O Brasil vem sendo atropelado por uma sucessão de crises políticas e econômicas nos últimos anos. O país enfrenta uma das piores recessões econômicas de sua história e parece tropeçar em escândalos políticos. Mal recuperado do segundo processo de impeachment de um presidente em pouco mais de duas décadas, o país afundou em denúncias de corrupção, depois das delações da JBS contra o presidente Michel Temer e integrantes deste governo e de gestões passadas.
“Essa crise toda explicita a deformação patrimonialista do Estado brasileiro, que consiste numa falta de clareza na separação entre público e privado”, afirma o economista Eduardo Giannetti. Para ele, essa deformação é quase que um sinal de nascença do Brasil, e denota a relação espúria entre público e privado e uma inversão promovida desde o descobrimento em que é a sociedade brasileira que está a servir o Estado.
Em seu último livro, “Trópicos Utópicos” (Companhia das Letras, 2016), Giannetti afirma que o Brasil “tem fome de futuro”. A atual crise e grandes operações como a Lava Jato, que desnudaram grandes esquemas de corrupção, podem acelerar o processo de mudança. “O grande mérito da Lava Jato é escancarar a que ponto chegou a deformação patrimonialista e nos dar a oportunidade única de fazer com que a democracia não seja um mal-entendido e que a economia não seja uma caricatura”, argumenta.
Giannetti esteve em Curitiba no fim de junho, quando participou do evento Fórum de Economia — entre a dúvida externa e a dívida interna, promovido pela Câmara Americana de Comércio (Amcham-Curitiba), e conversou com a Gazeta do Povo. O economista aponta como parte do caminho para essa mudança uma profunda reforma política, que mude as regras do jogo, e vê com bons olhos a resiliência da economia brasileira e as oportunidades para corrigir o rumo do país. Confira os principais trechos da entrevista.
“A pior situação é você ter um câncer e não saber. O primeiro passo para você tratar de um câncer é fazer um diagnóstico e enfrentar a realidade do problema. O Brasil agora tem essa chance.”
O Brasil vem enfrentando uma sucessão de crises políticas e econômicas. Em pouco mais de um ano, vimos a então presidente Dilma Rousseff sofrer um processo de impeachment e seu sucessor Michel Temer está envolvido em graves denúncias de corrupção (Temer só foi denunciado por corrupção na semana seguinte a essa entrevista). O que a atual crise política representa?
Essa crise toda explicita a deformação patrimonialista do Estado brasileiro, que consiste numa falta de clareza na separação entre público e privado. E mostra um encaixe que é o do grupo político, o estamento político, buscando usar suas prerrogativas para se perpetuar no poder, e no setor privado, grupos empresariais que buscam atalhos para o enriquecimento. Esses dois grupos estabelecem vínculos espúrios e totalmente promíscuos para perseguirem os seus fins. O que a crise política faz é escancarar essa deformação patrimonialista e, portanto, ela nos dá uma chance, como talvez nunca antes, de corrigir. Porque agora escancarou uma coisa que já ocorria há muito tempo no Brasil, mas sobre a qual não se tinha muita clareza e muita evidência, e agora está totalmente escancarada e aberta. Eu uso a imagem do câncer: a pior situação é você ter um câncer e não saber. O primeiro passo para você tratar de um câncer é fazer um diagnóstico e enfrentar a realidade do problema. O Brasil agora tem essa chance. Agora, não basta investigar. Nós temos de caminhar para uma reforma política, profunda, porque se as regras do jogo continuarem as mesmas, esse jogo vai degringolar de novo. É uma questão de tempo, apenas.
Há espaço para uma reforma política agora?
Não é realista imaginar que alguma coisa possa ainda acontecer antes da próxima eleição. Mas eu acredito que deveria estar encabeçando a agenda do novo governo uma reforma política bem mais ampla. O meu sonho — mas é um pouco irrealista imaginar isso — é que houvesse uma constituinte restrita à reforma política e exclusiva, no sentido de quem dela participa não se elege para cargo público durante dez anos. O que o Brasil precisa fazer é separar o processo constitucional, que é uma coisa, do jogo político-partidário, que é algo totalmente distinto. Confundir o jogo político-partidário com processo constitucional gera uma situação como essa que estamos vivendo.
“O que o Brasil precisa fazer é separar o processo constitucional, que é uma coisa, do jogo político-partidário, que é algo totalmente distinto. ”
E a situação do Brasil é dura. Há um caminho a seguir?
