Imagine que você compra uma casa nova. Você fez o negócio consciente de que o imóvel tem vários problemas estruturais deixados pelos moradores que passaram por lá e que precisará realizar uma grande e trabalhosa reforma para poder morar tranquilamente com seus familiares. Mas acontece que você tem pouco ou quase nenhum dinheiro para os reparos. E aí, qual a solução?
É com um dilema parecido com esse que os governadores eleitos em outubro estão quebrando a cabeça. Em muitos estados, o cenário com o qual os novos gestores se depararam ao tomar posse é o mesmo: muitas demandas e poucos recursos.
Numa eleição em que praticamente todas as atenções se voltaram para a disputa presidencial, a situação dos estados acabou ficando em segundo plano. No debate esvaziado nos estados, sobraram promessas de “enxugar a máquina”, melhorar a saúde, educação e segurança. Mas faltou atentar a questões fundamentais para quem pretende administrar um estado, como endividamento elevado, falta de recursos para investimentos, despesas com pessoal acima do limite e gastos com servidores inativos em disparada.
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Casos como os do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, em que servidores ficaram meses sem receber salários e serviços essenciais foram paralisados, são emblemáticos. Mas o quadro crítico vai muito além desses dois estados. A Secretaria do Tesouro Nacional (STN) divulgou em novembro o Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais 2018, no qual faz um raio-x da situação fiscal de estados e municípios até o exercício de 2017. De acordo com o levantamento, 12 das 27 unidades da federação não apresentam capacidade de pagamento, ou seja, não sustentam condições de quitarem seus débitos.
O índice Capag – capacidade de pagamento – é atribuído com base em indicadores de endividamento, poupança corrente e liquidez, através de notas A, B, C ou D. Os entes que obtiverem notas A ou B estão aptos a receber garantia da União para novos financiamentos. “Alguns estados, além de ter baixa poupança corrente, ainda possuem baixa disponibilidade de caixa, evidenciando que o volume de obrigações de curto prazo das fontes de recursos não vinculadas do estado é superior aos recursos em caixa”, diz o boletim do Tesouro Nacional sobre os dez estados que obtiveram nota C, e Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, que receberam a pior classificação, nota D.
Os estados do Acre, Amazonas, Paraíba, Piauí, Paraná e São Paulo estão próximos de perder o seu rating ‘B’, pois a relação Despesa Corrente e Receitas Correntes já se encontra bem próxima da margem dos 95%. Para esses estados, faz-se necessário esforço maior em aumentar a receita e cortar gastos, pois a nota poderá ser rebaixada para ‘C’ já no próximo ano”, alerta a STN.
Governos esbanjadores
O boletim da STN explica qual é a equação básica que leva qualquer órgão à derrocada financeira: enquanto as receitas caem, as despesas aumentam. No ano passado, os estados somaram R$ 752,3 bilhões em receitas primárias, contra R$ 766,2 em despesas, um déficit primário na casa de R$ 14 bilhões. “A situação fiscal dos estados ainda não se mostrou equilibrada. Com o agravamento do déficit primário, em boa parte explicado pelo crescimento das despesas primárias, as necessidades de financiamento, no agregado, não encontraram fontes suficientes para seu completo equacionamento”, diz a STN.
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Um outro estudo, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), indica que, aos entes endividados, não basta simplesmente cortar gastos. “A queda abrupta e acentuada da receita a partir de 2015 não teve uma resposta imediata das despesas, pois uma parte expressiva não era passível de redução instantânea por estar associada a gastos permanentes. Não era possível restaurar o equilíbrio das finanças estaduais simplesmente reduzindo o investimento, pois a retração na receita corrente foi muito grande. Ademais, os investimentos já vinham sendo, em grande medida, financiados por operações de crédito”, diz o instituto.
Falta de fiscalização pode ter agravado o problema
Secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco acredita que a situação “dramática” dos governos estaduais é responsabilidade não apenas dos gestores, mas também dos Tribunais de Contas, que têm falhado na fiscalização dos poderes. “Em muitos estados os dados foram sendo maquiados, de forma a diminuir artificialmente as despesas e aparentar que a lei estava sendo cumprida. Em alguns casos, há defasagem de até 20 pontos percentuais entre os dados apresentados ao TC e ao governo federal. Os tribunais começaram a agir com tolerância e se tornaram coniventes”, critica.
Gil acredita que a impunidade é um fator que, ao longo dos anos, contribuiu com a piora das finanças estaduais. “É difícil quando não há responsabilização do político que deixou o estado quebrado. Aí vem outro governador e passa o mandato inteiro tentando recuperar as finanças, quando não piora a situação. Essa cadeia em que um quebra e o outro conserta precisa ser rompida, e para isso existem instrumentos que punem aqueles que descumprem a lei.”
Funcionalismo caro
Tanto a STN quanto o Ipea são incisivos ao apontar os dois principais ‘calos’ dos governos estaduais, onde os novos gestores deverão atacar: gastos com pessoal e Previdência. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), os estados não devem gastar com pessoal mais que 60% da Receita Corrente Líquida. Segundo o boletim do Tesouro Nacional, mais da metade dos estados (14 no total) excederam esse percentual em 2017. Em Minas Gerais, por exemplo, esse índice chegou a mais de 79%.
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“O exercício de 2017 apresentou crescimento real da despesa bruta com pessoal para a maioria dos entes, impulsionado pela elevação do gasto com inativos. O caráter rígido dessa despesa, somado ao agravamento da situação previdenciária, dificulta a contenção das despesas para aqueles estados que já destinam boa parte de sua arrecadação para o pagamento de salários ou aposentadorias”, resume o boletim da STN.
