O pedido da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba para que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes fosse declarado suspeito nas investigações contra Paulo Preto, apontado como operador do PSDB, foi arquivado nesta segunda-feira (11), a mando da própria Procuradoria-Geral da República (PGR). Ainda assim, o recurso da Lava Jato chama a atenção para a obscuridade desse tipo de ação no STF.
Embora o regimento interno do tribunal preveja que arguições de impedimento e suspeição sejam julgadas pelo plenário, nunca na história do Supremo os ministros se reuniram para julgar a imparcialidade de um de seus pares.
O tema começou a ganhar destaque justamente por causa da Lava Jato e, especialmente, pelos habeas corpus que o ministro Gilmar Mendes deu a diversos réus de operações. O caso mais ruidoso foi o do empresário Jacob Barata Filho, de cuja filha Mendes foi padrinho de casamento.
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Também chamou a atenção que Guiomar Mendes, esposa do ministro, seja sócia do escritório de Sérgio Bermudes, que defende Eike Batista, Lelis Marcos Teixeira e o próprio Barata Filho. Em todos os casos, a suspeição de Mendes foi arguida, mas, como acontece em muitos desses processos, a ação não prosperou.
Até pouco tempo atrás, as arguições de impedimento e suspeição não eram muito estudadas – mas isso tem mudado, acompanhando as polêmicas no Supremo. O estudo mais sistemático sobre essas ações, ainda não publicado, foi feito pelo Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), coordenado por Rubens Glezer, doutor em direito pela USP.
Também participaram da elaboração do estudo “Fora dos holofotes: estudo empírico sobre o controle da imparcialidade dos ministros do STF” as pesquisadoras Lívia Gil Guimarães, Luíza Pavan Ferraro e Ana Laula Pereira Barbosa.
As regras que determinam o impedimento e a suspeição de juízes estão previstas no Código de Processo Civil (CPC) e no Código de Processo Penal (CPP), enquanto procedimento das arguições está previsto no regimento interno do STF – mas, como nada no Direito é simples, o que a pesquisa do Supremo em Pauta descobriu foi uma série de meandros que criam um déficit de transparência do assunto no tribunal e, na avaliação dos pesquisadores, coloca em risco a legitimidade do Supremo, na medida em que compromete a percepção de imparcialidade do tribunal.
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O primeiro empecilho para entender como funcionam efetivamente essas regras é que é praticamente impossível sistematizar os casos em que os próprios ministros se declaram suspeitos e por quê – trata-se de uma dificuldade técnica na pesquisa da jurisprudência. Segundo, nem todas as arguições são feitas por meio de ações próprias, mas, na grande maioria das vezes, acontecem na ação principal.
Por isso, o Supremo em Pauta pesquisou apenas o universo das ações próprias para se questionar a imparcialidade dos ministros. Até o final de 2017, quando encerraram a análise, os pesquisadores encontraram um universo de 111 ações, sendo 43 arguições de impedimento e 68 arguições de suspeição.
De acordo com o regimento do STF, o procedimento dessas ações deveria ser o seguinte: o presidente do tribunal recebe a ação e verifica se ela tem os requisitos para prosperar (caso não seja “manifestamente improcedente”). Se for o caso, o ministro arguido é notificado e, ou se declara impedido/suspeito, ou diz por que não pode continuar julgando a ação. Nesse caso, testemunhas são ouvidas e a ação é enviada para julgamento em plenário.
Arquivamento sem análise
Nenhuma dessas ações, contudo, chegou ao plenário do Supremo. A grande maioria é arquivada na primeira fase, por vício formais. Naquelas em que o ministro é notificado, há casos em que o relator só então se declarou impedido e outros em que o presidente arquiva a ação por ser “manifestamente improcedente” – um ato não previsto no regimento do STF para essa fase da tramitação. Nas que restam, a arguição acaba perdendo o objeto porque a ação principal é julgada antes que o tribunal decida sobre o impedimento ou a suspeição.
“Existe um desenho institucional que não favorece um uso robusto desse mecanismo de proteção da reputação da instituição e da imparcialidade do julgador. O instituto tenta concentrar nele essa atribuição, mas ele é desenhado de um jeito que desestimula o seu uso tanto pelas partes quanto pelos ministros”, diz Glezer.
