sobre qual o melhor encaminhamento possível. Caso se decida que a melhor saída seja o Fundo Federal de Direitos Difusos, entendemos que pode ser uma solução possível, mas não a melhor.

A suspensão pelo STF do acordo é um risco?

A decisão do ministro Alexandre de Moraes foi além da iniciativa da Lava Jato, porque suspendeu não só a criação da fundação, mas suspendeu o próprio acordo homologado pela 13.ª Vara Federal em Curitiba. E isso gera, em princípio, o risco de que a Petrobras precise pagar o valor integral nos Estados Unidos. Porque o acordo era o que justificava a permanência dos valores no Brasil. Contudo, esperamos que, com as informações encaminhadas, o Supremo possa analisá-las e, eventualmente, vir a rever a sua posição.

Como a força-tarefa recebeu a decisão da procuradora-geral de entrar com a ADPF questionando o acordo?

Isso nos gerou uma grande surpresa. Esse acordo foi feito e divulgado em janeiro de 2019. Nós tínhamos informado a Procuradoria-Geral da República uma série de vezes sobre as tratativas que pendiam a esse acordo. Jamais a procuradoria-geral mostrou qualquer óbice contra a sua efetivação. Mesmo depois de o acordo ser realizado, a PGR poderia ter buscado a força-tarefa para buscar alterar o acordo, retificar os seus termos, ou buscar uma solução que pudesse ser ainda melhor para a sociedade brasileira. Nós fomos, na semana anterior ao carnaval, à PGR para ter uma reunião com membros das outras Lava Jatos, inclusive membros da PGR. Estivemos presencialmente junto à procuradora-geral. Em momento nenhum ela manifestou discordância em relação ao acordo. Nós fomos surpreendidos pela propositura da ADPF.

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