23 de outubro de 2017 será lembrado como o dia em que o Brasil saiu do atoleiro. O dia em que o país descobriu, entre surpreso e aliviado, que seu principal problema fiscal simplesmente não existe. Que uma das principais razões para o rombo das contas públicas – que tem levado o governo a aumentar impostos e cortar investimentos e serviços públicos – é, na verdade, uma ilusão.
Quem despertou o país do pesadelo foram os senadores da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Previdência Social. Está na página 191 do relatório final da CPI do Senado, apresentado nesta segunda-feira de desafogo: “Tecnicamente, é possível afirmar com convicção que inexiste déficit da Previdência Social ou da Seguridade Social”.
Os números oficiais – que têm o aval do Tribunal de Contas da União (TCU) – indicam que, no ano passado, o INSS teve um rombo de R$ 138 bilhões. Na previdência dos servidores públicos da União, o déficit foi de R$ 77 bilhões. E, no conjunto da Seguridade Social (que reúne Previdência, Saúde e Assistência Social), o governo aponta um saldo negativo de R$ 257 bilhões. Números que, segundo o Planalto, vão piorar em 2017 e pelos anos seguintes.
Mas o documento final da CPI assegura que não só não existe déficit hoje como provavelmente não haverá no futuro, porque as projeções de envelhecimento da população usadas pelo governo são “exageradas” e subestimam o crescimento econômico que o país pode ter no futuro.
“Tais falhas exacerbam a previsão futura de necessidade de financiamento da previdência, o que não condiz com a realidade dos fatos”, aponta o texto do relator Hélio José (Pros-DF). “São absolutamente imprecisos, inconsistentes e alarmistas os argumentos reunidos pelo governo federal sobre a contabilidade da Previdência Social, cujo o objetivo é aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 287, de 2016.”
Em outras palavras, não há por que reformar a Previdência Social. Como uma boa notícia nunca vem desacompanhada, a CPI concluiu também que há espaço para reajustar imediatamente o teto do INSS em quase 70%, dos atuais R$ 5.531 para R$ 9.370, segundo a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) sugerida ao fim do relatório. O valor proposto equivale a dez salários mínimos, tal como em 1991, quando foi regulamentado o Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Quer dizer: acordamos do pesadelo e caímos num conto de fadas.
À primeira vista, os números superlativos da CPI fazem supor que suas conclusões são inatacáveis. Em pouco mais de seis meses, os senadores da comissão realizaram 26 audiências públicas, com gente de todos os lados e interesses. Mais de 140 pessoas falaram à CPI, entre deputados, auditores fiscais, professores, especialistas da área e representantes do governo, de sindicatos, associações, empresas e ainda do Ministério Público e da Justiça do Trabalho.
O que chama atenção é que os senadores ouviram tanta gente e gastaram tanto tempo e recursos públicos para chegar à mesma conclusão que o presidente da comissão, Paulo Paim (PT-RS), alardeia desde sempre. Uma certeza baseada no que dizem os autores da tese da “farsa do déficit”, em especial a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita (Anfip) e a economista Denise Lobato Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
ENTENDA: O rombo da Previdência é mesmo uma farsa?
Resumidamente, o que Paim, Anfip e Denise Gentil sempre defenderam é que não se pode olhar isoladamente para a Previdência Social, e sim para todas as receitas e despesas do conjunto da Seguridade Social – que, além de aposentadorias e pensões, engloba a Saúde e Assistência Social. Seguridade que, pelos cálculos deles, sempre foi superavitária.
São cálculos muito particulares, é verdade. Eles deliberadamente omitem a previdência dos servidores da União, cujo déficit é coberto pelo mesmo contribuinte que ajuda a tapar o rombo do INSS. Também desconsideram a desvinculação de receitas da Seguridade. E, por fim, contabilizam como receitas as desonerações de contribuições sociais, isto é, recursos que nem sequer foram arrecadados e que, portanto, não existem.
Mas o mais curioso é que mesmo nessa contabilidade paralela, que supostamente corrige todos os erros, omissões e maldades dos dados oficiais, a Seguridade Social passou a ser deficitária em 2016. Sim: o relatório final da CPI, que conclui que nem Previdência nem Seguridade são deficitárias, traz em sua página 66 um quadro em que a própria Anfip aponta um déficit de R$ 57 bilhões na Seguridade Social no ano passado.
Cedo ou tarde isso ia acontecer. O superávit da Seguridade medido pela contabilidade imaculada da Anfip começou a cair em 2013, antes do início da recessão. Diminuiu mais em 2014, quando o desemprego recuou ao menor nível da história e o mercado de trabalho formal ainda estava contratando – ou seja, o número de contribuintes da Previdência estava subindo. Continuou recuando em 2015 até que, no ano passado, finalmente entrou no vermelho.
Mas, para a Anfip, a explicação toda está na crise econômica, que reduziu o número de contribuintes. E não tem nada a ver com o envelhecimento da população, que faz o número de aposentados crescer acima de 3% ao ano.
O relatório da CPI da Previdência acerta ao apontar os problemas históricos na gestão da Previdência, as renúncias bilionárias gentilmente concedidas pelo governo e o deficiente combate à sonegação e à inadimplência. Menciona a dívida acumulada por estatais que não recolhem as devidas contribuições e a leniência do governo com as empresas devedoras.
Cita, é claro, a assombrosa dívida de mais de R$ 400 bilhões que o INSS tem a receber. A maior parte dela jamais será paga porque pertence a empresas extintas como Vasp, Varig e Transbrasil, mas o documento acertadamente destaca os débitos de companhias pujantes como a JBS, que tem R$ 2,4 bilhões inscritos na Dívida Ativa, e os infindáveis programas de parcelamento – como o Refis recém-aprovado – que só estimulam a inadimplência.
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Dito isso, no entanto, as conclusões do relatório são de um escapismo singular. Se por apenas um momento os senadores deixassem de lado a obsessão pelo resultado contábil, notariam que, com ou sem déficit, o Brasil já gasta com Previdência mais que países como Alemanha e Japão. Que têm proporcionalmente o triplo de idosos em sua população.
Se até isso parecer normal e adequado, é porque estamos mesmo em um conto de fadas.