A reação de parte da esquerda ao julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aponta para um cenário de confronto, de “guerra”, nas palavras do líder do Movimento Sem Terra (MST) Alexandre Conceição. O discurso radical, feito antes mesmo do resultado final, se insere em um cenário de escalada da violência no Brasil, com apedrejamentos, linchamentos virtuais e ameaças a agentes públicos, fruto da polarização política. A falta de respostas do Estado a fatos graves, como o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSol) ou o atentado a tiros contra a caravana de Lula no Paraná, criam um ambiente de desordem e que pode levar à busca da justiça pelas próprias mãos.
O descaso com a ordem institucional ficou visível nos dias pré e pós-decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Agentes públicos de todos os espectros políticos manifestaram ameaças, querendo impor sua vontade sobre o voto dos ministros. Na terça-feira (3), o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, escreveu no Twitter uma declaração que foi entendida como um prenúncio de golpe militar, ao dizer que o órgão está “atento às suas missões institucionais”.
Villas Bôas se manifestou um dia após um pronunciamento oficial da presidente do Supremo, Cármen Lúcia, pedindo “serenidade para que as diferenças ideológicas não sejam fonte de desordem social”. Petistas já tinham declarado que haveria “resistência política e humana” em caso de prisão de Lula, indicando uma desobediência civil. Na semana anterior, o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no STF, disse ter sofrido ameaças, sem especificar de que tipo.
O próprio PT foi alvo de muitas agressões antes do julgamento. A caravana de Lula pelo Paraná foi atingida por tiros em 27 de março, em um caso que ainda está sendo investigado, com análise de mensagens de grupos de Whatsapp que organizaram protestos no local. A perícia da Polícia Civil constatou que o ônibus foi mesmo alvo de disparos de arma de fogo.
Além disso muitas pedras, paus, tomates e ovos podres foram jogados contra o ex-presidente e sua comitiva, que também encontrou barreiras impedindo seu livre trânsito. Esse caso exemplifica bem uma situação que vem ocorrendo com mais frequência. “As redes sociais amplificam as críticas ao adversário, e a demonização dele acaba tornando-o um inimigo, que precisa ser abatido. Agora isso tem ocorrido de forma literal”, observa o cientista político Geraldo Tadeu Monteiro, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
A reação mais forte a esses episódios veio do presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pré-candidato a presidente. No dia seguinte aos tiros à caravana, em entrevista à Rádio Bandeirantes, ele cobrou uma reação conjunta do Executivo e do Legislativo à tensão política no país. “É gravíssimo o que aconteceu. Os tiros nos ônibus foram o ponto final de alguns dias de absurdos, inviabilizando a mobilização do ex-presidente Lula. Somos adversários, mas devemos sempre ser adversários nas ideias, no debate”, disse. Sobre as ameaças a Fachin, também disse que o Estado precisa reagir. O presidente Michel Temer, por exemplo, lamentou os dois fatos, pediu pacificação, mas não tomou medidas concretas.
Para alguns analistas, a demora em um desfecho para o caso de Marielle Franco também abre brechas para violências de todo o tipo. “Algumas pessoas que radicalizaram esse processo pensam: se há o assassinato de uma vereadora no Rio, em plena intervenção federal, essas pessoas pensam, porque não posso atacar a caravana de um ex-presidente? Se um ministro do STF fala aqui que não se sente seguro, o que uma pessoa que não é ministro do STF vai sentir?”, observou o filósofo Marcos Nobre, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no programa Painel, veiculado pela Globo News em 1º de abril.
Ele segue o raciocínio: “As pessoas pensam que, se você está no interior de um sistema político, você está protegido. Se nem assim está protegido, a sensação de insegurança se espalha e com ela, a sensação de que é possível resolver os conflitos no mano a mano, sem o Estado”.
