Há duas semanas, em São Luís (MA), governadores do Nordeste lançaram um consórcio que reúne os nove estados de região e divulgaram uma carta com duras críticas a duas bandeiras da gestão do presidente Jair Bolsonaro, a reforma da Previdência e a flexibilização das regras para a posse de armas.
Dois dias depois, em Belo Horizonte (MG), movimento semelhante reuniu governadores do Sudeste e do Sul. Eles também anunciaram um consórcio e se manifestaram sobre questões da esfera federal. Mas, na mão oposta das declarações dos líderes do Nordeste, a pauta principal foi a da defesa “incondicional” da reforma da Previdência.
A divisão política mostrada pelos governadores, com Nordeste de um lado e Sul e Sudeste do outro, reforça um cenário que o Brasil tem vivenciado nas eleições nacionais e que deve se manter nos próximos anos.
As propostas
A aliança dos governadores nordestinos – formalmente batizada de Consórcio Nordeste – busca a aproximação para soluções conjuntas em campos como educação, desenvolvimento econômico e ciência e tecnologia, entre outros. O governador da Bahia, Rui Costa (PT), foi escolhido o presidente do bloco, e cumprirá mandato de um ano na função.
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“A formação do consórcio foi um marco importante para a região. É uma proposta que traz uma modalidade nova de gerenciamento e gestão e afirma uma região que busca por mais investimentos, por mais atenção, e por caminhos para superar a desigualdade”, disse a vice-governadora de Pernambuco, Luciana Santos (PCdoB).
Em relação à reforma da Previdência, o texto dos gestores diz: “posicionamo-nos em defesa dos mais pobres, tais como beneficiários da Lei Orgânica da Assistência Social, aposentados rurais e por invalidez, mulheres, entre outros, pois o peso de déficits não pode cair sobre os que mais precisam da proteção previdenciária”. Há ainda críticas ao modelo de capitalização, que está inserido na proposta da reforma apresentada pelo governo Bolsonaro ao Congresso Nacional.
O ataque à mudança na política de acesso a armas evoca o assassinato da vereadora Marielle Franco e o massacre de Suzano, ocorrido um dia antes do encontro dos governadores. “Defendemos o atual Estatuto do Desarmamento e somos contrários a regras que ampliem a circulação de armas, mediante posse e porte de armas. Tragédias como o assassinato da vereadora Marielle e a de Suzano, no Estado de São Paulo, mostram que armas servem para matar e aumentar a violência na sociedade”, relata a carta.
Já os governadores do Sul e do Sudeste também mencionaram a questão da infraestrutura, que, segundo os gestores, pode ser intensificada com parcerias. “Poderemos investir em infraestrutura, portos, aeroportos, atrair mais investimentos para gerar empregos e mais renda. Isso vai se refletir também nos parlamentares e estaremos irmanados com o objetivo de desenvolver ainda mais o nosso país”, disse, na ocasião, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). A temática da segurança foi abordada com a ideia de aprimoramento da fiscalização nas fronteiras estaduais.
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A reforma da Previdência foi defendida principalmente pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), e pelo de São Paulo, João Doria (PSDB). Zema apontou que “essa reforma antecede qualquer outra” e Doria disse que “não há como o Brasil pensar em crescimento, em geração de empregos e oportunidades, se não discutirmos e aprovarmos a reforma da Previdência”.
Embora presente no encontro, o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), foi a voz destoante. Ele disse que defende a realização de uma reforma, mas não necessariamente com o projeto apresentado pelo governo Bolsonaro. No Congresso Nacional, seu partido faz oposição ao Palácio do Planalto.
Para o cientista político David Fleischer, professor da Universidade de Brasília (UnB), a oposição entre as propostas apresentadas pelos blocos de governadores aponta um descompasso entre “ideologia e pragmatismo”.
“O Flávio Dino [governador do Maranhão, do PCdoB] é comunista, tem uma linha ideológica de combate às propostas desse governo. Já do outro lado existem dois estados quebrados: Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Esses dois estão passando por dificuldades fiscais de muita magnitude. Então os governadores acabam compreendendo que a decisão mais pragmática é apoiar a reforma da Previdência”, destacou.
Críticas
A formação dos blocos, como esperado, rendeu críticas dos políticos que integram os grupos ideológicos distintos.
A vice-governadora Luciana Santos acredita que a criação do consórcio do Sudeste e do Sul mostra que os governadores “acusaram o golpe”. “Eles acabaram passando um grande recibo. Perceberam que nós, do Nordeste, criamos uma iniciativa de grande peso e se sentiram obrigados a reagir. Mas o ato deles perde força porque foi executado apenas para revidar, e não para representar uma necessidade de articulação”, atacou.
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Já o deputado federal Filipe Barros (PSL-PR), do partido de Jair Bolsonaro, chamou os governadores do Nordeste de “irresponsáveis”. “A pauta da previdência não é do PSL, não é do governo, é do Brasil. Ou nós aprovamos a reforma ou o Brasil ficará sem dinheiro para segurança, saúde e educação. Os governadores estão sendo politiqueiros, buscando qualquer motivo para criticar o Bolsonaro”, contestou.
Impactos no Congresso
Os atos dos governadores abrem caminho para o questionamento sobre se a “divisão geográfica” também se repetirá no Congresso Nacional, com parlamentares de uma região votando de modo oposto aos das outras.
Para Luciana Santos, que também é presidente nacional do PCdoB, o posicionamento dos governadores pode estimular o voto dos parlamentares. “Quando os governadores se posicionam de modo firme, sinalizam para as bancadas o que esperam e mostram os impactos de suas decisões para a população, criam um gesto político de muito relevo. É algo que pode influenciar, sim, na votação da reforma da Previdência”, declarou.
