João Doria Júnior se elegeu para a prefeitura de São Paulo em 2016 afirmando ser um gestor, e não um político. Seu pai não poderia dizer o mesmo. Nascido em 1919, o baiano de Salvador João Agripino da Costa Doria era deputado federal do Partido Democrata Cristão (PDC) quando o regime militar assumiu o controle sobre o Brasil, em 1º de abril de 1964. Ele foi cassado nove dias depois, perdeu os direitos políticos por dez anos e optou por deixar o país.
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Com a ajuda de Ulysses Guimarães, o deputado entrou na embaixada da Tchecoslováquia em Brasília com a esposa Maria Sylvia Vieira de Moraes Dias e os dois filhos, João Doria Junior, de seis anos, e Raul, de um ano. Dali todos seguiram para o Rio de Janeiro, onde pegaram um voo para a França. A família viveu em Paris entre 1964 e 1966. Enquanto o pai estudava psicologia na Universidade Sorbonne, sustentava a todos vendendo, um a um, os quadros de sua coleção de pinturas de Di Cavalcanti, que Maria Sylvia havia arrancado das molduras e levado consigo para a Europa. “Estudei numa escola pública que era ao lado da minha casa”, lembra o atual prefeito de São Paulo.
“Eu me lembro de toda vez que ia com a minha mãe para a praça da Sé renovar o empréstimo na Caixa para pagar a conta de luz e comprar a pouca comida que tínhamos em casa.”
Quando o dinheiro acabou, o pai ficou na Europa – temia ser preso se voltasse. Acabou cursando mestrado, também em psicologia, na Universidade de Sussex, na Inglaterra. Mas a mãe retornou com os meninos. Instalada em São Paulo, ela empenhou suas joias e abriu uma pequena fábrica de fraldas de pano numa garagem em Pinheiros. “Minha mãe sofreu muito, porque não teve apoio da família dela, ao contrário. A família se afastou”, lembra João Doria Júnior. “Várias vezes nós ficamos sem luz em nossa casa”.
Joias no prego
Maria Sylvia se viu presa a um círculo vicioso: empenhava as joias que lhe haviam sobrado (uma aliança, um anel, dois pares de brinco e duas gargantilhas) no setor de custódia da Caixa Econômica Federal na praça da Sé, no centro de São Paulo. Usava o dinheiro para pagar as contas e fazer compras. Depois buscava dinheiro com agiotas e resgatava as joias. Até que precisasse empenhá-las de novo. “Eu me lembro de toda vez que ia com a minha mãe para a praça da Sé renovar o empréstimo na Caixa para pagar a conta de luz e comprar a pouca comida que tínhamos em casa”, lembra Doria filho.
O atual prefeito de São Paulo trocou o Colégio Rio Branco, onde estudava antes do golpe militar, por uma escola pública, a Escola Estadual Professora Marina Cintra. Aos 13 anos, o garoto começou a trabalhar organizando negativos fotográficos numa agência de publicidade de que seu pai havia sido diretor, a Standard. A família vivia numa casa simples em Pinheiros. Antes do exílio, todos moravam numa mansão no Pacaembu.
O pai só retornou ao Brasil em julho de 1974, depois que a pena de dez anos de cassação de seus direitos políticos havia expirado. Logo em agosto, Maria Sylvia morreu vítima de pneumonia. “Ganhei de volta meu pai e perdi a minha mãe”, diz o prefeito.
“Fui contra a ideia da candidatura do meu irmão. Estávamos criando nossos filhos dentro da melhor qualidade de vida que se pode desejar. E minhas lembranças do mundo político são traumáticas. Mas hoje confesso que errei: Nunca vi meu irmão tão feliz na vida.”
A volta do patriarca deu início a um período de estabilidade financeira para a família. João pai abriu um uma editora e inaugurou no Brasil o Instituto Mind Power, que ainda hoje divulga uma série de técnicas de meditação e combate ao estresse. Morreu em São Paulo, em 2000, aos 81 anos. Nesta época, seu filho homônimo havia enriquecido com suas empresas de eventos do Grupo Doria. Já Raul abriu uma produtora de publicidade e cinema em 1994 – a companhia é responsável por anúncios da Cacau Show, das Havaianas, da Volkswagen e da cerveja Bohemia e pelo documentário Coração Vagabundo, sobre Caetano Veloso.
Dia dos namorados
João pai tem origens nobres. Os Costa Doria chegaram ao Brasil em 1549, na esquadra que trouxe a Salvador o primeiro governador geral, Tomé de Souza. Seu avô chegou a ser vereador e prefeito de Salvador entre outubro e novembro de 1895. Sua mãe pertencia ao tradicional clã dos Barbosa de Oliveira; era descendente do padre jesuíta Antonio Vieira e prima do jurista baiano Rui Barbosa.
Além de político da ala mais à esquerda do Partido Democrata Cristão, João era publicitário de sucesso. Viveu em Salvador, onde atuou como revisor e jornalista, até 1942, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Lá trabalhou no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) até se tornar, em 1944, redator da Standard Propaganda S.A. No ano seguinte assumiu a direção da filial em São Paulo. Foi ali que criou o Dia dos Namorados em 1948.