O que pode ser feito pelos novos governadores
Para Mauro Rochlin, doutor em Economia e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), atacar essas despesas será tarefa inevitável para os próximos governadores. “As novas gestões terão, inevitavelmente, de mexer em seus gastos com pessoal. Será fundamental promover uma racionalização dessas despesas e adiar reajustes salariais. E isso inclui não apenas os servidores do Executivo, mas também do Legislativo e do Judiciário, onde é visível o desperdício de recursos”, afirma.
Não bastasse a despesa elevada com servidores da ativa, os governos estão vendo, de maneira geral, um salto nas despesas com os inativos. De acordo com o Ipea, o gasto médio com inativos nos estados subiu 9% em 2017, enquanto as receitas caíram 0,5%. “O esforço de contenção dos gastos com servidores ativos não tem sido suficiente, portanto, para contrabalançar o rápido crescimento dos gastos com servidores inativos”, frisa o instituto.
Como resolver essa situação? “As novas gestões terão de enfrentar reformas previdenciárias em seus estados”, diz Rochlin. A afirmação é endossada pela STN, para quem o déficit previdenciário “é indício do problema da insustentabilidade dos regimes de previdência estaduais, tendo em vista o consumo cada vez maior de recursos financeiros, que poderiam estar sendo direcionados para atender e ampliar os serviços básicos exigidos pela sociedade”.
Crise na agenda
Considerando todos esses problemas, somados ao alto grau de endividamento dos estados e a instabilidade nas receitas, os governadores terão trabalho para, pelo menos, amenizar as dificuldades financeiras. “A crise das finanças públicas estaduais ainda ficará na agenda por bastante tempo”, crava o estudo do Ipea. Diante desse cenário nada animador, outras medidas são necessárias, além da redução dos gastos com pessoal e a revisão dos regimes previdenciários.
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“As isenções fiscais concedidas pelos governos estaduais precisam ser revistas, elas beneficiam alguns, mas representam uma penalização para os cofres públicos. E como é algo que gera competição entre os estados, precisa ser enfrentada de forma conjunta”, observa Mauro Rochlin. Para Gil Castello Branco, serão inevitáveis medidas duras no sentido de conter as despesas. “Mesmo as renegociações das dívidas com a União têm se revelado insuficientes. E o governo federal tem um déficit previsto de R$ 130 bilhões para o ano que vem, não está em condições de socorrer os estados. Não dá mais para jogar a conta no colo da viúva.”
O exemplo que vem do Espírito Santo
Enquanto na maior parte dos estados brasileiros a situação é de penúria, em pelo menos um deles o novo governador herdou um quadro de relativa tranquilidade. O Espírito Santo foi a única das 27 unidades da federação a receber da Secretaria do Tesouro Nacional a nota A em Capacidade de Pagamento. Na prática, isso significa que o estado conseguiu equilibrar as contas de modo a obter indicadores positivos de endividamento, poupança corrente e liquidez.
Até o ano passado, o Espírito Santo era administrado por Paulo Hartung (sem partido), que exerceu o cargo pela terceira vez e, mesmo podendo disputar um novo mandato, optou por não concorrer à reeleição. Seu sucessor é Renato Casagrande (PSB), eleito ainda no primeiro turno e que assumiu em 1.º de janeiro o cargo pela segunda vez (a primeira entre 2011 e 2014). O novo governador assumiu o estado com um saldo positivo de R$ 300 milhões em caixa. O orçamento estipulado para 2019 é de R$ 18,2 bilhões.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o secretário da Fazenda capixaba, Bruno Funchal, disse que o resultado indicado pelo Tesouro Nacional é fruto de um trabalho deflagrado no início do mandato. Em 2015, Hartung assumiu o governo com um déficit na casa de R$ 1 bilhão. “Decidimos que o foco seria em ações que controlassem a despesa, sem aumentar impostos. Logo em janeiro (de 2015), foi assinado um decreto determinando a todos os órgãos a redução de 20% no custeio”, revela. Além disso, concursos foram suspensos e cargos comissionados cortados.
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De acordo com ele, no primeiro ano já foi verificada uma redução significativa nos gastos, que culminou com um superávit orçamentário no fim de 2016. “Isso mesmo com vários problemas na arrecadação, como o desastre em Mariana [a Samarco era responsável por 5% do PIB do Espírito Santo] e a queda no preço do petróleo [outra fonte importante de receita para o estado são os royalties pela exploração do produto]”, observa Funchal. Somente em 2017 a receita voltou a crescer, possibilitando que o estado iniciasse 2018 com novos investimentos.
A política do governo capixaba foi no mesmo sentido apontado pela STN: controle rígido nos gastos com pessoal. Ao longo dos três últimos anos, a administração não concedeu reajuste salarial ao funcionalismo e regulou as contratações. “É sempre difícil porque criou-se um costume de reajustes periódicos aos servidores. Mas nosso orçamento foi ficando menor e não temos como dar aumento se temos menos recursos. Optamos pelo principal, que é manter os salários em dia”, ressalta Funchal.
Para o secretário, mais importante do que encerrar o mandato com as contas em dia foi estabelecer uma mudança estrutural na gestão. Com a poupança corrente, o estado consegue utilizar 89% da receita com despesas correntes e deixar os 11% restantes para investimento. “Faça chuva ou faça sol, conseguimos manter a despesa controlada e garantir um fluxo de investimento”, destaca.
Perguntado sobre a recomendação aos novos gestores para tentar colocar as contas em dia, Funchal resume: “a recomendação é sempre tomar muito cuidado com o crescimento da despesa, garantir o custeio e, o que é mais importante, tomar cuidado com a despesa com pessoal. Esse é um compromisso que vai valer para sempre, em que a margem de manobra do gestor público é muito pequena. É preciso sempre ter um lastro de aumento de receita para pensar qualquer aumento salarial”.
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