Uma das regras de responsabilidade fiscal a que estão submetidos os governantes está sendo cumprida de forma precária e na base de artimanhas fiscais desde 2005, durante os dois governos do PT e nos dois anos de Michel Temer. A chamada Regra de Ouro, criada para obrigar o governante a manter as contas públicas equilibradas, vem sendo atendida com a ajuda de receitas extraordinárias que entram no caixa do Tesouro Nacional, segundo estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado.
O descumprimento da Regra de Ouro pode levar o gestor público a responder por crime previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que prevê o impeachment do presidente da República entre as possíveis punições. A fragilidade no cumprimento da Regra de Ouro na última década, baseado em malabarismos contábeis, expõe a dificuldade do governo federal em ajustar seus gastos e controlar a expansão da dívida pública, objetivos da regra.
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Segundo estudo, em quatro dos 12 anos analisados, a Regra de Ouro só foi cumprida com a contabilização do lucro do Banco Central no seu papel de administrar títulos da dívida pública, valor que é repassado ao Tesouro. Sem essa receita e a contabilização de outras receitas financeiras, como lucro dos bancos estatais, o governo teria descumprido a regra em 11 dos 13 anos analisados.
A Regra de Ouro está sendo “cumprida”, mas não está atendendo seu papel. O IFI aponta que nesse período, apesar da vigência da regra, os investimentos do governo federal ficaram estáveis ou em queda, as contas do governo estiveram com saldo negativo em parte dos anos, e o endividamento cresceu, em sentido oposto do objetivo da criação da Regra de Ouro.
Veja quais foram as principais artimanhas dentro da lei usadas pelos governos para cumprir a regra, mesmo sem atingir o seu objetivo:
Uso de dinheiro que entrou no caixa inesperadamente (ou foi injetado para cumprir a regra)
O IFI aponta como uma das peculiaridades da regra brasileira é que o governo federal dispõe de um volume elevado de receitas financeiras originadas de três principais fontes: amortizações e juros que o Tesouro Nacional recebe de seus devedores (em especial os governos estaduais e municipais) e instituições financeiras do governo como o BNDES; resultados positivos do Banco Central que são transferidos ao Tesouro Nacional; e remuneração de serviços do Tesouro Nacional.
Contabilizar como “investimento” valores que não são gastos
Também temos algumas “jaboticabas” nas leis que permitem uma espécie de maquiagem nos gastos públicos, lançando como investimentos despesas que deveriam ser entendidas como gastos. Como exemplo, o IFI cita despesas com aquisições de imóveis, aumento de participações no capital de empresas públicas (que na verdade é um repasse de dinheiro do governo para ele mesmo, como acionista das empresas estatais) e participação em fundos de organismos multilaterais ou públicos (por exemplo, quando o governo coloca valores no Fundo de Arrendamento Residencial que operacionaliza linhas de crédito do Programa Minha Casa Minha Vida).
Nesses casos, é como se o governo tirasse de um bolso e colocasse em outro dele mesmo, mas com isso conseguisse aumentar seus investimentos, o que ajuda no cumprimento da Regra de Ouro.
Gastos em programas sociais e fundos contam como investimento
Outra manobra contábil legal é a contabilização de despesas de concessões de financiamentos estudantis (FIES) ou aportes a programas e fundos financeiros para fomentar setores produtivos (como os programas a cargo do BNDES ou Fundos Constitucionais no Nordeste, Centro-Oeste e Norte; além de fundos à marinha mercante, agronegócio café, exportações, agricultura familiar). Ao colocar valores nesses fundos e ações, o governo também consegue enquadrar como uma espécie de investimento, atendendo ao que obriga a Regra de Ouro.
“A regra brasileira não exige necessariamente equilíbrio do orçamento corrente”, avalia o IFI, segundo o estudo. “Ademais, boa parte das fontes financeiras está relacionada a relações intra-setor público (por exemplo, entre o Tesouro Nacional e o BNDES ou outros fundos públicos) que geram margem de manobra para que o governo oportunamente as utilize como meio de flexibilizar o teto de déficit corrente. Ou seja, a restrição da Regra de Ouro brasileira estabelece um teto flexível para o déficit corrente (e não necessariamente o seu equilíbrio)”, explica o IFI.
Regra seguirá sendo descumprida até 2024
A Regra de Ouro voltou a ser discutida no meio do ano passado, com a informação do Ministério do Planejamento de que há dificuldades para cumprir a lei neste ano e nos próximos. O IFI avalia que mesmo com as tradicionais manobras realizadas nos anos anteriores, será impossível cumprir a regra este ano.
Incluindo a devolução de recursos do BNDES (o que vem acontecendo em parcelas desde 2016), o buraco será de R$ 68,7 bilhões. Para 2019, faltarão R$ 98,8 bilhões para cumpri-la a regra. Até 2024 a regra será descumprida, avalia o IFI.
O governo federal ainda discute o que pode fazer para evitar que Michel Temer e os próximos presidentes da República sejam punidos e possam até sofrer processo de impeachment.
Segundo o IFI, a lei da Regra de Ouro estabelece que pode haver descumprimento do principal dispositivo da regra (que proíbe o governo de pegar crédito acima das despesas que tem de arcar), caso o Congresso aprove um crédito suplementar, que poderia ser por exemplo para bancar parte das despesas com a Previdência. Mas o IFI questiona tal possibilidade:
“De todo modo, essa saída é controversa e, à visão de parte dos especialistas, incompleta. Mesmo que se pudesse utilizá-la, tanto para 2018 como para 2019, o que fazer nos próximos exercícios? Continuar lançando mão continuamente da cláusula de escape?”, questiona.
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