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“Outra questão é que há poucos incentivos para que os ministros controlem os seus pares. Os efeitos do tribunal se reunir e impedir alguém de julgar são negativos no curto e no médio prazo: as relações interpessoais se deterioram, os ministros se tornam mais sujeitos ao controle dos colegas. Ou seja, o custo de uma decisão dessas é muito alto. Então, o presidente acaba fazendo um favor aos membros do tribunal, digamos assim, ao não fazê-los se reunirem para decidir esses casos”, afirma ainda o pesquisador.
Foi o caso dos habeas corpus que Gilmar Mendes concedeu a Lelis Marcos Teixeira e Jacob Barata Filho. Nessa ocasião, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, arguiu a suspeição de Mendes em agosto de 2017. Janot argumentou a proximidade entre o ministro e os presos (a lei fala em “amizade íntima”) e o fato de a esposa do ministro, Guiomar, ser sócia do escritório de advocacia que representava a ambos (uma hipótese proibida apenas no Código de Processo Civil aprovado em 2015, mas não no Código de Processo Penal). Entre idas e vindas das arguições, a segunda turma referendou as decisões de Mendes e a então presidente do tribunal, ministra Cármen Lúcia, arquivou as ações por perda de objeto em agosto de 2018.
Um caso ainda mais elucidativo aconteceu paralelamente. Alguns meses antes, Janot já havia arguido a suspeição de Gilmar Mendes como relator do habeas corpus que libertara o empresário Eike Batista, que também era cliente de Sérgio Bermudes. Mendes e o advogado defenderam a tese de que a proibição só valeria no processo civil, e não no processo penal, mas Janot argumentava, com base no artigo 3º do Código de Processo Penal – “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito” – que a proibição se estendia também aos casos penais.
“No entanto, por força do art. 3º do Código de Processo Penal, essas causas de impedimento e suspeição haverão de incidir, também, na esfera processual criminal, especialmente em decorrência do princípio da imparcialidade, de nível normativo hierárquico superior, seja ele constitucional ou supralegal”, escreveu o então PGR.
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A mesma demora acabou por fazer a arguição de impedimento perder o objeto. Mas, no arquivamento da ação, em setembro de 2018, o presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli, foi além e aceitou a tese defendida por Mendes e Bermudes e encampada pela nova PGR, Raquel Dodge: “a situação de impedimento descrita está contemplada no artigo 144, inciso VIII do Código de Processo Civil e não há idêntica previsão no artigo 252 do Código de Processo Penal. Assim, não se aplicam, por analogia ou subsidiariamente, as regras processuais civis ao processo penal, que tem rol taxativo de situações que implicam, objetivamente, no impedimento do juiz para o julgamento do caso. Não há lacuna a ser integrada pela regra do art. 3º do CPP”.
O que é amizade íntima? Ninguém sabe, ninguém viu...
O imbróglio todo decorrente da Lava Jato do Rio de Janeiro terminou sem que o tribunal tivesse a chance de definir com mais clareza o que é amizade íntima – e se Mendes é amigo íntimo de Barata Filho –, mas a decisão de Toffoli configurou a primeira vez que a Presidência do STF se manifestou sobre a não extensão ao processo penal da proibição de um juiz decidir sobre caso que envolva o escritório no qual trabalhe um parente seu.
A decisão de Toffoli seguiu apenas a tendência de outros presidentes e das poucas vezes que o plenário teve de se manifestar de alguma forma sobre suspeição e impedimento. “A interpretação das hipóteses é restritiva nesses casos. Uma jurisprudência muito clara do Supremo é seguir absolutamente a literalidade do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal. Mas isso faz com que qualquer outro caso de sério problema de comprometimento da noção de imparcialidade do tribunal possa ser ignorado, sendo que, evidentemente, esse é o problema a ser enfrentado”, avalia Glezer.
“Isso é algo que privilegia muito mais a consciência dos ministros do que a proteção da imparcialidade do tribunal perante a sociedade. O descuido com a aparência de imparcialidade é um dos motivos que levaram à acentuada perda de capital político do tribunal ao longo dos últimos cinco anos”, completa.
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