O Supremo Tribunal Federal (STF) impôs nesta quinta-feira (14) a primeira derrota significativa à Lava Jato em cinco anos de operação ao definir que compete a Justiça Eleitoral julgar crimes comuns que tenham relação com crimes eleitorais, como caixa 2. Com isso, muitos casos em investigação pela força-tarefa em Curitiba podem acabar remetidos à Justiça Eleitoral e não à Justiça Federal, como vinha acontecendo.
Os ministros julgaram um recurso relacionado ao inquérito que investiga o ex-prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), e o deputado federal Pedro Paulo Carvalho Teixeira (DEM-RJ) pelo suposto recebimento de R$ 18 milhões da Odebrecht para campanhas eleitorais.
A decisão do STF, embalada pelo voto do relator, o ministro Marco Aurélio, é de que todos os crimes comuns, como corrupção e lavagem de dinheiro, por exemplo, devem ser remetidos para investigação e processamento na Justiça Eleitoral.
O resultado final decepcionou a força-tarefa da Lava Jato, que fez uma intensa campanha nas redes sociais por um resultado contrário. Os procuradores defendiam que as investigações deveriam ser desmembradas: crimes comuns na Justiça Federal e crimes eleitorais nos tribunais eleitorais. O argumento, endossado pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, era de que a Justiça Eleitoral não tem estrutura para julgar casos complexos, além de ser formada por membros temporários e sofrer forte pressão política.
LEIA TAMBÉM: Toffoli abre inquérito para investigar ataques ao STF após críticas da Lava Jato
Ao deixar a sessão, Marco Aurélio conversou com a imprensa e negou que o resultado vá ferir a Lava Jato de morte, como alega a força-tarefa. “Significa o fortalecimento. Ou seja, se acentuou que deve haver a persecução criminal. Aqueles que cometeram desvios de conduta precisam pagar pelo desvio de conduta, mas observando-se o Estado Democrático de Direito. E no Estado Democrático de Direito o meio justifica ao fim e não o fim ao meio. E não temos apenas os juízes que capitaneiam em primeira instância a Lava Jato”, disse o ministro.
A declaração de Marco Aurélio resume o tom adotado pelos ministros ao longo do julgamento, que foi marcado por uma reação às críticas pesadas que foram direcionadas por procuradores da Lava Jato ao STF. “Eu acho que inclusive alguns segmentos além da Lava Jato, daqueles que participam da operação Lava Jato, esqueceram que nós estamos em uma República e não podemos desqualificar uma instituição como o Supremo” disse Marco Aurélio.
É o fim da Lava Jato?
Após o final do julgamento, a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba informou que a força-tarefa não iria se manifestar, mas o coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, usou as redes sociais para repercutir o resultado. “Hoje, começou a se fechar a janela de combate à corrupção política que se abriu há 5 anos, no início da Lava Jato”, escreveu.
O ministro da Justiça, o ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro, também se manifestou sobre o resultado. “Respeitamos a decisão do STF, mas persistimos no entendimento de que a Justiça Eleitoral, apesar de seus méritos, não está adequadamente estruturada para julgar casos criminais mais complexos, como de corrupção ou lavagem de dinheiro. Mas a decisão do STF será, como deve ser, respeitada”, declarou Moro.
A deputada federal Carla Zambelli (PSL) acompanhou o final do julgamento e lamentou a decisão tomada pelos ministros. “Pode ser o fim da Lava Jato”, disse a parlamentar. “Eles optaram pela tese que retira da Lava Jato praticamente todos os processos e isso mostra o tipo de Supremo Tribunal que temos hoje”, disse.
LEIA TAMBÉM: PSOL e PT esquecem diferenças e viram ‘melhores amigos’ no Congresso
Segundo Marco Aurélio, porém, a decisão do STF não significa o fim da operação. Para ele, as investigações conduzidas pela Lava Jato não serão anuladas a partir da decisão do Supremo. “Esses elementos que servem à instrução criminal podem ser aproveitados. Sentenças sim, essas podem ser afastadas ante a incompetência absoluta do órgão que a prolatou. As investigações seguem inabaláveis”, garantiu o ministro, reconhecendo que a decisão pode levar a anulação de condenações.
Em tese, isso só ocorreria se ficar entendido que o juiz federal julgou alguém pelo crime de caixa 2, por exemplo, o que atrairia a competência da Justiça Eleitoral.
