O veto do presidente Michel Temer à emenda na reforma política que determinava a suspensão de comentários ou publicações difamatórias nas redes sociais silenciou as acusações de tentativa de censura. Mas deixou sem solução um problema maior e ainda mais grave: a proliferação de usuários fake (falsos) e robôs nas redes sociais com o intuito de direcionar o debate eleitoral e político.
Já existem dados científicos que apontam o uso de robôs na internet para influenciar os humanos. O Departamento de Análise de Políticas Públicas (DAPP), da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), afirmou em estudo publicado em agosto deste ano que o uso de contas automatizadas se converteu em uma “potencial ferramenta para a manipulação de debates nas redes sociais, em especial em momentos de relevância política”.
Na greve geral de abril deste ano, cerca de 20% das interações ocorridas no Twitter entre os usuários a favor da greve foram provocadas por robôs ou fakes. Durante as eleições presidenciais de 2014, robôs também chegaram a gerar mais de 10% do debate, aponta a FGV.
Hoje, o uso de contas falsas e a atuação de robôs nas redes sociais é um problema que está longe de ser abordado e tende a se agravar ainda mais nas eleições de 2018. Autor da emenda vetada por Temer, o deputado Áureo (SD-RJ) afirmou que sua intenção com a proposta era evitar a proliferação de fake news durante o período eleitoral.
A emenda definia que candidatos ou partidos poderiam, sem necessidade de ordem judicial, denunciar e pedir suspensão por até 24 horas de publicações nas redes sociais com “discurso de ódio, disseminação de informações falsas ou ofensa em desfavor de partido ou candidato”, até que os responsáveis pela rede social comprovassem se tratar de usuário real.
Assunto precisará ser melhor debatido
Na visão da advogada Thais Novaes Cavalcanti, o assunto deverá ser abordado de outra forma e debatido mais amplamente no futuro. “O problema maior nessa emenda vetada é que além de impor um limite à liberdade de expressão, que a Constituição não permite, pode ser feita de forma discricionária sem passar pelo Judiciário. Nesse caso o maior problema é que ocorre sem se justificar e sem processo legal ou garantias legais. Tem de ter respeito ao processo”, avalia ela, que é professora de Ciência Política e Teoria Geral do Estado da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e Membro do Tribunal de Ética da OAB-SP.
“O erro maior, que todos nós temos de estar sempre alerta, é quando há uma restrição de liberdade. É estranho uma restrição de liberdade de expressão, ainda mais numa lei relacionada à eleição e ainda tirando a análise da Justiça. Quem vai analisar se é falso? O político? O partido? Estamos tirando do Judiciário esse poder e passando para qualquer um”, avalia.
A falta de regulamentação sobre o que é notícia falsa e outras questões que surgem com os avanços das redes sociais é um problema. O Marco Civil da Internet, de 2014, já tem lacunas e não prevê como se deve lidar com temas como esse. Na visão de Thais, a legislação precisará ser modernizada para prever pontos como esse, mas esse processo precisará de debate público.
Uso de robôs é comum
O estudo da FGV aponta que robôs e usuários fakes já estão influenciando o debate público. “Ao interferir em debates em desenvolvimento nas redes sociais, robôs estão atingindo diretamente os processos políticos e democráticos através da influência da opinião pública”, afirmam os pesquisadores.
Na eleição de 2014, o estudo analisou tuítes sobre o debate eleitoral entre os candidatos Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB). Foi identificada grande hostilidade nas conversas, e a análise da FGV apontou que os robôs foram culpados por grande parte dessa hostilidade: contas falsas e robôs chegaram a motivar 11,34% das discussões.
“Nas discussões políticas, os robôs têm sido usados por todo o espectro partidário não apenas para conquistar seguidores, mas também para conduzir ataques a opositores e forjar discussões artificiais. Eles manipulam debates, criam e disseminam notícias falsas, e influenciam a opinião pública postando e replicando mensagens em larga escala. Comumente, por exemplo, eles promovem hashtags que ganham destaque com a massificação de postagens automatizadas de forma a sufocar algum debate espontâneo sobre algum tema”, concluem os pesquisadores da FGV.
O (mau) exemplo que vem da Rússia
As publicações patrocinadas também estão no radar dos especialistas da internet. Na eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, usuários baseados na Rússia teriam comprado mais de 3 mil anúncios patrocinados para serem veiculados no Facebook e que teriam ajudado a direcionar a opinião pública dos Estados Unidos.
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Na semana passada, o Facebook anunciou que vai entregar ao Congresso norte-americano dados sobre esses anunciantes. Também estão em estudo pelo Facebook medidas para evitar direcionamento ou manipulação da opinião pública, como divulgar quem está pagando por um anúncio.
Já é possível identificar os fakes, afirma a FGV, de forma automática. Essas contas apresentam padrões de comportamento e sistemas conseguem identificar automaticamente humanos e robôs com base no padrão comportamental do perfil. O desafio é manter esses sistemas atualizados e alimentá-los com padrões de comportamento de humanos e de robôs.
Entidades denunciam censura, mas não apresentam propostas
Em resposta à emenda, as associações de comunicação e internet apontaram censura, mas não apresentaram propostas a serem debatidas. Blogueiros e ativistas ligados à esquerda criticaram o que chamaram de censura. Também foi ponto de crítica a permissão pela reforma eleitoral de posts patrocinados no Facebook, que reduzem a publicidade em outros veículos, como blogs e sites.
A bancada do PT na Câmara defendeu a publicação da emenda – que foi incluída no texto final pelo petista Vicente Cândido (SP) –, mas contraditoriamente elogiou o veto do presidente ao texto. “Ao votar favoravelmente à matéria, em nenhum momento se quis autorizar mecanismos de censura prévia, mas sim evitar ataques caluniosos e mentirosos comumente espalhados pelas redes sociais, com o uso de robôs pagos por poderosos interesses econômicos”, afirma o partido, em nota. “A bancada do PT defende o veto à proposta aprovada pelo Congresso nacional e conclama todos os setores da sociedade a debater mais o tema”.
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A Associação Brasileira de Internet (Abranet) afirmou “repudiar veementemente a emenda” e afirmar que apenas um juiz poderá definir o que é agressivo. Também foram contra a medida a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ), afirmando que somente um juiz pode determinar retirada de conteúdo em publicações.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) afirmou que a emenda configurava “censura explícita” em nível visto apenas durante a ditadura militar. “É factível imaginar dezenas de milhares de simpatizantes e apoiadores de uma candidatura denunciando todas as postagens dos partidários de outra. E vice-versa. Sites como o Facebook não teriam escolha senão suspender as postagens. O resultado seria um deserto informativo”, afirmou, em nota.
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