Investigação
A vereadora e o motorista dela, Anderson Pedro Gomes, foram mortos a tiros na noite de 14 de março, após uma perseguição pelas ruas do Rio de Janeiro. A investigação segue sob sigilo, sem divulgação de nenhum fato relevante. “Sabemos que quanto mais tempo transcorre, mais difícil fica, as provas desaparecem”, afirma Ignacio Cano, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“É uma urgência para o Rio e para todos nós não deixar impune esse crime. Não que a vida de Marielle valha mais que a de outras vítimas, mas se uma vítima com esse nível de visibilidade pode ser morta impunemente, então não há esperança para mais ninguém”, diz ele, que também é pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Por outro lado, há indícios de que o crime foi cometido por profissionais que tentaram não deixar rastros, prejudicando o trabalho policial. “Há um esforço, há uma equipe significativa dedicada a isso na polícia. Muitos comparam com o caso da juíza Patricia Acciolly, que levou dois meses para ser desvendado. Mas é uma urgência para o Rio, para todos nós, que se resolva logo”, acrescenta Cano.
Para Monteiro, os tiros à caravana e a morte de Marielle Franco criam um ambiente político muito tenso em um ano eleitoral. “É preciso identificar os responsáveis, sob pena de deixar a porta aberta para uma campanha que pode ser muito violenta e que pode causar mais mortes”, opina. Ele cita um estudo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio) sobre a morte de 79 políticos entre 2000 e 2016.
“A eleição passada já foi a mais violenta, porque é a característica das eleições municipais. Geralmente há um grupo do prefeito e um do ex-prefeito, que quer retomar o poder, são antagônicos, mas frequentam o mesmo espaço, o mesmo restaurante, porque não há outras opções. O clima de embate é muito grande”, relata, para reforçar que há sinais de que os confrontos serão fortes em 2018, nas disputas estaduais e federal.
Histórico
Para Monteiro, o cenário eleitoral é fruto da polarização política, que se acirrou a partir da eleição de 2006. “Ela começa a se formar em 1994, com a vitória de Fernando Henrique Cardoso e a criação de dois polos opostos entre PSDB e PT. Há uma diminuição no período de alternância, quando Lula chega ao poder e para surpresa de todos mantém o tripé macroeconômico, sem sobressaltos. Mas, com o mensalão, vem a primeira bala nesse sistema. Para se reeleger, Lula aposta na polarização, dizendo que Alckmin [então candidato do PSDB] iria privatizar tudo, criar um clima de nós contra eles. Ele se reelege, elege Dilma, ocorrem as jornadas de 2013, o descontentamento da classe média e a reeleição dela, já em momento de grande fadiga dos governos de esquerda”, enumera.
Depois dos tiros à caravana do Lula, Geraldo Alckmin afirmou que o PT estava “colhendo o que plantou”, declaração controversa que ele tentou justificar posteriormente, dizendo que não sabia do ocorrido. Na quarta-feira (4), o senador Alvaro Dias (Podemos-PR) disse que houve “provocação” do petista, e que o atentado pode ter sido encenado pela própria comitiva.
Declarações do tipo são condenadas por especialistas. “Todo mundo está colhendo o que plantou, de certa maneira. O PSDB questionou o resultado da eleição de 2014 e pediu auditoria das urnas, um fato inédito, que também contribuiu para o clima beligerante”, lembra Tadeu Monteiro. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acolheu o pedido, mas o relatório produzido pelo próprio partido e lido pelo plenário do órgão em 5 de novembro de 2015 não encontrou indícios de adulteração.
“Não podemos banalizar um ataque violento a qualquer candidato. Da mesma forma que foi muito grave a reação de algumas pessoas associando a Marielle ao crime organizado, espalhando mentiras. Enfim, se não conseguirmos respeitar os mortos, nem os comícios dos outros, a gente certamente vai pelo mal caminho”, observa Ignacio Cano.
Sem armas
Apesar dos discursos do MST e do PT, dificilmente haverá uma escalada da violência física, avaliam especialistas. Monteiro diz que as manifestações a favor de Lula estão refluindo. “Há uma fadiga nos partidários de Lula em função das derrotas seguidas e de um desencanto natural de quem acreditou na incorruptibilidade do projeto político personificado por Lula”, observa.
O economista e mestre em filosofia Joel Pinheiro da Fonseca faz a mesma leitura, mas por outros motivos. Para ele, apesar dos discursos de movimentos de esquerda, dificilmente alguém pegará em armas para defender Lula. “Não temos a cultura de pegar em armas para defender um político, um partido ou uma ideologia. Veremos, no máximo, alguns protestos e algumas paralisações de curta duração”, projeta.
