A intervenção federal no Rio de Janeiro e o uso de militares nas ações de segurança pública até podem conter a criminalidade no estado no curto prazo. Mas o remédio verde-oliva para o problema da segurança pública brasileira, se usado em excesso, também ameaça provocar uma série de efeitos colaterais inesperados e pouco evidentes.
Um dos efeitos é a dependência que o “paciente” pode desenvolver em relação ao “remédio”. Isso provocará o crescimento da influência política dos militares e de seu poder de barganha, criando dificuldades cada vez maiores para o país mexer com interesses corporativistas e com “privilégios” das Forças Armadas, tal como seu regime previdenciário diferenciado.
Há ainda o risco de o crime organizado corromper integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Esse e outros fatores também podem provocar a perda da credibilidade dos militares diante da população. O comprometimento da defesa nacional contra inimigos externos é outro efeito negativo possível, bem como a migração de parte da criminalidade para outros estados. E até mesmo o crescimento da violência no longo prazo pode ser causada por uma presença contínua das Forças Armadas nas ações contra o crime.
Influência política dos militares aumenta e eles ganham poder de barganha para evitar reformas em sua estrutura e cortes de privilégios
“Esse tipo de estratégia [a convocação das Forças Armadas] pode parecer uma solução rápida para problemas de segurança pública, mas tem um preço. Os políticos estão cimentando a posição privilegiada dos militares na política brasileira e, assim, aumentando o poder de barganha das Forças Armadas”, diz o alemão Christoph Harig, pesquisador do programa de doutorado do Brazil Institute do King’s College de Londres (Inglaterra), em artigo publicado em março de 2017 no jornal on-line norte-americano The Conversation.
Desde a Eco-92, a Conferência do Meio Ambiente da ONU realizada no Rio, em 1992, o Exército já foi convocado ao menos 20 vezes para garantir a segurança pública na cidade, mostrando como os sucessivos governos estão ficando cada vez mais dependentes da ação militar.
Estudioso da militarização da segurança que ocorre no Brasil, Harig diz não acreditar que o aumento da influência política das Forças Armadas representa um risco iminente de golpe militar no país. Para ele, o efeito mais concreto é que mexer com interesses e privilégios das Forças Armadas será cada vez mais difícil politicamente justamente por causa da dependência dos governos em relação ao Exército.
Harig cita um exemplo disso: os militares não foram incluídos no projeto de reforma da Previdência, que afetaria todos os demais trabalhadores da iniciativa privada e do setor público se o projeto tivesse sido aprovado.
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Se intervenção fracassar, discurso de medidas mais extremas se fortalece. Caso tenha sucesso, pressão para que militares continuem nas ruas será grande
Especialista em Direito Militar e coordenador de um curso de pós-graduação nessa área no Rio, Luiz Alexandre Costa acredita que se a intervenção fracassar e a criminalidade não diminuir, poderá haver um fortalecimento do discurso de que é preciso medidas mais radicais – como a decretação do Estado de Defesa ou Estado de Sítio, quando garantias individuais ficam suspensas. “Isso já é defendido por alguns candidatos da extrema-direita”, lembra.
Porém, Costa diz que essa é uma hipótese improvável até mesmo porque ele acredita que a intervenção tende a funcionar e a reduzir os índices de criminalidade no curto prazo. “O governo colocou as Forças Armadas numa situação delicada: tem de dar certo.”
Mas esse sucesso irá criar uma pressão popular para que o Exército continue nas ruas do Rio e passe a intervir na segurança pública de outros estados. Isso necessariamente levará o país a rediscutir o papel das Forças Armadas e das polícias.
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Costa defende uma atuação que considera mais moderna das Forças Armadas, que não ficariam paradas à espera “de uma guerra externa que nunca vem”. Para ele, ações de combate às guerrilhas do narcotráfico (caracterizadas pelo domínio territorial e uso de armamento de guerra) têm de ser desempenhadas pelo Exército. Às polícias caberia a função mais cidadã de proteger os cidadãos, não de enfrentar a guerrilha.
Para estudioso, mudança de foco das Forças Armadas ameaça segurança nacional, não acaba com o narcotráfico e leva o crime organizado a corrompê-las
Mas essa visão não é compartilhada por outros estudiosos do tema. O professor Thiago Rodrigues, coordenador da pós-graduação de estudos estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), entende que o Brasil não deveria redirecionar a função das Forças Armadas para o combate ao crime, pois o país precisa de militares para garantir a soberania nacional.
“Vejo essa ideia com preocupação”, diz. O professor cita as características do país que justificam a manutenção do modelo de Forças Armadas tradicionais. “O Brasil tem dimensões continentais, fronteiras extensas e um grande mar territorial.”
Segundo Rodrigues, ao se especializarem no combate ao crime, as Forças Armadas correm o risco de não cumprir adequadamente sua função de defesa nacional. Ele afirma que o México fez essa opção para combater o narcotráfico a partir de 2007 e atualmente não dispõe de um Exército tradicional, voltado para a defesa do país contra potenciais inimigos externos.
O exemplo mexicano traz outro alerta: integrantes das Forças Armadas, quando passam a atuar frequentemente em ações de segurança pública, acabam corrompidos pelo crime organizado do mesmo modo que ocorre com os policiais. “Isso porque aumenta o contato entre militares e traficantes e também as oportunidades de propina. E a corrupção ocorre não só por ganho econômico. Mas também por causa de ameaças dos traficantes contra os militares e suas famílias.”
Apesar dos alertas, Rodrigues faz uma ressalva. “O Brasil ainda não é o México. Lá a excepcionalidade [uso esporádico das Forças Armadas em ações de segurança pública] se transformou em regularidade.”
Outros efeitos colaterais possíveis: perda de credibilidade dos militares, migração do crime e crescimento da violência
A corrupção de militares pode ainda levar ao descrédito das Forças Armadas perante a população – atualmente, elas estão entre as instituições mais confiáveis para os brasileiros.
A perda da credibilidade dos militares também pode ocorrer se, durante a intervenção, houver abusos de poder ou erros operacionais que venham a vitimar inocentes. “Não tenho dúvidas que isso pode ocorrer”, diz Márcio Scalércio, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio que estuda o Exército brasileiro e a história militar. “Soldados não são treinados para ações de segurança pública. O treinamento deles é totalmente diferente.”
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Scalércio alerta ainda para outro risco, baseado na experiência do México: a entrada das Forças Armadas no combate direto ao narcotráfico promoveu uma escalada de violência que elevou o número de vítimas da criminalidade no longo prazo. A lógica é que o aumento de poder de fogo de um lado leva o “inimigo” a procurar fazer o mesmo.
O professor da PUC-Rio afirma também que outro efeito colateral da ação militar no Rio é a migração de parte das atividades criminosas para outros estados, tal como a exportação de drogas. Isso pode ocorrer quando a repressão às atividades ilícitas impedir que elas continuem a ocorrer no território fluminense. Os governos de estados vizinhos do Rio – São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo – já estão tomando medidas para evitar que isso ocorra.
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