Já deputados governistas e oposicionistas não creem que um clima de racha regional possa se instalar dentro do Congresso. “Não vejo essa possibilidade. Dentro do Parlamento, hoje, não existe essa divisão por estados, e creio que continuaremos assim”, declarou Fábio Schiochet (PSL-SC).
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“Os posicionamentos estão colocados, e as negociações vão transcorrer com tranquilidade, com cada lado defendendo seu ponto de vista. Nada que comprometa a unidade nacional”, acrescentou Henrique Fontana (PT-RS).
Tanto PT quanto PSL têm 54 deputados federais cada. Já no Senado, o PT conta com seis cadeiras, contra quatro do PSL.
Corrida presidencial de 2022
Além da reforma previdenciária e das dinâmicas estaduais, as movimentações dos governadores tangenciam também a corrida presidencial de 2022. Os dois grupos contam com nomes que têm circulado em especulações para a sucessão de Jair Bolsonaro.
Do lado do Nordeste – e da esquerda – a hipótese é de uma candidatura de Flávio Dino, governador do Maranhão. Entre os fatores que motivariam a corrida presidencial do comunista estão o fato de que ele não poderia se reeleger em 2022 e também o de ter uma gestão com boa aprovação popular. Foi reeleito em outubro no primeiro turno, com cerca de 59% dos votos válidos.
“A eleição está muito distante. Mas o que não falta no PCdoB são nomes capacitados para uma disputa presidencial, e o Flávio Dino certamente está entre eles. Ele teve uma vitória estupenda e faz um trabalho que o credencia a alçar voos e se colocar à disposição das forças políticas do Brasil, seja qual for o projeto”, afirmou Luciana.
Já o grupo do Sudeste tem como possíveis presidenciáveis João Doria e Wilson Witzel. O governador de São Paulo já havia sondado a candidatura ao Planalto em 2018, quando era prefeito da capital paulista, mas acabou perdendo o espaço em seu partido para Geraldo Alckmin. E o gestor do Rio, embora tenha vencido a eleição local ao colar sua imagem à de Jair Bolsonaro, tem indicado interesse em apresentar seu nome para a sucessão do atual presidente.
Em 2018, a vitória eleitoral de Witzel foi uma das mais surpreendentes do país. Ele era um desconhecido da maior parte da população do estado, concorreu por um partido pequeno e, na semana do primeiro turno, aparecia nas pesquisas com intenção de voto bem inferior às dos então favoritos Eduardo Paes (DEM) e Romário (Podemos).
Histórico eleitoral
A divisão entre um Nordeste “esquerdista” e um Sul-Sudeste “direitista” é um quadro que tem marcado a política nacional na história recente. Principalmente nas disputas presidenciais, o PT tem obtido votações expressivas no Nordeste, enquanto estados mais ao sul mostram rejeição ao partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Na eleição de 2018, o presidente Jair Bolsonaro não foi o mais votado em nenhum dos estados do Nordeste, tanto no primeiro quanto no segundo turno. Fernando Haddad (PT) venceu em todos, à exceção do Ceará no primeiro turno, que optou por Ciro Gomes (PDT). Bolsonaro, por outro lado, foi o mais votado em todos os estados do Sul e do Sudeste, nas duas rodadas de votação.
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Passados cerca de seis meses da corrida presidencial, o quadro de divisão ainda persiste. Uma pesquisa sobre a aprovação da gestão Bolsonaro pelos brasileiros, realizada pelo Ibope e divulgada na quarta-feira (20), mostrou que o Nordeste é onde o presidente da República registra seus piores índices. Já o Sudeste é a região em que Bolsonaro tem sua segunda maior aprovação.
“O Nordeste ainda é bastante ‘lulista’. É um quadro que se instalou em 2002 [ano em que Lula venceu a eleição presidencial pela primeira vez], que se fortaleceu com o Bolsa Família e prossegue, de certo modo, nos dias atuais”, apontou o professor Fleischer.
“Ovelhas negras”
Diante do quadro polarizado, parlamentares que detêm visão ideológica minoritária dentro de seus estados acabam trazendo para si também a responsabilidade de tentar expandir o número de apoiadores em suas regiões.
A deputada federal Dayane Pimentel (PSL-BA) é de um estado em que Bolsonaro teve apenas 23% dos votos no primeiro turno e em que o governador do PT foi reeleito com mais de 75% dos votos válidos. Para ela, o quadro pode estar em rota de reversão. “A gestão Bolsonaro vai fazer com que mais pessoas, no Nordeste e em outros locais, conheçam a marca do trabalho da direita. As pessoas vão começar a entender a necessidade de se ter pessoas sérias, responsáveis e patrióticas tomando conta do país”, disse.
Em relação à reforma da Previdência – questionada no Nordeste pelo peso que as aposentadorias têm na região –, a deputada relata que o esforço é o de mostrar que “nós consideramos a aposentadoria tão importante que queremos que haja dinheiro para que ela seja paga às futuras gerações”.
Já o deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), que em 2019 iniciou seu sexto mandato na Câmara, aponta que o momento de baixa da esquerda se justifica pelos “ciclos” que marcam a política. “Atualmente, a população não nos escolheu. A política é assim, e logo chegará o momento em que teremos o nosso ciclo de novo”, disse.
Dos 54 deputados do PSL, apenas cinco são do Nordeste – além de Dayane Pimentel, os outros representantes da região são Luciano Bivar (PE), General Girão (RN), Julian Lemos (PB) e Heitor Freire (CE). O PT conta com 18 parlamentares do Sudeste e nove da região Sul.