Mesmo de um campo ideológico oposto ao de Lula e ao do PSol, Fonseca, palestrante do movimento liberal e libertário, defende as investigações sobre os dois casos, mas considera que o impacto de cada um no cotidiano é diferente.
“A morte de Marielle foi (provavelmente) política em outro sentido, um sentido que sempre existiu no Brasil: assassinato para garantir acesso a um recurso ou posição de poder. Não é resultado do clima de briga de torcida entre esquerda e direita, coxinhas e petralhas”, observa, em entrevista por escrito à Gazeta do Povo. De fato, na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, adversários políticos de Marielle elogiaram seu trabalho e prestaram toda a solidariedade à família dela, como nos discursos de Teresa Bergher (PSDB), Marcello Siciliano (PHS) e Fernando William (PDT), por exemplo.
Para Fonseca, é “importantíssimo” encontrar os assassinos da vereadora, mas ele avalia que a decisão do STF que negou o habeas corpus de Lula tem mais repercussão sobre a sensação de impunidade. “As pessoas estão muito indignadas com a capacidade aparentemente infinita de autoridades e poderosos corruptos escaparem da prisão. Manter a prisão em segunda instância está longe de resolver o problema, mas ao menos reduz um pouco o leque de subterfúgios dos condenados, seja de que partido forem”, afirma. Para ele, ainda não há um cenário de desordem no país. O cenário, porém, pode mudar, a depender dos desdobramentos no Judiciário.
Judiciário combativo dificulta pacto
Há um certo consenso de que o Brasil precisa de um “pacto nacional” para encerrar a escalada de violência. Algo parecido com o que o país vivenciou com o impeachment de Fernando Collor, em 1992, quando o vice-presidente, Itamar Franco, conseguiu governabilidade no Congresso para fazer ajustes e lançar o Plano Real em 1994. “Não há dúvida alguma de que se não tomarmos medidas e reagirmos, a democracia ficará mais e mais comprometida no Brasil”, afirma Ignacio Cano, do Fórum Brasileiro de Segurança.
“Tem que dizer em alto e bom som que é inaceitável qualquer forma de violência política, ainda mais quando se torna ato de homicídio, de execução. Isso não é inaceitável. A gente precisa dizer isso com clareza”, defendeu Marcos Nobre no programa Painel, da Globo News.
Uma dificuldade para esse grande acordo nacional é a rusga entre os poderes. A politização do Judiciário e a judicialização da política são duas situações que ocorrem no Brasil, segundo especialistas. Tadeu Monteiro, da Uerj, explica que isso é consequência direta da polarização política.
“Os opostos não têm margem de negociação. Qualquer concessão é vista como traição, o que acaba esvaziando a atividade política propriamente dita. O caminho é então ir aos tribunais, que atuam sob um fator de imprevisibilidade, já que os juízes julgam com base em suas convicções e jurisprudências, que não seguem a lógica da política”, destaca.
A possibilidade de o STF vir a rediscutir a prisão em segunda instância ou a de um ministro isolado tomar uma decisão polêmica é um agravante nesse momento. “O STF poderia ser essa instituição de mediar conflitos, mas o próprio se envolveu nesse conflito”, destaca Monteiro, acrescentando que o brasileiro perde o respeito pelo órgão ao ver tanto bate boca. “O televisionamento das sessões acirrou mais isso. Muitos brasileiros não sabem o nome dos 11 jogadores da seleção brasileira, mas sabem dos ministros do Supremo”, exemplifica.
Para o professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP) Conrado Hubner Mendes, o Supremo “semeou” uma situação que coloca a sociedade brasileira à beira do precipício, porque não tem conseguido diferenciar a interpretação jurídica do conflito político. “O STF semeou essa situação e não há decisão que venha a tomar, por mais bem fundamentada que possa estar do ponto de vista jurídico, que não desperte a sensação de casuísmo e arbitrariedade”, disse à Gazeta do Povo, antes do julgamento do habeas corpus de Lula.
Para ele, a multiplicidade de competências do STF atrapalha, mas o próprio tribunal contribuiu para “jogar gasolina no fogo”. “É um poder tensionador, quando se esperaria que fosse um poder moderador. Não há solução possível enquanto os ministros não reconhecerem que parte central desse problema são eles mesmos e sua forma individualista e anti-institucional de agir”, completa.