Eu acho que o Brasil vai amadurecer com todo esse processo. Por mais doloroso que ele seja, ele nos dá uma chance de rever práticas, políticas e deformações, tanto da democracia quanto da economia de mercado, que há muito tempo vem existindo no Brasil, e que agora chegaram a um tal grau de deformação e de disfuncionalidade que quase pedem, ou até mesmo impõem, uma correção. Eu tenho me servido muito de um verso do Fernando Pessoa, que me encheu de esperança no Brasil, que é o seguinte: “Extraviamo-nos a tal ponto que devemos estar num bom caminho”. Eu acho que o Brasil está vivendo um pouco isso. A deformação patrimonialista chegou a tal ponto que ela quase impõe uma correção.
Além da crise política, o Brasil enfrenta uma recessão econômica. A economia do país, que dava alguns sinais de recuperação, sofreu um baque com as novas denúncias de corrupção. Qual o reflexo da crise política na economia brasileira?
Infelizmente, essa última rodada de escândalos da JBS não poderia ter ocorrido em pior momento. Nós estávamos com a economia dando sinais muito claros de recuperação em andamento, as reformas que o governo Temer está propondo — trabalhista e previdenciária — estavam bem encaminhadas e com perspectiva de aprovação ainda no primeiro semestre. Mas, infelizmente, com a eclosão do escândalo, o vazamento daquele áudio, todo esse processo ficou muito comprometido. A boa notícia é que apesar de um dia de pânico dos mercados financeiros, logo ficou claro que a economia brasileira tem resiliência para conseguir absorver a incerteza política sem ir para a beira do precipício. Já no dia seguinte à eclosão do escândalo, os mercados começaram um processo de correção — dólar, bolsa e juros futuros — e isso mostrou que o Brasil está sólido, para evitar uma crise de pânico e colapso no curto prazo. Isso foi uma novidade, porque em um primeiro momento nem isso estava muito claro. As perspectivas hoje não são tão favoráveis quanto eram antes do escândalo, mas ao mesmo tempo a economia mostrou uma capacidade de absorção no curto prazo, para evitar aquela situação de colapso e beira do precipício e queda livre, como chegamos a ter no final do governo Dilma.
“Eu tenho me servido muito de um verso do Fernando Pessoa, que me encheu de esperança no Brasil, que é o seguinte: ‘Extraviamo-nos a tal ponto que devemos estar num bom caminho’. ”
E as reformas propostas por Temer empacaram no Congresso...
O que dá para se dizer com absoluta convicção é que a posição do Executivo enfraqueceu. Tanto a velocidade das reformas, quanto o teor, o conteúdo das propostas, dificilmente vão ser preservados. E o Legislativo vai se beneficiar — ou vai buscar se beneficiar — dessa situação de enfraquecimento do Executivo pleiteando mais e cobrando mais caro por um eventual apoio. O que a gente ouve é que o governo está disposto a transigir muito mais para aprovar alguma coisa ao invés de não aprovar nada. Alguma coisa é melhor do que nada, mas vai ficar deixando muito a desejar. E não há a menor dúvida: o Brasil vai voltar a discutir reforma previdenciária inevitavelmente nos próximos anos. Mesmo que a plena reforma original do governo fosse aprovada, o tema Previdência ia voltar à pauta em alguns anos no Brasil, porque a nossa dinâmica demográfica é muito forte e nós partimos de uma posição na Previdência — tanto INSS quanto regime especial do setor público — muito ruim e a dinâmica demográfica é catastrófica do ponto de vista atuarial.
“Acho que vai ser uma travessia muito difícil [a do Brasil pela recessão econômica], com novas turbulências quase que inevitáveis, porque tem delações premiadas muito explosivas para acontecer. ”
Ainda não é possível cravar que estamos saindo da recessão econômica. O que esperar daqui para frente?
Acho que vai ser uma travessia muito difícil, com novas turbulências quase que inevitáveis, porque tem delações premiadas muito explosivas para acontecer. Mas a economia já mostrou que resiste bem a curto prazo, os mercados financeiros não enlouquecem. Há um processo de recuperação que vai ser mais lento e claudicante do que se isso não estivesse acontecendo. Eu ainda trabalho com um cenário básico de crescimento de 0,5% esse ano, ou seja, o Brasil saindo da recessão em 2017 e, quem sabe, um crescimento de 1,5% ou 2% no ano que vem. São números ainda muito ruins, mas à luz do que vivemos nos últimos três anos, representam uma melhoria. Uma boa notícia que o Brasil tem é que o investimento direto estrangeiro se manteve robusto mesmo durante o pior da recessão. E ele revela que talvez haja mais confiança fora do Brasil do que dentro. O sinal de que nós viramos a página mesmo virá quando os investimentos crescerem, os investimentos gerais em formação de capital, e isso foi mais uma vez adiado.
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