A maior influência das Forças Armadas no governo federal, em função da chegada ao poder do capitão do Exército Jair Bolsonaro, levantou o sinal de alerta na Argentina sobre o programa nuclear brasileiro – que declaradamente tem fins pacíficos. Reportagem do jornal Clarín , o maior do país vizinho, informa que autoridades e especialistas argentinos veem com desconfiança o que acreditam ser a militarização crescente do setor no Brasil. Na Argentina, aumenta a percepção de que é preciso ampliar o diálogo com os brasileiros para “atualizar” a agenda nuclear entre as duas nações.
A principal suspeita na Argentina recai sobre o desenvolvimento, pela Marinha brasileira, da tecnologia para construir um submarino de propulsão nuclear – que deve ficar pronto até 2029. Além disso, a nomeação por Bolsonaro do almirante Bento Albuquerque para o Ministério de Minas e Energia, ex-diretor-geral do setor de desenvolvimento nuclear da Marinha, intensificou as desconfianças dos argentinos, pois foi interpretada como um sinal político claro de que a influência militar na área vai aumentar.
Uma das missões do almirante Bento Albuquerque no ministério inclusive será intensificar o projeto nuclear brasileiro na área de geração de energia – o governo Bolsonaro tem planos para tirar do papel até oito usinas nucleares; hoje o país tem duas em operação e uma em construção.
Outra reportagem do Clarín , publicada em dezembro, já informava que há uma inquietação de militares, diplomatas e políticos argentinos com o programa de desenvolvimento de submarinos da Marinha do Brasil. Naquele mesmo mês, o Brasil havia lançado ao mar o submarino convencional Riachuelo – numa solenidade que contou com a presença do então presidente Michel Temer e de seu sucessor, Jair Bolsonaro.
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Brasil avança para entrar no seleto clube de 6 países com submarinos nucleares
De acordo com o Clarín, o secretário de Assuntos Estratégicos da Argentina, Fulvio Pompeo, fez chegar ao Palácio do Planalto o mal-estar em seu país com o programa nuclear brasileiro.
A percepção em Buenos Aires é de que o programa do Brasil, por ser uma política de Estado que prossegue mesmo com mudanças de governos, colocou o país à frente no domínio da energia atômica para uso militar . O maior exemplo disso é justamente o avanço no desenvolvimento de tecnologia própria para construção de submarinos nucleares – que podem ficar submersos por períodos muito mais longos do que o modelo convencional (movidos a diesel e eletricidade). Apenas um seleto clube de seis nações conta hoje com essa tecnologia: EUA, Rússia, Reino Unido, França, China e Índia. Todas também possuem bombas nucleares.
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Enquanto isso, o programa nuclear argentino oscila conforme os humores do ocupante da Casa Rosada. A Argentina também vive uma crise movida a sucessivos cortes de investimentos em sua Marinha – o que ficou escancarado após o naufrágio em novembro de 2017 do submarino convencional ARA San Juan.
Brasil e Argentina começaram a se aproximar na área nuclear nos anos 1980
A Argentina entende que o cenário atual desequilibra a relação entre os dois países e prejudica negócios de suas empresas do setor. Por isso, pretende “atualizar” a agenda nuclear com o Brasil, assentada em compromissos conjuntos de cooperação tecnológica.
Desde meados dos anos 1980, brasileiros e argentinos começaram a estabelecer uma relação mais amistosa nesse tema, depois de décadas de desconfiança mútua em relação às supostas pretensões militares de seus respectivos programas nucleares. Isso ocorreu logo após a queda das ditaduras militares nos dois países e ao mesmo tempo em que começaram a negociar a formação do Mercosul.
Em 1985, os presidentes do Brasil, José Sarney, e da Argentina, Raúl Alfonsín, assinaram em Foz do Iguaçu (PR) a Declaração Conjunta sobre Energia Nuclear. No documento, as duas nações se comprometem a usar energia nuclear exclusivamente para fins pacíficos e a cooperar uma com a outra no desenvolvimento de tecnologias no setor.
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A aproximação tinha uma explicação pragmática: ainda em meio à Guerra Fria, as superpotências nucleares vinham criando cada vez mais dificuldades para que outros países tivessem acesso a equipamentos e materiais nucleares. Brasileiros e argentinos então entenderam que seria melhor juntar esforços para dinamizar seus projetos de domínio da energia atômica.
Em 1991, Brasil e Argentina deram mais um passo nesse sentido: assinaram o Acordo de Guadalajara, por meio do qual criaram a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) para fiscalização mútua entre os dois países acerca do uso pacífico da energia atômica. Logo depois, ambos também aderiram em conjunto ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares das Nações Unidas (TNP), existente desde 1970. Desse modo, passaram a permitir inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AEIA) em suas instalações nucleares.
À época, os brasileiros conseguiram incluir uma cláusula no Acordo de Guadalajara por meio da qual foi classificado como “pacífico” o uso de energia nuclear para a propulsão de submarinos. O argumento era de que a energia nuclear é apenas o combustível do submarino; e que o Brasil não desenvolve ogivas nucleares para equipá-los com bombas. Com isso, o país assegurou a continuidade do programa da Marinha, iniciado em 1979 e que agora está no centro das preocupações do país vizinho.
Brasil reluta em aderir ao protocolo adicional do TNP; Argentina não
Embora faça parte do TNP, o Brasil vem relutando em aderir ao protocolo adicional do tratado, de 1997, que amplia os poderes das inspeções da AEIA. O país diz que esse instrumento do TNP expõe o programa brasileiro ao risco de vazamento de segredos tecnológicos.
Externamente, há pressão para que o Brasil aceite os novos termos pelo receio de que a tecnologia para enriquecer o urânio necessário para abastecer os submarinos possa vir a ser usada para o desenvolvimento de armas nucleares. Contudo, as Forças Armadas brasileiras estão proibidas de fazer isso: a Constituição de 1988 determina que toda atividade nuclear no país tenha apenas fins pacíficos. Um programa de desenvolvimento de uma bomba, portanto, seria clandestino.
Segundo reportagem do Clarín, a Argentina não tem restrições em aderir ao protocolo, Contudo, não o assina porque está amarrada ao Brasil pelos acordos firmados entre as duas nações. O país vizinho inclusive estaria perdendo negócios na área civil, pois clientes externos estão exigindo o ingresso de seu país no protocolo para fechar contratos com empresas nucleares da Argentina.
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