“Ih, na Rocinha eu não subo, não”, diz o taxista receoso de entrar na maior favela brasileira, há uma semana palco de uma guerra pelo poder local travada por traficantes que atendem por apelidos como Nem, Rogério 157, Snoopy, Marrento e Vampeta.
É noite de sábado (23) quando, na garupa de um mototáxi que cobra R$ 3 pela corrida, a reportagem percorre a comunidade na zona sul carioca onde moram 70 mil - a maioria sem outra opção a não ser subir, sim, ruas que ficaram na linha cruzada de tiroteios e balas perdidas nos dias anteriores.
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Desde a semana passada, os confrontos já provocaram sete mortes e resultaram na prisão de 11 pessoas, além da apreensão de 19 fuzis. Na sexta-feira (22), dia mais tenso, as disputas espalharam pânico pela cidade e levaram ao envio de 950 homens das Forças Armadas para cercar o entorno da favela. A Rocinha teve um dia de aparente calma neste domingo (24) - apenas uma rápida troca de tiros foi registrada no fim da tarde, sem feridos.
A escalada da violência levou o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) a anunciar que enviará à Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) proposta para a criação de um fundo de segurança pública com dinheiro dos royalties do petróleo dos campos do pré-sal.
‘Como fica’
“Desde que os ‘fardado’ chegaram tá tudo uma belezinha”, diz a esteticista Fátima, 28, expelindo ironia e bafo de pinga dos lábios pintados com batom roxo, os amigos cantando em sua direção o funk “Ela É Top” (“ela não anda/ela desfila”). “Mas aí eles vão embora, a ‘Globo’ vai embora, e a gente fica como?”
Como Fátima, a vendedora Célia, 40, prefere não dar sobrenome, “porque nunca é bom ser o boi com nome”. E, como a caçula, comunga da ideia de que “é só paliativo” o efetivo de 950 homens das Forças Armadas um dia antes.
“A opinião da maioria é que foi tudo feito nas coxas por causa do Rock in Rio. Se para a autoestrada Lagoa-Barra, para o Rio. E se não tem festival, tem prejuízo. Não vemos o intuito ‘vamos ajudar os pobres’, e sim ‘deixe que eles se matem, a gente pega os corpos depois.”
No dia anterior, a troca de tiros na região levou a polícia a interditar por quatro horas a via, principal ligação entre as zonas sul e oeste, onde acontecia o festival.
Célia fala com a reportagem por telefone, pois está no trabalho: uma loja que vende peças a partir de centenas de reais, num dos shoppings queridinhos da elite carioca, vizinho à Rocinha. Mas, ultimamente, as moscas são as mais habitués do Fashion Mall, diz a vendedora. “Olha, estamos escassos de clientela.”
Curioso é que Célia nunca se sentiu tão à vontade para “ostentar joias” (se as tivesse). “Até brinquei que estou no metro quadrado mais seguro do Rio”, diz sobre a presença do Exército nas redondezas.
Pior do que o medo real é o imaginário, afirma. “No meio de tudo tem uns 2.500 boatos. A gente vai comprar pão e fica ouvindo muita coisinha. Tipo, alguém diz que vão começar a dar tiros tal hora, você compra vela, porque a bala vai acertar o transformador, aí vai acabar a luz.” O rumor não vingou.
A boataria se esparrama pela cidade. Em Ipanema, a dona de casa Maria Lins, 59, diz ter “ouvido falar” que a “bandidagem” tinha planos de começar uma onda de sequestros a filhos de “gente de grana”. Seria uma compensação pelo rombo do tráfico em suspenso na Rocinha, especula enquanto toma uma lata de “lifting colágeno”, bebida sabor abacaxi e hortelã. A polícia desconhece tal estratégia.
Do outro lado do Rio, perto da comunidade da Mangueira, uma senhora formula uma teoria amarga enquanto espera o início do Cosme e Damião, festa à base de doces típica de religiões afrobrasileiras.
Ela, que mora na Barra, tem “cer-te-za” que traficantes impuseram toque de recolher a escolas próximas à Rocinha, como a Parque e a Americana, com mensalidades que podem ultrapassar R$ 5.000 ambas cancelaram as aulas de segunda-feira (25), mas dizem tê-lo feito em caráter preventivo.
Moradores da favela mostram ressentimento com a mídia, que daria menos destaque a eles e mais às consequências nos arredores ricos. “É a PUC que pariu!”, diz Fátima. Na sexta, a universidade em questão, na vizinha Gávea, teve aulas suspensas.
Boa viagem
As operações policiais continuaram no domingo (24), com apreensão de um fuzil AK 47 e um tiroteio sem feridos. Já a rotina na favela aos poucos volta ao normal.
O hotel Boa Viagem, que recebeu a reportagem por R$ 90 a diária, “tem quatro hóspedes para chegar amanhã [domingo]”, celebra Roberto, da recepção.
Enquanto comem um X-Tudo, dois jovens comentam a “Babado”, festa LGBT “que vai tombar a Rocinha”, e brincam que vão mandar um “oi, sumido” para o WhatsApp do prefeito Marcelo Crivella, que demorou para se pronunciar sobre o confronto local.
Cultos de um templo da Igreja Mundial do Poder de Deus foram retomados, assim como os de uma Assembleia de Deus cujo muro ostenta o piche “felicidade sempre!”, onde se encostavam na noite de sábado militares com cara de poucos amigos.
Ali perto, dois amigos falam sobre a rixa que contrapõe grupos dos traficantes Antônio Bonfim Lopes, o Nem, e seu ex-guarda costas e sucessor Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157.
Preso desde 2011, Nem legou seu poder à esposa, Danúbia Rangel, que nas redes sociais já se comparou a Bibi Perigosa (personagem de Juliana Paes na novela “A Força do Querer”). Há tensão entre ela e Rogério 157.
A dupla de amigos se diz “time Nem”, por acreditar que o traficante “mandava bem” para a Rocinha, “pagava até funeral de morador, não deixava menor cheirar”, enquanto seu rival “esculacha”.
O motorista Anderson da Silva, 26, compara: na comunidade onde mora, a poucos quilômetros dali, o botijão de gás sai por R$ 55, e na Rocinha sob domínio de Rogerinho “meus ‘brothers’ pagam R$ 93”. Uma hora o barril explode.
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