Incentivado pelo sucesso recente do feriado do Dia das Mães, que existia fazia décadas mas só então vinha se tornando um grande acontecimento comercial, João lançou uma campanha para um de seus clientes, a rede de lojas Exposição – Clíper. “Não se esqueçam: amor com amor se paga”, dizia o texto. E vinculava o Dia dos Namorados a 12 de junho, véspera da celebração de Antônio, o santo casamenteiro.
Em 1951, abriu sua própria agência, a Doria Associados Propaganda. Fez sucesso e fortuna, que usou para comprar um Cadillac e investir os lucros, principalmente em obras de arte. Em 1958, começou a vida na política ao cuidar da comunicação da campanha vitoriosa do industrial Cid Sampaio para governador de Pernambuco. Dois anos depois, trabalhou na campanha do candidato à presidência Juracy Magalhães. Nesta fase, João voltou a se instalar em Salvador, ao menos em parte do ano. E se mostrou um pioneiro do marketing político. Para contrabalançar o símbolo do adversário Janio Quadros, uma vassoura, ele criou o slogan: “A UDN não precisa de vassoura. Juracy é limpo”.
João Dólar
Em 1962, resolveu se candidatar a deputado federal. O ex-deputado baiano Domingos Leonelli, hoje com 71 anos, lembra do jingle da campanha de Doria ainda hoje: “Vitória com João Doria, deputado federal. João Doria é a vitória da justiça social”, canta ao telefone. O candidato fez marketing político de qualidade muito antes de esse termo existir. “Ele lançou uma campanha inusitada para a época, com cartazes bonitos, folhetos, botons, tudo de muita qualidade”, diz Leonelli.
“Era um homem bonito, elegante. Visitou a minha casa, mesmo eu apoiando outro candidato, e deixou a todos encantados.” Sua campanha chamou a atenção, e a suspeita popular de que ele estava investindo muito dinheiro para se eleger fez João ganhar a alcunha de “João Dólar”. Ao perceber que não conseguiria se descolar do apelido, pediu que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) aceitasse as cédulas em que o eleitor tivesse escrito “João Dólar” como seu candidato.
João espalhou pela cidade uma sequência de cartazes. Primeiro, “João Doria vem aí”. Semanas depois, “João Doria vai chegar”. Perto da votação, “João Doria chegou”. Não venceu, mas acabou levando a vaga de suplente. Em junho de 1963, assumiu o posto em Brasília. Rapidamente se posicionou a favor do presidente João Goulart e de suas reformas de base, que previam mudanças econômicas e sociais drásticas, incluindo as reformas agrárias, fiscal e educacional. “Ele dizia que era um progressista e comprovou isso em Brasília”, afirma Leonelli.
“A partir desta data, o Brasil deixa de ser Estados Unidos do Brasil e passa a ser Brasil dos Estados Unidos.”
Foi um dos iniciadores da CPI que investigou o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), uma organização financiada com dinheiro estrangeiro e que apoiava candidatos de direita. Aliás, todos os membros dessa CPI seriam cassados pelo AI-1: Doria pai, Rubens Paiva, Benedito Cerqueira, Eloy Dutra e José Aparecido.
Nessa época, Doria pai bateu boca com o colega Antonio Carlos Magalhães. Quando, no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, no início de 1964, ACM insinuou que o publicitário havia sido beneficiado com verbas do presidente Juscelino Kubitschek e relembrou do antigo apelido João Dólar, o publicitário partiu para cima. Teve que ser contido pelos colegas.
Em 1964, recém-cassado e antes de sair para o exílio, ele chegou a elaborar uma brincadeira com amigos políticos: eles escreveram e divulgaram um Ato Institucional 2, com 12 artigos, o primeiro sendo: “A partir desta data, o Brasil deixa de ser Estados Unidos do Brasil e passa a ser Brasil dos Estados Unidos”. O jornalista Carlos Heitor Cony publicou um artigo citando a bravata no jornal Correio da Manhã e por isso foi preso.
Viúvo, João pai se casou com Tânia Pereira Henrique Doria, com quem teve outros dois filhos, Raphael e Marcelo. Casou-se ainda uma terceira vez, com Maria Teresa Doria.
Vida pública
De certa forma, o próprio João filho também não pode dizer que não é político. Na verdade, apesar de não ter participado de eleições antes de 2016, ele ocupou cargos executivos durante os anos 1980. Entre 1983 e 1986, foi secretário de Turismo do município de São Paulo e presidente da Paulistur. E, na gestão de José Sarney na presidência, foi presidente da Embratur e do Conselho Nacional de Turismo. Acabou ficando mais conhecido como o apresentador do programa Sucesso, na TV Bandeirantes. Por dois anos, em 2010 e 2011, apresentou o reality show O Aprendiz, da TV Record. É autor de livros de autoajuda, como Sucesso com Estilo.
Doria filho superou disputas internas do PSDB, partido ao qual é filiado desde 2000, para se tornar pré-candidato a prefeito da maior cidade do Brasil. Vive numa casa de 3300 metros quadrados de área construída, dentro de um terreno de mais de 7 mil metros quadrados, no bairro Jardim Europa. O pai não viu o sucesso nas eleições, mas acompanhou sua passagem por cargos públicos nos anos 1980. “Ele sempre teve muita grandeza na política, em pensar e defender o Brasil”, diz o prefeito. “Certamente, se estivesse vivo, estaria me orientando.”