Cenário não é de apocalipse, dizem advogados
Advogados que acompanharam o julgamento garantem que o cenário não é do fim da Lava Jato, como afirmam os procuradores. “No final das contas, a força-tarefa, alguns membros dela, sustentava que se a operação saísse das mãos deles, esses casos não terão continuidade. Tinha ali uma disputa de poder”, ressalta o advogado especialista em direito penal e direito processual penal, João Rafael Oliveira.
O diretor do Instituto dos Advogados do Paraná e professor da Faculdade de Direito da UFPR, Guilherme Brenner Lucchesi, ressalta que casos da Lava Jato podem eventualmente ser anulados pela decisão proferida pelo Supremo nesta quinta-feira (14), mas isso não vai acontecer de forma automática.
“Acredito, e isso é um prognóstico, é bastante provável que a partir de agora a força-tarefa e a própria Justiça Federal comecem a tomar mais cuidado com essa questão da competência para que um caso que possa ter potencial prática de crime eleitoral tramite primeiramente na Justiça Eleitoral”, ressalta Lucchesi.
LEIA TAMBÉM: EUA podem declarar o Brasil um ‘aliado extra-OTAN’. O que isso significa?
“O que é um pouco mais difícil de prever é o que acontecerá em relação aos casos que já estão em tramitação. Dependendo da fase em que o processo se encontrar isso poderá variar”, explica o professor da UFPR. “Se houver uma decisão judicial proferida por um juiz incompetente, essa incompetência é absoluta e a decisão proferida por juiz incompetente é nula. Se isso for uma diligência investigativa, uma medida probatória, essa busca e apreensão é nula e os fatos também são nulos. Passa a ser uma prova obtida por meios ilícitos e não pode ser reaproveitada.A prova que você obteve a partir de uma prova ilícita também é ilícita”, explica.
No caso de prisões decretadas por juízes federais, se houver conexão com crimes eleitorais, elas também podem ser revistas, segundo Lucchesi. O mesmo acontece se uma denúncia contendo acusações de crimes eleitorais tiver sido aceita por um juiz federal. Nesse caso, o processo deve ser arquivado e enviado à Justiça Eleitoral.
“Se você tem uma condenação proferida por juiz incompetente essa condenação é nula. Você vai precisar analisar se as provas também não estão maculadas por uma ilicitude, isso pode fulminar um caso. Os efeitos são realmente perigosos”, explica Lucchesi.
LEIA TAMBÉM: Lava Jato esclarece 27 questões sobre fundo bilionário; procurador diz que Dodge ‘entendeu errado’
O professor esclarece, porém, que esse efeito não é automático e não vai valer para todos os casos da Lava Jato. “Não basta que haja a alegação por parte da defesa de que houve um crime eleitoral praticado concomitantemente com um crime comum”, explica. “É necessária que haja apuração para ver se o crime eleitoral foi de fato praticado”, completa.
Exageros à parte
Para Lucchesi, a argumentação da força-tarefa é exagerada. “[O resultado do julgamento no STF] Não põe fim à operação. A operação pode continuar”, garante o advogado.
“O que deve acontecer, havendo essa comprovação [de crimes eleitorais cometidos] nos autos, é anulação do processo e encaminhamento disso para Justiça Eleitoral. Isso não impede que o juiz ratifique determinados atos, mas atos decisórios serão anulados”, explica Oliveira. O advogado também ressalta que cada caso deverá ser analisado separadamente. “Cada caso vai ser examinado pormenorizadamente”, diz.
“Tem que ter uma comprovação razoável de que a verba de corrupção ou a verba que foi lavada era para fins eleitorais. Tem que ter demonstração de caixa 2 eleitoral. Não é uma mera alegação por parte do acusado que vai encaminhar o caso para a Justiça Eleitoral”, explica Oliveira.
Para o advogado, o julgamento no STF não é motivo para temer que a Lava Jato chegue ao fim. “O motivo para pânico é o desrespeito com a previsão legal que já se conhecia”, defende. “Como que toca-se um procedimento criminal tendo conhecimento de que futuramente pode ser anulado? O problema é justamente não cumprir as regras. O estado não pode passar por cima das regras para atingir um objetivo, mesmo que seja o combate à corrupção. Em um Estado de Direito, os fins não legitimam os meios”, defende Oliveira.